Há um engano renitente no pensamento político, aquele que coloca um sinal de igual entre as palavras democracia e liberalismo.
Por José Carlos Ruy
Este engano é levado ao paroxismo em nosso tempo, quando o liberalismo, antecedido da partícula neo, é dominante.
Engano partilhado muitas vezes mesmo por setores democráticos ou de esquerda. E está enraizado na origem histórica que envolveu, desde o século XVIII, a luta contra o poder absoluto das monarquias feudais (Ver Perry Anderson, Linhagens do Estado Absolutista, São Paulo, 1985).
Naquela época a burguesia lutou para se desvencilhar do poder dos reis que tolhia a livre ação do capital. Transformou a luta contra o rei em luta contra o Estado, criando a confusão entre os conceitos de liberalismo e democracia, passando a ver como democrática a luta pela livre ação do capital que, segundo seus interesses, não podia ser regulamentado por leis e regulamentos. Faz sentido, assim, que uma das primeiras providências do governo que surgiu na França revolucionária de 1789 tenha sido alei de Le Chapelier, de 14 de junho de 1791, que, a pretexto da liberdade para o capital, proibiu os sindicatos, as associações de trabalhadores e as greves. E previa penas que iam demultas à prisão e mesmo à pena de morte aos infratores. O estado burguês que surgia, de liberal, transformou-se em tirania contra os trabalhadores, colocando a liberdade de empresa (hoje diríamos “de mercado”) acima de qualquer consideração democrática que reconhecesse os direitos do povo e dos trabalhadores. Naquele momento já ficava clara a enorme diferença que há entre os conceitos de liberalismo e democracia.
O liberalismo, como Domenico Losurdo demonstra em seus escritos (como em Liberalismo - Entre civilização e barbárie, Editora Anita, 2006), conviveu inclusive com o mais nefando dos sistemas, a escravidão. Nele o liberalismo colocou o direito de propriedade dos capitalistas acima do respeito à liberdade individual. Liberaiscomo o brasileiro Nabuco de Araujo não tiveram nenhum escrúpulo em relação à escravização de outros seres humanos.
Nos EUA, nação considerada como a “pátria” da democracia, houve convivência semelhante desde os primeiros anos de independência. Thomas Jefferson (1743–1826), um dos “pais fundadores” da nação, e o principal autor da Declaração de Independência de 1776, ícone do liberalismo, que agiu para criar um estado que não interferisse na vida dos cidadãos, foi um grande latifundiário na Virgínia e foi dono de mais de180 escravos. Conciliou sua crença liberal com aquilo que chamavam então de peculiar institution (instituição peculiar), ou seja, a escravidão dos negros.
Outro ícone liberal estadunidense, John Calhoun, líder do Partido Democrático e personagem de destaque na política dos EUA no início do século XIX, foi um vigoroso defensor da liberdade individual, contra o poder do Estado. Mas conciliava sua crença liberal com a defesa veemente da escravidão, que via como uma forma de propriedade que devia ser garantida pela Constituição.
Um exemplo recente, de nosso tempo, desta aliança entre liberalismo e ditadura pode ser visto no apoio de economistas neoliberais que, sob beneplácito de seu guru da Universidade de Chicago, Milton Freedman, fizeram parte da quipe econômica da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile. Eles estivera, à frente das privatizações naquele país, e usaram a força da ditadura para eliminar direitos sociais e trabalhistas (com o apoio da eliminação física de opositores feita pela repressão da ditadura chilena), impondo as condições favoráveis ao capital e aos “negócios”. Mesmo tendo tentado, anos depois, distanciar-se de Pinochet, declarando que seu regime fora “terrível”, Milton Freedman não economizou elogios à sua ação econômica em defesa dos interesses do grande capital e da “livre empresa”.
A contradição mais forte, neste ponto, é justamente aquela que há entre a defesa intransigente da propriedade e sua proteção contra a ação regulatória que o Estado ou os governos podem promover, no sentido de distribuir mais igualitariamente a renda e a propriedade.
A democracia efetiva, real, que beneficie a todos, e não apenas aos donos do capital, não é a democracia formal que estes aceitam. E que só consiste no exercício do direito de voto e de outras liberdades formais (como a livre manifestação do pensamento, o direito de ir e vir, a liberdade civil necessária para formalizar contratos, etc). A “igualdade perante a lei” que existe nesta democracia, a única aceita pelos liberais, é apenas formal, e nela impera a desigualdade social efetiva que deriva do poder do capital que se sobrepõe a toda a sociedade, a todos os indivíduos que, confrontados com o poder dos donos do dinheiro, são imensamente mais fracos e forçados à submissão.
É nesse sentido que a democracia real,efetiva, exige a ação da sociedade configurada em leis que regulam, para conter a ganância do capital e tornar real a promessa contida na expressão “igualdade de todos perante a lei”.
O liberalismo, desde meados do século XX, arremeda o enfrentamento contra os reis, ocorrido duzentos anos antes, e simula ideologicamente um antiestatista fora de moda e de época, baseado numa pretensa ação “libertária” contra a presença do Estado.
Ora, a realidade social e política mudou! Os poderosos de hoje são os capitalistas e o capital, sendo necessária a força e o pode do Estado para promover o reequilíbrio entre os homens, para impedir que o “mercado” impeça ao povo e aos trabalhadores o acesso à liberdade, aos bens necessários à vida, ao trabalho, alimentação, moradia, saúde, educação, etc., etc., etc..
Capital e trabalho – capitalistas e trabalhadores – são socialmente desiguais, a disparidade entre eles é produto da forma burguesa de organização da sociedade e da produção de bens necessários a todos. Desigualdade que jamais será eliminada pela mera aça do “mercado”, mas por decisões sociais que cabe ao Estado democrático tomar.
Esta é a diferença fundamental entre liberalismo e democracia: o liberalismo exige a liberdade que permita ao capital agir livremente, concentrar riquezas e renda nas mãos de uma minoria ínfima e cada vez mais poderosa e voraz, como a humanidade tem assistido nestes tempos de domínio do neoliberalismo.
Para conter esta ganância destruidora do capital, a democracia exige a força do Estado para ser efetiva e de fato
Engano partilhado muitas vezes mesmo por setores democráticos ou de esquerda. E está enraizado na origem histórica que envolveu, desde o século XVIII, a luta contra o poder absoluto das monarquias feudais (Ver Perry Anderson, Linhagens do Estado Absolutista, São Paulo, 1985).
Naquela época a burguesia lutou para se desvencilhar do poder dos reis que tolhia a livre ação do capital. Transformou a luta contra o rei em luta contra o Estado, criando a confusão entre os conceitos de liberalismo e democracia, passando a ver como democrática a luta pela livre ação do capital que, segundo seus interesses, não podia ser regulamentado por leis e regulamentos. Faz sentido, assim, que uma das primeiras providências do governo que surgiu na França revolucionária de 1789 tenha sido alei de Le Chapelier, de 14 de junho de 1791, que, a pretexto da liberdade para o capital, proibiu os sindicatos, as associações de trabalhadores e as greves. E previa penas que iam demultas à prisão e mesmo à pena de morte aos infratores. O estado burguês que surgia, de liberal, transformou-se em tirania contra os trabalhadores, colocando a liberdade de empresa (hoje diríamos “de mercado”) acima de qualquer consideração democrática que reconhecesse os direitos do povo e dos trabalhadores. Naquele momento já ficava clara a enorme diferença que há entre os conceitos de liberalismo e democracia.
O liberalismo, como Domenico Losurdo demonstra em seus escritos (como em Liberalismo - Entre civilização e barbárie, Editora Anita, 2006), conviveu inclusive com o mais nefando dos sistemas, a escravidão. Nele o liberalismo colocou o direito de propriedade dos capitalistas acima do respeito à liberdade individual. Liberaiscomo o brasileiro Nabuco de Araujo não tiveram nenhum escrúpulo em relação à escravização de outros seres humanos.
Nos EUA, nação considerada como a “pátria” da democracia, houve convivência semelhante desde os primeiros anos de independência. Thomas Jefferson (1743–1826), um dos “pais fundadores” da nação, e o principal autor da Declaração de Independência de 1776, ícone do liberalismo, que agiu para criar um estado que não interferisse na vida dos cidadãos, foi um grande latifundiário na Virgínia e foi dono de mais de180 escravos. Conciliou sua crença liberal com aquilo que chamavam então de peculiar institution (instituição peculiar), ou seja, a escravidão dos negros.
Outro ícone liberal estadunidense, John Calhoun, líder do Partido Democrático e personagem de destaque na política dos EUA no início do século XIX, foi um vigoroso defensor da liberdade individual, contra o poder do Estado. Mas conciliava sua crença liberal com a defesa veemente da escravidão, que via como uma forma de propriedade que devia ser garantida pela Constituição.
Um exemplo recente, de nosso tempo, desta aliança entre liberalismo e ditadura pode ser visto no apoio de economistas neoliberais que, sob beneplácito de seu guru da Universidade de Chicago, Milton Freedman, fizeram parte da quipe econômica da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile. Eles estivera, à frente das privatizações naquele país, e usaram a força da ditadura para eliminar direitos sociais e trabalhistas (com o apoio da eliminação física de opositores feita pela repressão da ditadura chilena), impondo as condições favoráveis ao capital e aos “negócios”. Mesmo tendo tentado, anos depois, distanciar-se de Pinochet, declarando que seu regime fora “terrível”, Milton Freedman não economizou elogios à sua ação econômica em defesa dos interesses do grande capital e da “livre empresa”.
A contradição mais forte, neste ponto, é justamente aquela que há entre a defesa intransigente da propriedade e sua proteção contra a ação regulatória que o Estado ou os governos podem promover, no sentido de distribuir mais igualitariamente a renda e a propriedade.
A democracia efetiva, real, que beneficie a todos, e não apenas aos donos do capital, não é a democracia formal que estes aceitam. E que só consiste no exercício do direito de voto e de outras liberdades formais (como a livre manifestação do pensamento, o direito de ir e vir, a liberdade civil necessária para formalizar contratos, etc). A “igualdade perante a lei” que existe nesta democracia, a única aceita pelos liberais, é apenas formal, e nela impera a desigualdade social efetiva que deriva do poder do capital que se sobrepõe a toda a sociedade, a todos os indivíduos que, confrontados com o poder dos donos do dinheiro, são imensamente mais fracos e forçados à submissão.
É nesse sentido que a democracia real,efetiva, exige a ação da sociedade configurada em leis que regulam, para conter a ganância do capital e tornar real a promessa contida na expressão “igualdade de todos perante a lei”.
O liberalismo, desde meados do século XX, arremeda o enfrentamento contra os reis, ocorrido duzentos anos antes, e simula ideologicamente um antiestatista fora de moda e de época, baseado numa pretensa ação “libertária” contra a presença do Estado.
Ora, a realidade social e política mudou! Os poderosos de hoje são os capitalistas e o capital, sendo necessária a força e o pode do Estado para promover o reequilíbrio entre os homens, para impedir que o “mercado” impeça ao povo e aos trabalhadores o acesso à liberdade, aos bens necessários à vida, ao trabalho, alimentação, moradia, saúde, educação, etc., etc., etc..
Capital e trabalho – capitalistas e trabalhadores – são socialmente desiguais, a disparidade entre eles é produto da forma burguesa de organização da sociedade e da produção de bens necessários a todos. Desigualdade que jamais será eliminada pela mera aça do “mercado”, mas por decisões sociais que cabe ao Estado democrático tomar.
Esta é a diferença fundamental entre liberalismo e democracia: o liberalismo exige a liberdade que permita ao capital agir livremente, concentrar riquezas e renda nas mãos de uma minoria ínfima e cada vez mais poderosa e voraz, como a humanidade tem assistido nestes tempos de domínio do neoliberalismo.
Para conter esta ganância destruidora do capital, a democracia exige a força do Estado para ser efetiva e de fato
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