Um livro recém-lançado mostra como o exército indonésio foi responsável pelo massacre sistemático de comunistas e esquerdistas no genocídio de 1965-66 - e que as ordens vieram diretamente de cima.
Por Por Max Lane*
O novo livro de Jess Melvin, Exército e Genocídio na Indonésia, foi corretamente saudado como um avanço, revelando os atores por trás do assassinato em massa de centenas de milhares de esquerdistas indonésios (e de membros da minoria étnica chinesa no país). Melvin abre uma brecha na história dominante sobre o genocídio de 1965-66 na Indonésia.
O Estado indonésio sempre alegou que os assassinatos de comunistas ou esquerdistas foi limitado, e que resultou de uma raiva anticomunista espontânea entre pessoas comuns. Não foram, insistiram as autoridades, sistemáticos nem realizados pelo Exército.
A maioria dos estudos acadêmicos, embora muito variados e diferenciados em relação à versão oficial, deu credibilidade a ela. No relato dominante, o presidente Sukarno, um reformista autocrático de esquerda, tentava equilibrar o Partido Comunista da Indonésia (que era seu aliado) e o exército (que era hostil ao Partido Comunista). Mas as coisas ficaram desequilibradas e saíram do controle. Os assassinatos em massa podem ter sido lamentáveis, mas teriam resultado da incapacidade de Sukarno de se manter nessa perigosa corda bamba.
Melvin despedaça metodicamente essa mitologia, com base em documentos internos do exército. Mostra que os assassinatos foram de fato organizados pelo exército, seguindo ordens que vieram de cima.
Melvin não é a primeira a compreender a dinâmica subjacente ao genocídio. Escritores de direita, nos anos 1960, como Justus van de Kroef e o jornalista anticomunista Arnold Brackman, entenderam que havia uma verdadeira batalha pelo poder entre o exército, o Partido Comunista e outros grupos de esquerda e Sukarno.
No mundo acadêmico, estudos recentes de John Roosa (autor do livro publicado em 2006, Pretext for Mass Murder – Pretexto para assassinato em massa) e Geoffrey Robinson (cujo livro foi publicado em 2018, The Killing Season – Tempo de matar) também mostraram que a explosão de violência foi premeditada e ideologicamente preparada. Mas Melvin, uma estudiosa da Universidade de Yale, dá o golpe de misericórdia na mitologia de direita, e refuta decisivamente a apologia dos militares indonésios.
O genocídio
O livro de Jess Melvin, Exército e Genocídio na Indonésia, é um avanço de pelo menos duas maneiras.
Primeiro, usando documentos do exército - que descobriu ao pesquisar num arquivo na província indonésia de Aceh – ela pode mostrar, sem qualquer sombra de dúvida, que foi o Alto Comando do Exército, tomado pelo general anticomunista Suharto, que iniciou e supervisionou o assassinato em massa, as prisões, expurgos e torturas em 1965/1966. Ela fornece documentos internos, tanto a nível nacional (como telegramas da sede do exército na capital, Jacarta) quanto a nível local (material do exército e do governo civil) que revelam a brutalidade cuidadosa e deliberada dos assassinatos. Talvez o instrumento mais fumegante sejam documentos indicando que as ordens para aniquilar o Partido Comunista (PKI) vieram do próprio Suharto.
Os assassinatos em massa passaram por quatro etapas organizadas: uma fase de iniciação, uma fase de violência pública, uma fase de assassinatos em massa sistemáticos e uma fase final de consolidação, que também incluiu expurgos. O derramamento de sangue irrompeu depois de uma conspiração fracassada de membros do PKI, que tentavam substituir o Alto Comando do Exército por figuras mais amigáveis. Foi uma tentativa mal organizada, prematura - e realizado sem o conhecimento de seus companheiros e apoiadores de massa. Os militares usaram isso como pretexto para lançar um contra-ataque devastador.
Mais de um milhão de pessoas foram mortas, a maioria no final de 1965 e 1966. Depois de uma onda inicial de execuções públicas, a maioria das execuções ocorreu à noite, em segredo. Unidades do exército se moviam de uma área para outra, ensangüentando o país com massacres em massa. Milícias civis anticomunistas participaram da matança. Mesmo aqueles que escaparam com vida não saíram impunes. Dezenas de milhares de pessoas foram jogadas em prisões. Em última análise, pelo menos quinze mil foram presas por até 14 anos.
A missão genocida teve êxito. O PKI foi riscado do cenário político, Suharto assumiu o poder, e a esquerda indonésia, desde então ficou praticamente inexistente.
É impossível acreditar, deve-se acrescentar, que os governos dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Austrália não estavam cientes dos preparativos de longo prazo feitos pelas forças anti-comunistas. Os três governos davam apoio concreto às unidades do exército de direita e grupos políticos já nos anos 50. E saudaram o violento esmagamento da esquerda organizada da Indonésia em 1965-66.
Uma segunda parte importante da análise de Melvin é o detalhamento da infraestrutura usada para erradicar o PKI e tomar o poder. Melvin mostra como as estruturas de comando militar anteriormente exercidas para implementar a lei marcial e campanhas militares (primeiro para expulsar os holandeses da Papua Ocidental colonizada e depois para perturbar a formação da Malásia), combinadas com a estrutura territorial das Forças Armadas indonésias, foram usadas para apoiar assassinatos, expurgos e repressão sistemática.
Ao enquadrar os eventos de 1965 como o clímax de uma “luta pelo estado indonésio”, Melvin refuta as antigas alegações de raiva espontânea da massa ou processos políticos descontrolados. Ao fazê-lo, ela destaca outros eventos importantes no período que antecedeu o genocídio.
Crucialmente, seu enfoque detalha o leque de forças reunidas na província de Aceh e mostra a dinâmica no terreno de uma luta política em curso - uma luta que vinha evoluindo durante um longo período e estava enraizada na sociedade como um todo.
Em Aceh, a força do PKI aumentou ao longo dos anos 1950 e início dos anos 1960. O resultado foi a extrema polarização. Um abismo se abriu entre o PKI e a coalizão de elite civil, incluindo figuras religiosas e o Exército. Em 1965, o PKI e as organizações a ele ligadas tinham cerca de 20 milhões de membros em todo o país. A maioria era de camponeses num país predominantemente rural; mas trabalhadores urbanos também se juntaram ao partido. E em 1965 seus filiados aumentaram ainda mais. Ao mesmo tempo, o Partido Nacional Indonésio (PNI) também desenvolveu um programa de esquerda que conquistou a adesão de milhões de membros.
Para as elites civis e militares anticomunistas, isso era simplesmente inaceitável. “A luta pelo estado indonésio” foi, portanto, uma luta em defesa de sua ação contra a insurgência política crescente - desarmada, legal e aberta, mas à margem da elite. Que desenvolveu uma infra-estrutura de contra-revolução que implementou com uma brutalidade implacável. Além do massacre de membros do PKI, muitos dos principais ativistas do PNI foram mortos. Artistas e intelectuais associados ao PKI e PNI foram presos. Partidos de esquerda menores, como o Partido da Indonésia e o Angkatan Komunis Muda também tiveram membros mortos ou presos.
O futuro
Nos últimos anos, tanto dentro quanto fora da Indonésia, houve várias iniciativas envolvendo acadêmicos, artistas e ativistas democráticos cujo objetivo é acabar com o silêncio em torno do genocídio indonésio.
Jovens indonésios - estudantes universitários em particular - estão mais livres para ler livros e artigos sobre o assunto, bem como acessar a internet. Intelectuais e ativistas enfrentam ameaças de grupos de direita e se recusam a ceder à indiferença do atual governo em buscar justiça.
O livro de Melvin, especialmente quando estiver disponível em indonésio, será um grande impulso para esses esforços.
A luta pelo estado indonésio cresceu a partir das forças concorrentes na sociedade indonésia. 1965 representou a vitória mais ou menos total de um lado, consolidada pelo genocídio, terror, expurgos e repressão nacional e centralmente organizados. As tentativas crescentes de expor essa verdade, por modestas que sejam, podem ser parte dos passos iniciais de uma esquerda revivida. E talvez até mesmo a faísca para lutas sociais mais amplas.
(*) Há mais de cinquenta anos Max Lane é socialista na Austrália, autor dos livros Nação inacabada: a Indonésia antes e depois de Suharto, e Catástrofe na Indonésia
O Estado indonésio sempre alegou que os assassinatos de comunistas ou esquerdistas foi limitado, e que resultou de uma raiva anticomunista espontânea entre pessoas comuns. Não foram, insistiram as autoridades, sistemáticos nem realizados pelo Exército.
A maioria dos estudos acadêmicos, embora muito variados e diferenciados em relação à versão oficial, deu credibilidade a ela. No relato dominante, o presidente Sukarno, um reformista autocrático de esquerda, tentava equilibrar o Partido Comunista da Indonésia (que era seu aliado) e o exército (que era hostil ao Partido Comunista). Mas as coisas ficaram desequilibradas e saíram do controle. Os assassinatos em massa podem ter sido lamentáveis, mas teriam resultado da incapacidade de Sukarno de se manter nessa perigosa corda bamba.
Melvin despedaça metodicamente essa mitologia, com base em documentos internos do exército. Mostra que os assassinatos foram de fato organizados pelo exército, seguindo ordens que vieram de cima.
Melvin não é a primeira a compreender a dinâmica subjacente ao genocídio. Escritores de direita, nos anos 1960, como Justus van de Kroef e o jornalista anticomunista Arnold Brackman, entenderam que havia uma verdadeira batalha pelo poder entre o exército, o Partido Comunista e outros grupos de esquerda e Sukarno.
No mundo acadêmico, estudos recentes de John Roosa (autor do livro publicado em 2006, Pretext for Mass Murder – Pretexto para assassinato em massa) e Geoffrey Robinson (cujo livro foi publicado em 2018, The Killing Season – Tempo de matar) também mostraram que a explosão de violência foi premeditada e ideologicamente preparada. Mas Melvin, uma estudiosa da Universidade de Yale, dá o golpe de misericórdia na mitologia de direita, e refuta decisivamente a apologia dos militares indonésios.
O genocídio
O livro de Jess Melvin, Exército e Genocídio na Indonésia, é um avanço de pelo menos duas maneiras.
Primeiro, usando documentos do exército - que descobriu ao pesquisar num arquivo na província indonésia de Aceh – ela pode mostrar, sem qualquer sombra de dúvida, que foi o Alto Comando do Exército, tomado pelo general anticomunista Suharto, que iniciou e supervisionou o assassinato em massa, as prisões, expurgos e torturas em 1965/1966. Ela fornece documentos internos, tanto a nível nacional (como telegramas da sede do exército na capital, Jacarta) quanto a nível local (material do exército e do governo civil) que revelam a brutalidade cuidadosa e deliberada dos assassinatos. Talvez o instrumento mais fumegante sejam documentos indicando que as ordens para aniquilar o Partido Comunista (PKI) vieram do próprio Suharto.
Os assassinatos em massa passaram por quatro etapas organizadas: uma fase de iniciação, uma fase de violência pública, uma fase de assassinatos em massa sistemáticos e uma fase final de consolidação, que também incluiu expurgos. O derramamento de sangue irrompeu depois de uma conspiração fracassada de membros do PKI, que tentavam substituir o Alto Comando do Exército por figuras mais amigáveis. Foi uma tentativa mal organizada, prematura - e realizado sem o conhecimento de seus companheiros e apoiadores de massa. Os militares usaram isso como pretexto para lançar um contra-ataque devastador.
Mais de um milhão de pessoas foram mortas, a maioria no final de 1965 e 1966. Depois de uma onda inicial de execuções públicas, a maioria das execuções ocorreu à noite, em segredo. Unidades do exército se moviam de uma área para outra, ensangüentando o país com massacres em massa. Milícias civis anticomunistas participaram da matança. Mesmo aqueles que escaparam com vida não saíram impunes. Dezenas de milhares de pessoas foram jogadas em prisões. Em última análise, pelo menos quinze mil foram presas por até 14 anos.
A missão genocida teve êxito. O PKI foi riscado do cenário político, Suharto assumiu o poder, e a esquerda indonésia, desde então ficou praticamente inexistente.
É impossível acreditar, deve-se acrescentar, que os governos dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Austrália não estavam cientes dos preparativos de longo prazo feitos pelas forças anti-comunistas. Os três governos davam apoio concreto às unidades do exército de direita e grupos políticos já nos anos 50. E saudaram o violento esmagamento da esquerda organizada da Indonésia em 1965-66.
Uma segunda parte importante da análise de Melvin é o detalhamento da infraestrutura usada para erradicar o PKI e tomar o poder. Melvin mostra como as estruturas de comando militar anteriormente exercidas para implementar a lei marcial e campanhas militares (primeiro para expulsar os holandeses da Papua Ocidental colonizada e depois para perturbar a formação da Malásia), combinadas com a estrutura territorial das Forças Armadas indonésias, foram usadas para apoiar assassinatos, expurgos e repressão sistemática.
Ao enquadrar os eventos de 1965 como o clímax de uma “luta pelo estado indonésio”, Melvin refuta as antigas alegações de raiva espontânea da massa ou processos políticos descontrolados. Ao fazê-lo, ela destaca outros eventos importantes no período que antecedeu o genocídio.
Crucialmente, seu enfoque detalha o leque de forças reunidas na província de Aceh e mostra a dinâmica no terreno de uma luta política em curso - uma luta que vinha evoluindo durante um longo período e estava enraizada na sociedade como um todo.
Em Aceh, a força do PKI aumentou ao longo dos anos 1950 e início dos anos 1960. O resultado foi a extrema polarização. Um abismo se abriu entre o PKI e a coalizão de elite civil, incluindo figuras religiosas e o Exército. Em 1965, o PKI e as organizações a ele ligadas tinham cerca de 20 milhões de membros em todo o país. A maioria era de camponeses num país predominantemente rural; mas trabalhadores urbanos também se juntaram ao partido. E em 1965 seus filiados aumentaram ainda mais. Ao mesmo tempo, o Partido Nacional Indonésio (PNI) também desenvolveu um programa de esquerda que conquistou a adesão de milhões de membros.
Para as elites civis e militares anticomunistas, isso era simplesmente inaceitável. “A luta pelo estado indonésio” foi, portanto, uma luta em defesa de sua ação contra a insurgência política crescente - desarmada, legal e aberta, mas à margem da elite. Que desenvolveu uma infra-estrutura de contra-revolução que implementou com uma brutalidade implacável. Além do massacre de membros do PKI, muitos dos principais ativistas do PNI foram mortos. Artistas e intelectuais associados ao PKI e PNI foram presos. Partidos de esquerda menores, como o Partido da Indonésia e o Angkatan Komunis Muda também tiveram membros mortos ou presos.
O futuro
Nos últimos anos, tanto dentro quanto fora da Indonésia, houve várias iniciativas envolvendo acadêmicos, artistas e ativistas democráticos cujo objetivo é acabar com o silêncio em torno do genocídio indonésio.
Jovens indonésios - estudantes universitários em particular - estão mais livres para ler livros e artigos sobre o assunto, bem como acessar a internet. Intelectuais e ativistas enfrentam ameaças de grupos de direita e se recusam a ceder à indiferença do atual governo em buscar justiça.
O livro de Melvin, especialmente quando estiver disponível em indonésio, será um grande impulso para esses esforços.
A luta pelo estado indonésio cresceu a partir das forças concorrentes na sociedade indonésia. 1965 representou a vitória mais ou menos total de um lado, consolidada pelo genocídio, terror, expurgos e repressão nacional e centralmente organizados. As tentativas crescentes de expor essa verdade, por modestas que sejam, podem ser parte dos passos iniciais de uma esquerda revivida. E talvez até mesmo a faísca para lutas sociais mais amplas.
(*) Há mais de cinquenta anos Max Lane é socialista na Austrália, autor dos livros Nação inacabada: a Indonésia antes e depois de Suharto, e Catástrofe na Indonésia
Tradução: José Carlos Ruy
Fonte: Jacobin
Fonte: Jacobin
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