quarta-feira, 8 de junho de 2016

Por que o debate sobre o Orçamento não inclui juros e tributações?



  
O debate sobre o orçamento e o ajuste fiscal, pontua, deve levar em conta outro tipo de discussão, como avaliar “o que não cabe dentro do orçamento público, como, por exemplo, a enorme transferência de juros e amortização que o Brasil tem feito nos últimos anos para o setor financeiro”, porque “o orçamento público tem sido capturado, em até um terço dos seus recursos, para o setor financeiro. Logo, isso é que de fato não cabe dentro do orçamento público”, frisa. E adverte: “O que o governo está propondo é realmente afundar o país nessa situação, porque com a atual argumentação – e isso é central – ele se apresenta como salvação, com um profundo rebaixamento do custo da força de trabalho no Brasil, e esse rebaixamento se dará por meio de cortes nos direitos sociais e trabalhistas. O que está sendo engendrado é uma captura do fundo público para um determinado setor da economia brasileira – o setor do rentismo”.

Na entrevista a seguir, Salvador também comenta a carga tributária brasileira e sugere mudanças para uma possível reforma. Entre elas, o economista defende que “teria de se fazer uma opção clara de reforma tributária que tributasse o ‘andar de cima’ da pirâmide social brasileira, pois se tem um setor na economia brasileira que não paga literalmente nada de Imposto de Renda. Isso porque os sócios capitalistas, donos de empresas no Brasil, não pagam, enquanto pessoa física, nada de Imposto de Renda sobre lucros e dividendos distribuídos. Só isso permitiria gerar uma receita bastante considerável e importante nessa hora para reequilíbrio das contas públicas”.

Evilasio Salvador é economista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, mestre e doutor em Política Social pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente leciona na Universidade de Brasília, na graduação em Serviço Social e no Programa de Pós-graduação em Política Social.

Confira a entrevista:

IHU On-Line – Como o senhor está analisando o atual momento econômico e político do país? Já é possível concluir algo acerca do pacote econômico anunciado pelo governo interino?

Evilasio Salvador – O momento é de extrema gravidade porque estamos sendo conduzidos por um governo ilegítimo que traz um programa econômico, social e político que não foi escolhido democraticamente pelo povo, ou seja, é um programa não referendado; aliás, essas ideias foram derrotadas em quatro eleições consecutivas.

O pacote econômico tem um conjunto de medidas extremamente graves, que vai gerar uma crise econômica, política e social no país: aumentará a taxa de desemprego, a economia não voltará a crescer porque a aposta de provocar verdadeiramente uma recessão tira o importante papel que o Estado tem na economia e, sobretudo – essa é a principal questão –, o que esse governo está propondo é um desmonte do eixo do Estado de Proteção Social desenhado pela Constituição de 1988.

Desmanche do Estado de bem-estar social

O Estado Social brasileiro não tem nem 30 anos e estão propondo desmanchar sua viga mestra – o financiamento. A Constituição de 1988 estabeleceu um arranjo específico de financiamento com orçamento próprio para as políticas sociais. Eu me refiro, principalmente, ao orçamento da Seguridade Social, com as fontes exclusivas de financiamento que estão previstas no Artigo 195 da Constituição, isto é, o Artigo 195 tem contribuições específicas vinculadas à previdência, à saúde, à assistência social e ao seguro-desemprego. E a Constituição também estabeleceu gastos mínimos constitucionais a serem cumpridos por todos os entes da Federação – União, estados, municípios e Distrito Federal –, o que dá uma garantia à expansão e à proteção social nas áreas de educação e saúde.

Portanto, o que esse governo vem apresentando é um desenho no sentido de um desmonte dessa proteção social, visando liberar espaço dentro do orçamento público para recomposição de recursos a serem apropriados pelo capital, especialmente pelo setor rentista e financeiro da economia brasileira. Na realidade, se quiséssemos fazer uma discussão, deveríamos dizer o que não cabe dentro do orçamento público, como, por exemplo, a enorme transferência de juros e amortização que o Brasil tem feito nos últimos anos para o setor financeiro; ou seja, o orçamento público tem sido capturado, em até um terço dos seus recursos, para o setor financeiro. Logo, isso é que de fato não cabe dentro do orçamento público.

Como interpreta a discussão sobre o deficit público?

O menos importante nesse debate é o valor do deficit. Na realidade, ao contrário do que fez a presidenta Dilma Rousseff, que informou detalhadamente os valores desses recursos, a forma como agora foi enviada a informação do deficit não é detalhada, então, não se tem uma ideia de qual é o valor de fato.

Ainda que se esteja com um deficit de R$ 170 bilhões, o conjunto das medidas econômicas é um absurdo total, porque o que o governo está dando é uma desculpa técnica/oficial para sabotar o orçamento da área social; é disso que estamos falando. O que se pretende é que o orçamento público não gaste recursos com saúde, educação e seguridade social e que esses recursos sejam canalizados para o pagamento de juros da dívida pública. Essa é a verdadeira intenção, tanto que o ministro da Fazenda [Henrique Meirelles] disse que chegaremos, em dois ou três anos, a um deficit nominal praticamente zero. Então, isso é que tem de ser combatido e colocado em discussão, porque a transferência de recursos para o setor financeiro da economia é sem precedentes.

Transferências para o setor financeiro

Mesmo no ano passado, em que não houve realização de superavit primário, foi transferido um valor muito elevado ao setor financeiro da economia – só de juros nominais foram R$ 390 bilhões, o que representa 25% do orçamento público. Nenhum outro país tem feito transferências nesse volume. Por exemplo, se analisarmos o quadriênio de 2010 a 2013, veremos que só cinco países no mundo realizaram o superavit primário: Arábia Saudita, que tem recursos de petróleo, Alemanha e Itália, que são duas importantes economias europeias, Turquia e Brasil.

De outro lado, se analisarmos as principais economias do mundo, Estados Unidos, França e China, veremos que elas vêm praticando o deficit fiscal e nem por isso são consideradas economias quebradas, porque tem uma crise internacional do capital e diante dessa crise o Estado age no sentido de realizar políticas anticíclicas para tirar o país dessa condição. Mas o que o governo está propondo é realmente afundar o país nessa situação, porque com a atual argumentação – e isso é central – ele se apresenta como salvação, com um profundo rebaixamento do custo da força de trabalho no Brasil, e esse rebaixamento se dará por meio de cortes nos direitos sociais e trabalhistas. O que está sendo engendrado é uma captura do fundo público para um determinado setor da economia brasileira – o setor do rentismo.

Ao apresentar esse valor do deficit público, o governo está pedindo um “cheque em branco” para gastar e direcionar os recursos do orçamento público como bem entender. Então, é uma situação bastante complexa, e se o Senado reverter a decisão final do impeachment, a presidenta terá em suas mãos uma bomba e terá muitas dificuldades de desarmá-la.

Dado o atual deficit de R$ 170 bilhões das contas públicas, outras medidas poderiam ter sido anunciadas? O quê, por exemplo?

Se pensarmos do ponto de vista estrutural, na verdade há muito tempo, na coalização liderada pelo Partido dos Trabalhadores, deveriam ter abandonado os pilares macroeconômicos neoliberais: superavit primário elevado, elevada taxa de juros na política monetária e câmbio livre.

Do ponto de vista mais imediato, o que não cabe é esse volume de transferências de juros e amortização da dívida. Então se deveria estabelecer, no curto e no médio prazo, uma brutal redução desse compromisso. Seria preciso reduzir as taxas a valores inferiores a 2% do PIB com juros nominais, que é o que os países centrais praticam, ou seja, reduzir isso brutalmente para abrir espaço dentro do orçamento público para o crescimento – ao contrário do que eles estão propondo – de gastos sociais e de investimento. Os gastos sociais têm um efeito extremamente importante também do ponto de vista econômico, não é só de proteção social, porque, por exemplo, a construção de escolas, hospitais e o pagamento de servidores são despesas muito importantes e que movimentam a economia.

Tributação de lucros e dividendos

Outro aspecto determinante é que teria de se fazer uma opção clara de reforma tributária que tributasse o “andar de cima” da pirâmide social brasileira, pois se tem um setor na economia brasileira que não paga literalmente nada de Imposto de Renda. Isso porque os sócios capitalistas, donos de empresas no Brasil, não pagam, enquanto pessoa física, nada de IR sobre lucros e dividendos distribuídos. Só isso permitiria gerar uma receita bastante considerável e importante nessa hora para reequilíbrio das contas públicas, ao trabalhar com essa lógica.

Os números divulgados pela Receita Federal em 2013 informam o recebimento de R$ 623 bilhões de rendimentos isentos de Imposto de Renda; desses, R$ 287 bilhões foram de lucros e dividendos recebidos pelos acionistas, ou seja, esses sócios capitalistas a quem eu estava me referindo. Se tributar esses R$ 287 bilhões à alíquota máxima do Imposto de Renda, que é 27,5%, teremos uma arrecadação de R$ 79 bilhões. Isso é legislação simples. Foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quem vetou lucros e dividendos, mas se isso fosse tributado, só de imediato teria para os cofres públicos uma arrecadação de quase R$ 80 bilhões, que já ajudaria em parte essa situação.

Porém existem outros elementos que ajudariam, porque tem um setor hiper-rico da população que simplesmente não paga Imposto de Renda ou paga muito pouco: 71.440 declarantes que estão no topo da pirâmide social nos dados da Receita Federal têm uma renda bilionária, isto é, tiveram R$ 298 bilhões de renda; destes declarantes, 51 mil recebem receitas de dividendos e lucros e são isentos do pagamento de impostos, ou seja, não pagam absolutamente nada de IR. Desses 71 mil, a alíquota média é de 2,6%, enquanto a alíquota média dos trabalhadores em geral é de 10% no Imposto de Renda. Assim, temos um espaço importante para enfrentar essa enorme desigualdade de renda e rendimentos, e com isso gerar receitas adicionais para o Estado.

Outro dado importante: do montante de R$ 5,8 trilhões que as pessoas declararam à Receita Federal – são 26 milhões de declarantes –, 41% desses 5,8 trilhões de bens e direitos estavam nas mãos de apenas 720 mil pessoas, o que equivale a 0,36% da população brasileira. Então, 720 mil pessoas têm pouco mais de 40% do total de patrimônio declarado à Receita Federal, e esse patrimônio tem valor equivalente a 45% do PIB e é um patrimônio muito pouco tributado.

Além dessa tributação sobre lucros e dividendos, que tipo de tributação contribuiria para diminuir a concentração de renda no Brasil? O senhor fala da necessidade de fazer uma reforma tributária. Que aspectos seriam fundamentais na composição dessa reforma para que a carga tributária fosse mais eficiente e não tributasse tanto os mais pobres?

A questão da tributação no Brasil enfrenta pelo menos dois conflitos distributivos: um é federativo, ou seja, o maior tributo do país é o ICMS, que é de tributação dos estados, então qualquer modificação implica em rediscutir pacto federativo e o acordo com os estados. A outra questão é que efetivamente aqueles que pagam tributos no país são os menos organizados – assalariados, pessoas mais pobres em geral –, porque a carga tributária é muito regressiva e indireta sobre o consumo, o que torna, de alguma forma, muito pouco transparente o debate público. E os setores que não pagam Imposto de Renda ou tributam muito pouco seu patrimônio são exatamente os que reclamam perante o público, então esse debate é bastante difícil e interditado no país.

Reforma tributária

Para pensar a reforma tributária, teria que se pensar no sentido que a palavra merece: reforma é sempre para garantir direitos, é sempre no sentido progressivo da palavra, e não o que tem sido feito no Brasil e o que tem sido pautado nos últimos anos. Se eu fosse pensar em um reforma tributária nesse sentido, teria que ter como pilar do sistema tributário o Imposto de Renda e precisaria trazer para dentro da tabela do IR todas as rendas e todos os rendimentos da economia. Logo, rendas originárias de lucros, dividendos, aluguéis, salários ou outras formas de rendimentos, como aplicações financeiras, teriam que ir para dentro de uma tabela do IR com mais alíquotas e mais faixas, e que se começasse com alíquotas muito pequenas, que desonerassem completamente os trabalhadores com menor poder aquisitivo e fossem subindo proporcionalmente à medida que as pessoas tivessem mais renda e mais patrimônio.

Assim se poderia inverter a situação da tributação direta no país e incluir um conjunto de contribuintes que hoje não estão pagando IR. Isso, inclusive, cumpriria uma determinação constitucional, porque a Constituição determina que não pode ser discriminada a tributação em função da profissão ou da origem da renda. Hoje o Brasil faz o contrário disso.

Outro ponto seria mexer em toda a estrutura da tributação sobre patrimônio, porque a arrecadação sobre patrimônio é menor que 4% no total da arrecadação da União, dos estados, municípios e do Distrito Federal. Seria preciso estabelecer a perspectiva de chegar a algo como 10 ou 12% de arrecadação sobre patrimônio, ou seja, três vezes mais. Há potencial para fazer isso. Precisaria mexer, por exemplo, nas alíquotas e no estabelecimento de uma tributação fortíssima sobre heranças no Brasil; alterar o IPVA, cuja arrecadação é praticamente sobre carros e carros populares; e estabelecer uma tributação sobre grandes fortunas, e com isso se abriria espaço para alterar a carga tributária regressiva. Através dessas medidas poderíamos, por exemplo, pensar na tributação sobre o consumo muito mais sobre os bens supérfluos do que sobre cesta básica e bens de consumo populares ou sobre meios de infraestrutura, por exemplo, como energia e água, que têm forte tributação.

Um quarto pilar nessa discussão seria a tributação do mercado financeiro, ou seja, a economia hoje é uma economia financeirizada e é muito pouco tributada. Se pegarmos o conjunto de novos produtos financeiros que o sistema bancário criou, não são basicamente tributados – eu falo aí de derivativos de Swap, securities, um conjunto de produtos criados que precisaria estabelecer tributação. Ou seja, teria que inibir qualquer perspectiva de especulação e o sistema tributário poderia ajudar.

O senhor afirma que o ICMS é o tributo que mais onera a população pobre. Há alguma alternativa ao ICMS hoje?

O ICMS precisaria ter um fundo de compensação entre os estados. A única coisa boa que tinha na PEC 233 do Lula era isto: um fundo de equalização de receitas, que parecia bem interessante na proposta de mudar a tributação da origem para o destino – e esse fundo compensaria a perda desses dados por alguns anos – e montar um processo em que desonerasse, ou seja, estabelecesse um conjunto de produtos que comporiam uma cesta básica e que não poderia ser tributado. Além disso, seria preciso estabelecer um processo uniforme de alíquotas do ICMS para evitar a guerra fiscal. Agora, essa é uma das coisas mais complicadas de se fazer, porque envolve a negociação entre as 27 unidades da Federação.

Além do ICMS, quais são os tributos que mais oneram a população hoje?

Tem um conjunto de tributações indiretas que são difíceis de serem alteradas e para alterá-las é preciso ter cuidado; por exemplo: na área federal a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) é sobre o faturamento e a receita das empresas, o que no fundo é um tributo sobre consumo, porque só se ilude quem acha que as empresas efetivamente pagam isso. Não! Elas repassam esse custo ao consumidor, portanto quanto menor a renda, proporcionalmente mais a pessoa acabará pagando. Então, teria que alterar isso garantindo os recursos de financiamento da Seguridade Social com alguma tributação mais progressiva, por exemplo, sobre lucros e dividendos, até mesmo sobre grandes fortunas, de modo que essa tributação ficasse vinculada à Seguridade Social. Essa seria uma medida importante. O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) também é uma das tributações que poderia ser modificada, assim como tantas outras.

A tributação de algum país serviria de exemplo para a carga tributária brasileira?

O problema é que os empresários no Brasil jamais toparam esse debate concretamente, porque eles propõem desonerar tudo e continuar sem pagar Imposto de Renda e Imposto sobre o Patrimônio. Haveria a alternativa de fazer um Brasil diferente, mas teria que desonerar fortemente a produção e o repasse de tributos sobre o consumo, mas os senhores empresários passariam a pagar Imposto de Renda sobre lucros e dividendos distribuídos e seu patrimônio seria fortemente taxado. Essa é uma alternativa viável, porque o tributo é o preço da cidadania: se queremos políticas sociais universais, direitos humanos, direito à educação, à saúde e à previdência, o Estado pode até mandar emitir dinheiro, mas isso vai gerar inflação. É possível até pedir empréstimos, mas isso também será complicado, e a forma civilizada de garantir isso é o tributo. Só que precisamos edificar uma forma mais justa.

Sobre exemplos: nos 18 países mais desenvolvidos da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], dois terços da sua tributação vêm da tributação sobre renda e patrimônio. França, Suécia, Estados Unidos, Japão e até Coreia do Sul, por exemplo, são países de forte tributação sobre patrimônio e renda. Até mesmo na Inglaterra, mesmo com todos os anos neoliberais de Margaret Thatcher, permanece um sistema edificado de tributação sobre renda e patrimônio, em que pese todas as mudanças realizadas, mas em todas as tentativas não abriram mão de uma forte tributação de renda e patrimônio. Se quisermos seguir algum modelo, temos que mirar nas principais economias desenvolvidas que fazem isto: tributam a renda e o patrimônio.

Há uma lorota que é muito bem contada no Brasil: não podemos tributar patrimônio porque isso foi originalmente tributado na renda. Como se a tributação sobre a renda no Brasil fosse algo efetivamente que alcançasse a todos. Tributação sobre renda no Brasil – de pessoas físicas – tributa basicamente trabalhadores assalariados e servidores públicos, outros tipos de rendimentos não são alcançados, inclusive são isentos pela própria legislação. Então, essa é mais uma questão concreta a ser enfrentada, entre tantas outras que o país tem.

Há muita disputa em relação à recriação ou não da CPMF. Como vê essa possibilidade? Seria importante recriá-la ou não? Por quê?

A CPMF, do ponto de vista de justiça tributária e justiça fiscal, serve muito pouco, porque é um tributo proporcional em que ricos e pobres pagam. Eu já me posicionei e defendo uma tributação que onere ricos e desonere pobres. Entretanto, tem uma questão que é essencial e importante na CPMF – e esse é o motivo pelo qual defendo que ela exista: ela permite o cruzamento de informações entre a movimentação financeira, a movimentação bancária e a renda e o patrimônio do contribuinte. E como determinados setores da sociedade, sobretudo os empresários, movimentam um conjunto de recursos extremamente elevados no sistema financeiro e esses recursos não correspondem, necessariamente, à declaração de renda e patrimônio, isso causa incômodo. Isto é, a CPMF é um tributo que permite uma fiscalização muito mais pesada por parte da Receita Federal. Nesse aspecto ela é importante.

O segundo aspecto é que se ela for recriada, terá que garantir que a sua arrecadação seja exclusivamente para o financiamento de políticas da seguridade social, porque também é importante lembrar que quando vigorou a CPMF, cerca de 20% da arrecadação dela nunca chegaram ao financiamento nem da saúde, nem da assistência social, nem da previdência social, porque sobre ela incidia a DRU [Desvinculação de Receitas da União]. Portanto, se é para criar CPMF, que se crie dessa forma, que de fato se garanta o financiamento dessas políticas.

Uma terceira questão também importante é que se poderia criar uma CPMF com alíquotas progressivas, porque permitiria onerar os mais ricos e quem tem maior movimentação financeira. Por exemplo, à medida que subissem as aplicações financeiras e a especulação no setor financeiro, as pessoas pagariam muito mais CPMF, e poderia deixar isento da cobrança da CPMF um determinado valor em conta corrente, de maneira a desonerar os mais pobres nessa situação, assim como operações de crédito popular de baixo valor deveriam ficar isentas de CPMF.

O senhor disse em artigo recente que a carga tributária bruta aumentou entre 1995 e 2004 de 27% para 33% do PIB. Ela é ou não efetiva e por quais razões?

O que está por trás disso que você está querendo saber é quanto a população paga de impostos e como eles retornam na forma de bens e serviços. Na realidade não retornam de modo efetivo, porque, do ponto de vista do direcionamento de recursos do fundo público, eles estão muito canalizados pelo capital. Por exemplo, se tem um conjunto de desonerações tributárias que beneficiam esses setores da sociedade e se tem um terço do orçamento público comprometido com juros e amortização da dívida, então, na hora de pressionar recursos para universalizar a saúde, a educação e outras medidas de proteção social, acabamos tendo enormes dificuldades em fazer isso. Logo, essa é uma questão limitadora e que é sentida pela população.

Por outro lado, também não posso deixar de assinalar que essa carga tributária permite, só no âmbito da Seguridade Social, o pagamento de benefícios para mais de 30 milhões de brasileiros. Ou seja, isso alcança 100 milhões de pessoas – se considerar a família como um todo – na forma de benefícios e pensões, um conjunto de auxílios no campo da Previdência Social e mais o benefícios no campo da Assistência Social, como, o BPC [benefício assistencial ao idoso e à pessoa com deficiência] e ainda o Bolsa Família.

Essa mesma carga tributária financia uma educação que ainda não tem a qualidade que desejamos, mas uma educação pública que, inclusive, em termos de nível superior é gratuita quando se consegue acessar as universidades públicas. Temos também que tomar cuidado nas críticas à forma de execução dessas políticas. Obviamente, elas estão muito aquém do necessário, precisaria pensar em mexer em mecanismos de gestão e também em mecanismos de recursos, porque gastamos cerca da metade do que os países mais desenvolvidos da OCDE gastam em educação e saúde.

Então não seria o caso de aumentar impostos, mas de fazer as reformas que o senhor propõe?

Na realidade tem várias coisas que são muito mais políticas do que técnicas dentro do fundo público no direcionamento dos recursos. Tem que canalizar esses recursos para políticas de fato universais: saúde, previdência social e em outra área que demanda muito e que está fora desse atendimento, que são as políticas públicas urbanas, como habitação, saneamento e transporte. Há uma enorme necessidade de ser alterar isso.

E há uma discussão sobre isso no sentido de que as pessoas cobram muito do governo federal, mas o Brasil é um país federativo. A responsabilidade de grande parte dos gastos em educação e saúde e da infraestrutura urbana é dos estados e municípios, e não da União. A União repassa um volume expressivo de recursos para os entes federativos executarem essas políticas, mas ela que é cobrada por isso, porque as pessoas acabam cobrando da Presidência da República, assim como cobravam da presidenta Dilma, como se fosse ela a culpada, mas não cobram do governador, por exemplo.




 Fonte: IHU

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