sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A importância do Estado para o ensino superior dos EUA


 

  




A condução coercitiva injustificada dos reitores da UFMG foi o último, mas não o único, dos ataques sofridos pelas universidades públicas no Brasil após o golpe de 2016. Em meio à redução brutal de recursos destinados à pesquisa e pós-graduação imposta por Temer, presenciamos a retomada do discurso privatizante, eco do início da década de 1990, quando a medida da importância das universidades era feita pelo número de carros nos estacionamentos dos campi ao redor do País.

Ainda que sem base empírica, mas na tentativa de sustentar essa lógica privatista rediviva, repete-se o argumento de que nos Estados Unidos as principais universidades são privadas. Esse discurso reitera não só a ideia de que a maioria das universidades americanas é privada (algo que os fatos desmentem), mas também a noção de que estas seriam mantidas essencialmente com verbas do setor privado.

É verdade que os EUA abrigam muitas das mais prestigiadas universidades do mundo, algumas delas privadas. Na verdade, elas são fundações sem fim lucrativo, uma vez que as que visam ao lucro são péssimas e extremamente malvistas.

É preciso deixar claro, contudo, que mesmo essas ilhas de excelência acadêmica não chegaram a esse ponto contando somente com capital privado. Mesmo nos dias de hoje, elas não conseguiriam se sustentar sem a decisiva participação de diferentes instituições e agências públicas de fomento nas áreas de pesquisa e ensino, seja no nível federal, seja no estadual.

Até meados do século XIX, o modelo que vigorava na educação superior dos Estados Unidos era elitista, voltado para um saber que buscava descobrir as “verdades científicas” e “formar o caráter” dos filhos das elites dirigentes, sem preocupação com a ampliação do perfil universitário da população.

De fato, somente após o término da Guerra Civil americana, em 1865, houve uma profunda ampliação do acesso ao sistema universitário por meio da criação de universidades estaduais públicas (com os chamados Land-Grant Acts), que até hoje são os principais responsáveis pelo ensino de graduação, pós-graduação e mesmo pesquisa nesse país.

Outro marco definidor da expansão e fortalecimento do ensino superior foi a Segunda Guerra Mundial, quando o governo de Franklin Delano Roosevelt passa a conceber as universidades como essenciais na luta contra o fascismo e o nazismo. Inúmeros programas financiados pelo governo passaram a fazer parte das atividades universitárias, tanto nas chamadas “ciências exatas” quanto nas “humanas”.

Ainda que com restrições a uma reflexão mais crítica sobre o papel das ciências na sociedade, esse aporte público permitiu, novamente, o aprofundamento da pesquisa científica e tecnológica, assim como a quase universalização do ensino superior, e um crescimento do número de vagas sem precedentes, por meio de programas de bolsas públicas aos ex-veteranos, conhecido como o “GI Bill”.

Aos poucos, essa dinâmica histórica se diversifica de modo importante. A vinda de intelectuais europeus, antes e durante a Guerra, aumenta de imediato a capacidade de reflexão das universidades americanas, de modo especial nas ciências humanas, que adquirem viés mais crítico.

Esse processo se aprofunda durante a Guerra Fria, quando, embora a ênfase tecnológica e belicista do período tenha permanecido vigente, há o fortalecimento do movimento em prol de maior autonomia acadêmica e uma academia mais democrática, levando à ampliação na quantidade e qualidade dos financiamentos públicos para as disciplinas chamadas “humanas”.

Nos anos 1960 e 1970, com a mobilização crescente de grupos sociais tradicionalmente excluídos, como os afro-americanos, latinos, indígenas e os movimentos de emancipação das mulheres, houve novo esforço de democratização das universidades.

Novos currículos, mais abrangentes, inclusivos e críticos consolidam-se juntamente com o movimento em favor da liberdade de pensamento na Academia (por meio da efetivação e estabilidade do emprego de professor, a chamada tenure, existente até hoje).

Outro ponto importante é a criação de redes de pesquisa nacionais (hoje globais), também possibilitada por investimentos diretos na criação de algumas das melhores bibliotecas universitárias do mundo. Muitas de caráter exclusivamente público. 

Um dos argumentos frequentemente utilizados para atacar as universidades públicas é a comparação, descabida, entre as instituições brasileiras e as americanas, em termos de resultados de pesquisa e financiamento privado.

Colocam-se, lado a lado, os números de Prêmios Nobel, publicações, patentes requeridas e, em seguida, afirma-se que o ensino superior nos EUA é majoritariamente privado. A noção de que tudo que é privado é melhor do que qualquer coisa pública se encarrega de apontar o caminho das privatizações ao Brasil. Tal argumento é falacioso por uma série de razões.

Em primeiro lugar, o modelo de financiamento das universidades americanas não é essencialmente privado. Não é hoje, nem historicamente foi ao longo do século XX. Além disso, é preciso lembrar que as condições de produção econômica, assim como de produção científica, diferem imensamente entre o Brasil e os EUA, e tais condições são facilitadoras ou empecilhos à pesquisa e ao ensino.

Por fim, cabe ressaltar que grande parte do que foi conquistado na academia americana resultou do apoio institucional aos seus membros, por meio das redes de pesquisa, formação, publicações, assim como da garantia da liberdade de pensamento e da estabilidade no emprego, a vigorar em todas as instituições, públicas ou privadas.

Infelizmente, muitas dessas conquistas estão sob ameaça. De fato, há sincronismo entre o ataque do governo Trump aos intelectuais e às instituições de ensino superior nos Estados Unidos e a ofensiva do governo Temer, no Brasil. Ambos veem as universidades como ameaças, muito por serem capazes de produzir cidadãos que valorizam a ciência, a racionalidade e os fatos.

Segundo essa visão conservadora, instituições centradas na promoção do pensamento crítico devem ser demonizadas, enfraquecidas e rapidamente entregues aos interesses privados, embora estes nunca tenham se demonstrado capazes de manter ensino e pesquisa de qualidade e extensão necessários, nem nos EUA nem, muito menos, no Brasil.

A mesma lógica que defende a austeridade no tocante à educação também afirma que a Terra é plana, que o nazismo era de esquerda e que se pode julgar cidadãos com base na Bíblia. Esta é uma visão que define a si mesma como “defensora da liberdade”, enquanto impõe aos outros barreiras no exercício efetivo das mesmas.

A questão é: para que serve o conhecimento? Para fazer da sociedade um espaço de exercício e convivência pacífica entre as diferenças que pautam nossas vidas? Ou para conformar todos a um pensamento baseado na ideia de lucro, consumo, finitude e escassez, que não vê saída senão na luta física e política de todos contra todos pela sobrevivência?

As universidades brasileiras ainda deixam muito a desejar no que se refere à sua capacidade de servir como instrumento de inclusão socioeconômica, mas ocorreram inegáveis avanços nos últimos 20 anos.

As mudanças introduzidas desde 2003 “mudaram a cara e a cor” dos campi. Há ainda muito no que se avançar, mas a atual afronta às universidades públicas, em vez de aprofundar o necessário debate sobre seu papel na sociedade, estereotipa, reduz e obscurece os possíveis caminhos a serem tomados.

O que precisamos é de um debate público baseado não em falácias e mitos, mas sim em dados históricos claros, examinados à luz de objetivos nacionais democraticamente definidos e inclusivamente encaminhados. 

* Aaron Schneider é professor de Estudos Internacionais na Escola Korbel da Universidade de Denver e diretor do programa de mestrado em Desenvolvimento. Fernando Horta é doutorando em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Rafael R. Ioris é professor de História e Política Comparada na Universidade de Denver 


Fonte: Carta Capital 

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