domingo, 9 de novembro de 2014

Queda do muro virou mito de vencedores


O noticiário internacional está marcado, nos últimos dias, pelas festividades comemorativas dos 25 anos da queda do Muro de Berlim. A maioria da imprensa celebra o evento com galhardia.

Por Breno Altman, para o Opera Mundi


Opera Mundi
  
Trata-se, afinal, do símbolo mais emblemático da derrocada do socialismo e da possibilidade histórica de qualquer sistema distinto do capitalismo triunfante.

A conjugação de uma incrível máquina de propaganda com o complexo de vira-lata comum aos perdedores foi capaz de atrair para essa comemoração amplos setores progressistas e de esquerda, que simplesmente mandaram às favas qualquer espírito crítico.

Alguns porque honestamente concordam com a retórica sobre o muro maligno. Outros porque temem ser apontados como antidemocráticos e fora de moda.

A submissão intelectual chega ao ponto de não se questionar sequer a legitimidade dos grandes agitadores contra a obra do mal.

Onde está, afinal, a autoridade dos Estados Unidos e seus meios de comunicação?

No muro da morte que separa seu território dos aliados mexicanos, matando por ano os oitenta caídos durante três décadas na Berlim dividida?

Na base de Guantánamo, onde centenas de muçulmanos estão presos sem o devido processo legal e são sistematicamente torturados?

Ou teria a Europa ocidental mais credibilidade, com sua política discriminatória contra os imigrantes?

Ou ainda Israel, pródigo em adotar práticas de pogrom contra os palestinos e expeditivos em construir sua própria muralha de isolamento dos territórios ocupados?

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A lista de participantes desse festim é bastante longa, vários com muitas contas a acertar, e de cada qual deveria ser solicitado o devido atestado de idoneidade.

Não é o caso, obviamente, de se justificar um pecado com outro, mas evitar comportamentos cuja índole é hipócrita.

Vamos aos fatos, portanto.

O Muro de Berlim costuma ser apresentado, pelos campeões da liberdade, como produto de um sistema político tirânico, cuja natureza seria a divisão dos povos e sua subordinação ao tacape de uma ideologia totalitária.

Quando terminou a 2ª Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em quatro zonas de influência, entre norte-americanos, ingleses, franceses e soviéticos.

A capital histórica, Berlim, pertencente ao território controlado pelo Exército Vermelho, acabou igualmente repartida em áreas controladas pelos países vitoriosos.

Quem se der ao trabalho de ler as atas das conferências de Ialta, Potsdam e Teerã, se dará conta que Moscou era contrário a essa divisão.

Sua proposta era dotar a Alemanha de um governo provisório, sem divisão do território, que organizasse em dois anos um processo eleitoral nacional.

Os demais aliados, temerosos que o país caísse nas mãos dos comunistas, exigiram o modelo adotado.

A União Soviética acatou, depois que viu garantido seu direito de hegemonia sobre os demais países fronteiriços, além de preservado seu controle militar sobre a antiga Prússia Oriental.

Em nome de sua política de segurança e da manutenção da aliança que derrotou o nazismo, abdicou de parte da sua influência na porção ocidental da Alemanha e do antigo Império Austro-Húngaro, apesar de os comunistas já serem maioria na Áustria.

Outro compromisso que constava da agenda pós-guerra era a constituição de um fundo mundial para a reconstrução europeia.

O papel principal, nesse trâmite, cabia aos Estados Unidos, a potência que menos havia sofrido com o esforço de combate, cuja economia havia sido vitaminada pelo conflito e dispunha de imensos recursos financeiros.

Mas a vitória eleitoral dos comunistas na então Tchecoslováquia, seguida de resultados espetaculares na Itália e França, em 1946, provocou uma reviravolta.

A Casa Branca decidiu-se por quebrar o pacto da reconstrução e inundar de financiamento apenas sua área de influência, dando origem ao Plano Marshall, em 1947. Cerca de 140 bilhões de dólares, em valores atualizados, foram injetados no ocidente europeu.

Tinha início a chamada Guerra Fria, antecipada, em março de 1946, pelo famoso discurso de Winston Churchill em Fulton.

A União Soviética, que havia arcado com um incalculável custo humano e material ao ser o grande vetor da vitória contra Hitler, passou a enfrentar uma outra guerra, financeira e de sabotagem, contra suas posições. Especialmente na Alemanha Oriental, constituída em 1949 como República Democrática da Alemanha.

A estratégia norte-americana era roubar os melhores profissionais alemães, atrai-los a peso de ouro a partir de sua cabeça-de-ponte em Berlim Ocidental, que recebia aportes formidáveis para ser exibida como vitrine esplendorosa da pujança capitalista.

A fuga de cérebros e braços asfixiava a jovem RDA, que pouco podia contar com a ajuda material soviética, pois estava o Kremlin às voltas com o dificílimo reerguimento do próprio país.

Foram mais de 12 anos em uma batalha árdua e desigual.

A URSS tinha quebrado a máquina de guerra do nazismo, retesando cada músculo e cada nervo da nação, e se via diante de uma situação que poderia levar à desestabilização de suas fronteiras, exatamente a aposta maior da Casa Branca.

Essa escalada teve seu desfecho no dia 13 de agosto de 1961, data inaugural do Muro de Berlim.

O fluxo entre os dois países e as duas áreas da antiga capital foi militarmente interrompido, obstaculizado por uma construção que chegou a ter 66,5 km de redeamento metálico e murado.

Famílias e amigos foram separados por quase 30 anos.

Aprofundou-se a fratura entre ocidente e oriente na Europa.

Uma nação histórica foi dividida. Oitenta pessoas morreram e 142 ficaram feridas ao tentar ultrapassar o muro, finalmente derrubado em 1989.

Sua construção foi um ato de guerra, mas de caráter defensivo. As hostilidades e operações de sabotagem, que impediram a permanência de uma Alemanha unida e a coexistência pacífica de dois sistemas, foram iniciadas pelas potências que romperam o acordo de paz, impondo ao leste europeu e socialista, com sua economia ferida pela guerra, um longo estado de exceção.

Claro, havia outras alternativas.

A URSS e seus aliados poderiam, por exemplo, ter capitulado de antemão à ideia de desenvolver outro sistema de produção e poder, pois era essa tentativa dissidente o motivo da Guerra Fria. Afinal, não foi assim que tudo terminou, lá se vão 25 anos?

Mas com seus erros e seus acertos, suas glórias e seus desastres, seus feitos e até seus crimes, o socialismo foi, durante gerações, a bandeira e o sonho de povos que aceitaram pagar com sacrifício, dor e sangue por um outro mundo possível.

Teria sido impensável, se assim não fosse, a extraordinária vitória na guerra de trinta anos que vai da Revolução Russa à caída de Berlim nas mãos do Exército Vermelho, em 1945.

O muro de Berlim talvez tenha sido a criatura disforme de um processo no qual seus protagonistas tiveram que enfrentar circunstâncias e teatros de batalha escolhidos, no fundamental, por inimigos poderosos.

De certo modo foi, durante décadas, marco de resistência e de equilíbrio entre dois sistemas. Caiu quando a força propulsora de um dos lados já tinha se esgotado.

O resto é a mitologia dos vencedores.

Observação: este texto é uma adaptação, com poucas alterações, de artigo que escrevi há cinco anos. Também foram poucas as mudanças na narrativa tendenciosa e falsificada dos fenômenos históricos que precederam a queda do Muro de Berlim.

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