sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Beatriz Helena: A morte de um poeta é como a de uma estrela


Homenagear um poeta é ler o que escreveu. “...poesias, a poesia é/ - é como a boca/ dos ventos/ na harpa/ nuvem/ a comer na árvore/ vazia que/ desfolha noite/ (...) e é livre/ como um rumo/ nem desconfiado...” Compêndio para uso dos pássaros.

Por Beatriz Helena*, para o Vermelho


Reprodução
Ilustração da filha Martha Barros, a quem Manoel de Barros chamava de "a menina avoada"Ilustração da filha Martha Barros, a quem Manoel de Barros chamava de "a menina avoada"
A morte de um poeta é como a de uma estrela, cujo brilho continuará chegando ainda por muito tempo. Manoel de Barros “queria fazer parte das árvores como os pássaros fazem”, “só não queria significar” pela razão de que “significar limita a imaginação”; “Porque o homem não transfigura senão pelas palavras.” (p. 455). Cito seus versos para homenageá-lo porque a perda é para nós, que ficamos. Temos seus versos, é bem verdade, mas “Não foi para morrer que nós nascemos/ (...) a morte é natural na natureza”, como escreveu Jorge de Sena (1919 – 1978), poeta português, cujos versos ofereço neste momento. Vamos combinar que o poeta viverá em sua obra.


Haverá, por certo, muitos textos sobre ele, o que é mais que justo. No entanto, somente vemos e lemos seja lá o que for enquanto nosso coração bate no peito e nossa mente está lúcida, de modo que o justo mesmo é ler o que ele escreveu, como se lesse com ele, como um companheiro de percurso. Um poeta é um construtor de caminhos, caminhos desobrigados de chegar a algum lugar, felizmente. “Nasci para administrar o à toa” (p. 340), escreveu ele. Vamos a isso!

Em 1937, publicou Poemas concebidos sem pecado, que se inicia com o poema “Cabeludinho”, no qual “Sob o canto do bate-num-para nasceu Cabeludinho/ bem diferente de Iracema/ desandando pouquíssima poesia/ o que desculpa a insuficiência do canto/ mas explica a sua vida/ que juro ser essencial” (p. 11 ) [1]. Mesmo que não façamos leitura das obras pela vida de seu autor, é de se notar que a vida transpira para a arte que se faz. O poeta nasce como as mães, ou seja, quando se põe no mundo o primeiro filho/poema. 

Face imóvel surge em 1942, tempos da Segunda Guerra Mundial, Manoel já bacharel em Direito. “Eu não vou perturbar a paz” é o primeiro poema deste volume, em que “De tarde um homem tem esperanças./ Está sozinho, possui um banco./ De tarde um homem sorri./ Se eu me sentasse a seu lado/ Saberia seus mistérios/ Ouviria até sua respiração leve./ Se eu me sentasse a seu lado/ Descobriria o sinistro/ Ou doce alento de vida/ Que move suas pernas e braços. ( ) Mas, ah! Eu não vou perturbar a paz que ele depôs na praça, quieto.” (p. 35). Um poeta, como escreveu Jorge de Sena, dá “de nós mais que nós mesmos, testemunhos do mundo que nos cerca” (1961, p. 11). Visto que não se apaga fogo com fogo, em tempos de guerra ele nos ofereceu versos de paz.

Em Manoel de Barros, ser poeta é condição de vida, é seu modo de estar no mundo. E qual é a Matéria de poesia (1970)? “Todas as coisas cujos valores podem ser/ disputados no cuspe à distância/ servem para poesia” (p. 143), primeiros versos deste volume. “Tudo aquilo que a nossa/ civilização rejeita, pisa e mija em cima,/ serve para poesia” (p. 146), porque o homem, sua humanidade, o fato de carregar consigo potenciais a realizar, é maior do que os limites que são impostos pelo sistema e pelo mundo material. Afinal, “Poema é lugar onde a gente pode afirmar que o delírio é uma sensatez.” (p. 374) e que “A maior riqueza do homem é a sua incompletude.” (p. 374)

Um poeta é um criador de mundos. Longe de construir alienações, a poesia é um poderoso espaço revolucionário pelo simples fato de que coloca o homem em convivência com sua humanidade e isso, meus amigos, neste mundo nosso, é sem preço! É o que nos mantém andando. Andemos com ele!

“Fui andando...
Meus passos não eram para chegar porque não havia chegada
Nem desejos de ficar parado no meio do caminho.
Fui andando...” (p. 50)

*Acadêmica de Literatura da Língua Portuguesa

[1]Todos os poemas de Manoel de Barros citados neste texto estão no volume Poesia Completa, Leya, 2010.

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