Por Sergio Lirio, na revista CartaCapital:
"Uma luz no fim do túnel”, decreta o editorial de O Estado de S. Paulo da terça-feira 11, dia seguinte à aprovação na Câmara dos Deputados da emenda constitucional que limita os gastos em saúde e educação.
“Piso para o futuro”, proclamava o editorial da Folha de S.Paulo do dia anterior, em defesa da mesma emenda.
“Pós-impeachment destrava negócios e atrai estrangeiros”, comemora a manchete da sexta-feira 14 do Valor Econômico.
“Gasolina deve cair mais e ajudar na redução de juros”, prevê O Globo em sua manchete do sábado 15.
O esforço dos meios de comunicação tradicionais para emular um ambiente positivo na política e na economia é perceptível a olhos nus, basta trafegar pelas páginas de jornais ou dedicar algum tempo ao noticiário na tevê e no rádio.
É possível, no entanto, demonstrá-lo de maneira mais cabal. Um levantamento do site Manchetômetro, sistema de monitoramento das notícias publicadas nos principais diários do Brasil gerenciado pelo Laboratório de Mídia e Esfera Pública, ligado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, transformou em gráfico a inflexão da cobertura dos temas econômicos após o impeachment de Dilma Rousseff.
Conforme se vê à página 23, as menções negativas despencaram a partir de abril deste ano, após atingir picos entre agosto de 2015 e fevereiro último, auge da campanha em favor da deposição da presidenta eleita.
Outros dois gráficos complementam a interpretação do comportamento da mídia: predominam no caso de Michel Temer as citações interpretadas pelo laboratório como neutras, enquanto no caso de Dilma Rousseff as referências negativas superam em muito aquelas positivas ou neutras. Da mesma forma, o pico acontece no período mais intenso da operação para removê-la da Presidência da República.
Criador do Manchetômetro, o professor João Feres Jr. diz não ter dúvidas sobre o papel dos meios de comunicação no processo de derrubada da presidenta: “A mídia trabalhou ativamente pelo impeachment”. Feres Jr. destaca a “escalada brutal” das menções negativas à presidenta e à economia após as eleições de 2014. Segundo ele, o tom anti-Dilma prevaleceu até quando os temas eram controversos e exigiam, por sua natureza, uma postura mais equilibrada do jornalismo.
“Certas delações premiadas e a condução coercitiva do Lula foram tratadas como se encerrassem verdades absolutas. O mesmo não se viu, para citar um caso, em relação ao Aécio Neves. Apesar de o nome do senador ter sido mencionado ao menos seis vezes por delatores da Lava Jato, o total de menções negativas a ele nem se compara.”
Feres Jr. não usa o termo, mas se o Manchetômetro captou uma espécie de “jornalismo de guerra” contra Dilma Rousseff, é previsível a mudança de humor dos meios de comunicação após a vitória consumada. Diante de propostas e medidas de “ajuste fiscal” muito parecidas, a má vontade transmutou-se em benevolência. Os indicadores econômicos, diga-se, não mudaram de forma substancial, ao contrário, continuam a piorar e desautorizam a euforia estampada nos jornais.
O desemprego beira os 12%, o Produto Interno Bruto caiu 0,9 em agosto e 5,6% em doze meses, o País tornou-se um pária nas relações internacionais, o que tende a afastar investidores estrangeiros, o número de falências é recorde, os juros continuam escandalosos e o teto de gastos celebrados em editoriais vai representar, segundo cálculos diversos, uma redução de quase 700 bilhões de reais nos investimentos em saúde e educação ao longo dos próximos 20 anos.
Quiçá a “luz no fim do túnel” seja uma autorreferência. Nenhum outro setor teve suas demandas atendidas com tanta rapidez pelo novo governo. Os primeiros atos de Temer trataram de reconcentrar os investimentos publicitários federais nos maiores veículos, boicotar quem tem um posicionamento crítico, CartaCapital incluída, e desmontar o sistema público de radiodifusão concebido no segundo mandato de Lula.
O jornalista Miguel do Rosário publicou em seu blog, O Cafezinho, os mais recentes dados oficiais de gastos publicitários do governo e das estatais. Surpresas? Nada. Entre maio e agosto, a TV Globo, que engolfa cerca de 60% dos anúncios no segmento, recebeu 24,4% a mais do governo federal do que em igual período do ano passado. O aumento do repasse para a Abril, que edita Veja, foi de 624,3%. A Folha de S.Paulo e seu portal UOLembolsaram 78,1% a mais. A Band, 1.129,4%.
Quando se comparam períodos mais longos (de janeiro a agosto), aparecem informações curiosas como a extraordinária expansão de 3.759,4% nos repasses à revista Caras, de fofocas e celebridades. Tal desempenho talvez explique a súbita decisão da Editora Abril, que em recente reestruturação havia se livrado da publicação, de recolocar o título em seu portfólio.
Não há informações sobre a IstoÉ. A revista está, no entanto, recheada de anúncios federais, embora sua circulação não seja mais auditada pelo IVC, principal órgão de verificação do mercado editorial. Ou seja, a União investe na publicação, embora não possua mais um dado confiável e público a respeito do número de leitores da revista.
Apesar do estado de calamidade da economia e da urgência de medidas para melhorar a situação fiscal do País, as primeiras decisões de Temer, ainda na fase de interinidade, visaram o setor de comunicação. No dia seguinte ao afastamento temporário de Dilma Rousseff pelo Senado, o governo cancelou um patrocínio de 100 mil reais da Caixa Econômica Federal para um seminário de blogueiros independentes (então acusados de “dilmistas”) em Belo Horizonte.
Após a remoção definitiva da presidenta, as coisas só pioraram. Por ordem da Secretaria de Comunicação, controlada pelo ministro Eliseu Padilha, foram cancelados os contratos com sites e blogs progressistas (petistas, segundo o novo governo) no valor de 11 milhões de reais, quantia irrisória diante dos gastos bilionários em publicidade estatal nos veículos tradicionais.
O governo justificou a decisão com o argumento de que os anúncios federais devem ser publicados em produtores de notícia e não em espaços de opinião. A Secom também foi orientada a excluir CartaCapital de qualquer programação de mídia. A ordem tem sido cumprida à risca desde então.
Coincidência ou não, na mesma época o presidente da Associação de Mídias Evangélicas, Orli Rodrigues, afirmou que Temer havia prometido premiar as emissoras religiosas com publicidade estatal. O assunto mereceu uma cobertura especial de O Globo e não se sabe se a promessa foi ou será cumprida (em consequência da rixa com a Igreja Universal, proprietária da Record, os Marinho têm restrições a esse tipo de iniciativa).
Além de cortar a publicidade de quem critica explicitamente o processo de impeachment, Temer promoveu o desmonte da tevê pública. Por meio de uma Medida Provisória, destituiu o jornalista Ricardo Melo da presidência da Empresa Brasileira de Comunicação, eleito para um mandato de quatro ano, e instalou em seu lugar Laerte Rímoli, apaniguado do ex-deputado Eduardo Cunha, preso na quarta-feira 19 pela Operação Lava Jato.
A MP ainda extinguiu o Conselho Curador, criado justamente para garantir o caráter público e não estatal da EBC. “O governo agiu para enterrar de vez qualquer possibilidade de fortalecimento de um projeto de tevê pública”, afirma Venício Lima, um dos principais estudiosos de mídia do Brasil, atualmente pesquisador sênior do Centro de Estudos Republicanos da Universidade Federal de Minas Gerais.
A EBC sempre foi tratada pelos meios de comunicação privados como um arroubo “bolivariano” e doutrinário dos governos petistas, mas é justamente sob a administração de Rímoli que se acumulam denúncias de intervenção no conteúdo.
Funcionários da empresa, sob anonimato, relatam frequentes casos de censura interna. Na cobertura da aprovação da PEC do teto de gastos, entrevistas com parlamentares e especialistas contrários à medida teriam sido proibidas ou desestimuladas. Não seria o único caso. Segundo esses relatos, a EBC é, hoje, literalmente, uma tevê “chapa branca”.
Durante seminário em São Paulo no fim de setembro, o uruguaio Edison Lanza, relator para a liberdade de expressão da Organização dos Estados Americanos, declarou-se preocupado com a intervenção na EBC, a tentativa de calar as vozes discordantes e a repressão aos protestos contra Temer. “A falta de políticas para a pluralidade midiática no Brasil é um problema grave para a democracia e para o próprio sistema de comunicação”, afirmou. “Não existe democracia consolidada sem liberdade de expressão.”
Presidente do Barão de Itararé, centro de estudos da mídia alternativa mantido por blogueiros independentes, Altamiro Borges recorre a uma brincadeira para resumir o momento: “O governo Temer não tem as preocupações republicanas do PT. Com a turma do PMDB, a conversa é outra. O objetivo é sufocar quem os critica”.
Entenda-se o contexto das “preocupações republicanas” petistas descritas por Borges. Constantemente acusados de alimentar com dinheiro público meios de comunicação “simpáticos às suas causas”, os governos de Lula e Dilma Rousseff oscilaram em suas políticas de comunicação.
Salvo exceções, foram reações espasmódicas à conjuntura, desconectadas de qualquer estratégia para ampliar e garantir a pluralidade de informação. No segundo mandato de Lula, quando o jornalista Franklin Martins chefiava a Secom, foram adotados critérios técnicos que ampliaram e regionalizaram a distribuição das verbas publicitárias.
A quantidade de meios de comunicação agraciados com publicidade estatal sextuplicaram: de cerca de 300 durante o governo Fernando Henrique Cardoso para quase 2 mil, o que melhorou a eficiência da comunicação do governo e, embora de maneira tímida, estimulou alguma diversidade de opinião. Os sucessores de Martins no governo Dilma abandonaram, no entanto, essa orientação e voltaram a reconcentrar os recursos nos oligopólios.
Resultado: apesar das acusações dos adversários políticos e da mídia hegemônica, o PT reproduziu ao longo de seus 13 anos no poder a lógica dos investimentos de governos anteriores, como se percebe no gráfico à página 22.
Entre 2003 e 2014, a Globo recebeu mais de 6 bilhões de reais em anúncios. CartaCapital, 61 milhões, média de 2 milhões por ano. “A Dilma manteve anúncios naqueles meios de comunicação que ela chamou de criminosos. Os principais veículos, alimentados com dinheiro público, apostaram o tempo todo na desestabilização do governo”, ressalta Borges.
Trata-se de um cacoete do PT, diga-se. Ou um misto de arrogância e ingenuidade. No primeiro mandato de Lula, o senador peemedebista Roberto Requião defendeu a criação de uma rede pública de comunicação, que só sairia do papel seis anos depois, e ouviu do então ministro José Dirceu: “Para quê? Já temos a Globo”.
Dirceu hoje mofa na cadeia e não contou com nenhum beneplácito da família Marinho. Antonio Palocci organizou uma operação de salvamento da mesma Globo por meio do BNDES quando ocupava o Ministério da Fazenda. Atualmente faz companhia a Dirceu em Curitiba.
E Dilma, sempre que confrontada com a tese da necessidade de combater o oligopólio midiático, saía-se com o argumento batido do poder do “controle remoto”, o poder de escolha do consumidor, como se existisse uma gama heterodoxa de opções. Acabou destituída sem ter conseguido explicar para a maioria dos eleitores que seu afastamento atropelou os preceitos constitucionais.
Nenhum outro agrupamento partidário, lembra Borges, atuou ou atua na comunicação pública com a preocupação de parecer isento e transparente. Sob comando do PSDB há duas décadas, o estado de São Paulo, dono do segundo maior orçamento publicitário da República, não parece se abalar com as acusações de favorecer a “mídia simpática” a seu projeto de poder.
Segundo levantamento da jornalista Conceição Leme, entre 2003 e 2014, o Estado gastou sem licitação 155,5 milhões de reais em assinaturas dos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo e das revistas Veja, Época e IstoÉ. As edições foram enviadas a bibliotecas públicas e escolas sob o pretexto de serem “fontes de boa informação e educação”.
Não foram os únicos contemplados. Em cinco anos, o governador Geraldo Alckmin aplicou 4,5 milhões de reais em publicações do futuro prefeito da capital João Doria, seu correligionário. Doria edita, entre outras, a fundamental revista Caviar Lifestyle.
O governo Temer não destoa da tendência na América do Sul a partir da derrota de governos ditos de esquerda. Na Argentina, o presidente Mauricio Macri igualmente fez questão de pagar um tributo à mídia ao assumir. Entre as primeiras decisões de Macri figura odesmonte da lei de meios aprovada no último mandato de Cristina Kirchner.
Detalhe: a legislação kirchnerista promoveu uma reforma radical do setor, nunca pensada no Brasil. A “ley de medios” forçou a desconcentração dos oligopólios, obrigou o Grupo Clarín a se desfazer de uma série de empresas e transferiu para a tevê pública o controle da transmissão dos jogos de futebol.
Aqui, a influência da Globo sobre a CBF e os clubes não só distorce a concorrência no mercado de tevê. Ela está na raiz dos escândalos de corrupção investigados dentro e fora do País (a maior parte da propina paga a dirigentes da Fifa saiu da negociação dos direitos televisivos dos torneios internacionais).
Embora pontualmente se registrem recuos em favor de interesses privados nas sólidas legislações de comunicação criadas no século XX na maioria das nações, nada se assemelha à realidade brasileira. Os Estados Unidos, o mais liberal dos países desenvolvidos, mantêm de pé regras centenárias que impedem a concentração da mídia, entre elas, a proibição de um grupo deter em uma mesma área concessões de rádio e tevê e editar jornais ou revistas.
Não existe conglomerado de mídia no planeta com tanto poder concentrado quanto a Globo, destino de 60% da verba publicitária total, associada nos estados a grupos políticos poderosos e dona dos maiores veículos em praticamente todos os segmentos. No México, outro exemplo de forte concentração, a Televisa ao menos disputa espaço com a TV Azteca.
Leis e recomendações continuam a ser produzidas no exterior para evitar a formação de monopólios. Após o escândalo dos grampos ilegais divulgados pelo “falecido” News of the World, do tycoon Rupert Murdoch, o Reino Unido aprovou uma dura legislação de direito de resposta e punição aos crimes cometidos por jornalistas.
O relatório do juiz Brian Leveson, indicado para analisar o episódio e sugerir medidas ao Parlamento, propôs uma nova lei de imprensa e a criação de um órgão fiscalizador. O diagnóstico de Leveson se aplicaria perfeitamente ao Brasil: “Setores da mídia agiram como se seu próprio código de conduta não existisse... desprezo significativo e negligente em relação à verdade factual”.
O Banco Mundial recomenda a adoção de critérios de distribuição de anúncios públicos que estimulem a pluralidade de opiniões. Uma comissão da União Europeia fez sugestões semelhantes aos associados: reservar uma parte dos investimentos para veículos menores e comunitários, capazes de contemplar a diversidade de pensamento existente na sociedade.
Países como a França e a Itália tomam decisões de investimentos públicos baseadas não só em critérios de audiência. Relevância e pluralidade são levados em conta. E a concentração é proibida e desestimulada em praticamente toda a Europa.
No Brasil, caminha-se na direção contrária. Enquanto o Executivo recria o “bolsa-mídia”, a base aliada do governo Temer no Congresso parece disposta a reduzir a liberdade de expressão na internet. O alvo é o Marco Civil aprovado durante o mandato de Dilma Rousseff.
Um projeto em tramitação pretende autorizar o bloqueio e a retirada de conteúdos da rede e ao mesmo tempo atender ao lobby das operadoras de telefonia para limitar o acesso de dados por meio da banda larga.
Em outras palavras, o projeto cria internautas de primeira e segunda classe. “Se depender do Temer e companhia”, avalia Borges, “viveremos um período de censura e obscurantismo nas áreas de comunicação e cultura. São ações típicas de governos autoritários.”
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