Para a historiadora da USP Maria
Aparecida de Aquino, especialista em repressão política durante o período da
ditadura civil-militar no Brasil, a grande imprensa "não aprendeu
nada" e a elite do País é "mesquinha" e "nega seu próprio
desenvolvimento"
22 DE AGOSTO
DE 2015 ÀS 10:38 // RECEBA O 247 NO
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Por Rafael
Tatemoto, do Brasil de Fato
Maria Aparecida de Aquino é
professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente,
colabora com o Programa de Pós-Graduação em História Social da mesma
instituição. Durante sua carreira, se dedicou ao estudo da repressão política
durante o período da ditadura civil-militar no Brasil, especialmente a censura
exercida sobre os veículos de comunicação.
Nesta entrevista realizada no fim de
março, ela aborda os motivos que levaram ao golpe de Estado em 1964, o papel
exercido pela imprensa e faz comparações com o atual cenário da política
nacional. Segundo a historiadora, há um elemento em comum entre passado e
presente: "Uma das coisas que persistem é o comportamento das elites.
Ainda é muito parecido com o que era em 1964."
Quais foram os motivos que levaram ao
golpe de 1964?
A gente precisa levar em consideração
que no golpe estão presentes diversas forças dentro do Brasil, bem como existiu
apoio internacional - mais especificamente, apoio dos Estados Unidos. Quando a
gente pensa quais seriam os motivos que levariam essas forças internas e
externas a embarcarem numa aventura que foi o golpe de 1964 - aventura essa
ilegal e ilegítima sob todos os aspectos - existem razões bastantes diversas.
Se tivéssemos que centralizar essas razões eu diria que, basicamente, foi o
programa de reformas, as chamadas reformas de base do então presidente João
Goulart, o elemento detonador dessa questão. Essas reformas atingiriam todos os
setores: penetrariam na educação, no mundo agrícola, na indústria. Era uma
proposta para mudar o Brasil.
Mas não se tratavam de reformas
feitas em outros países? Por que aqui não foram aceitas pela elite?
Sim, era um projeto reformista, não
revolucionário, mas "há elites e há elites". Ela não aceitou porque
não suporta partilhar, essa é a característica da nossa elite. Não apenas da
elite do nosso país. É uma marca das elites dos países que eram considerados
subdesenvolvidos.
Enquanto você tem nos países
considerados avançados, como Inglaterra, França, Alemanha, uma determinada
caracterização das elites, na medida em que não existe um distanciamento tão
grande entre aquele que pertence à elite e aquele que está alijado na
sociedade, no Brasil e em outras nações você tem uma distância imensa. Existem
nações em que a diferença entre o menor salário e o maior não ultrapassa dez
vezes. Aqui não dá para mensurar quantas vezes ultrapassa. Consequentemente
esse distanciamento tão grande faz com que essa elite nossa não seja tão
permissiva.
Ela não admite, ela não é
democrática. Ela é cruel, mesquinha. No momento em que ela diz "não podem
se sentar à mesa", ela está negando o próprio desenvolvimento. Porque é do
acesso dessas pessoas a bens que elas não teriam, e a possibilidade que elas
teriam que, inclusive, você tem o maior desenvolvimento do país. Quanto mais
gente consumindo, partilhando, mais o país será desenvolvido. Nossa elite nega
inclusive o desenvolvimento. O seu próprio desenvolvimento. É predatória,
talvez seja o melhor adjetivo para ela.
Hoje se fala muito do papel de
resistência à ditadura que os órgãos de imprensa desempenharam. Como eles
atuaram antes do golpe?
Têm um papel de protagonismo. Eles
foram conspiradores. Toda a grande imprensa estava na conspiração contra a
democracia. Vai ser uma das articuladoras mais importantes do golpe. O único
veículo que não apoiou o golpe e se manteve ao lado do regime deposto foi o
jornal Última Hora, do Samuel Wainer. Por conta disso, ele ganhou um inimigo
total, que vai destruir o jornal. Demora pelo menos quatro anos até ele perder
a posse do jornal em 1968, mas é destruído. Também ocorreu com o Correio da
Manhã, que apoia o golpe, mas que dois dias depois já está contra, se colocando
na oposição, já que percebeu o monstro que ajudou a criar. Por conta disso,
também será destruído, pelo mesmo grupo que comprou o Última Hora.
Então como se explica que parte da
grande imprensa, após esse momento inicial, passa a resistir à ditadura?
A maior parte dos órgãos de
divulgação de notícias tem uma tendência absolutamente liberal. Faz parte dos
objetivos do liberalismo a defesa da liberdade de expressão e de opinião.
Então, a liberdade de imprensa é um elemento central no interior da plataforma
liberal. A imprensa tem essa plataforma. Não é o tipo de coisa que eles queriam
que acontecesse. Embarcou numa terrível aventura, descobriu que a canoa era
furada, num determinado momento a canoa deles também fura. O exemplo lapidar é
o jornal que eu estudei, O Estado de S. Paulo. Foi um grande conspirador. Os
Mesquita [família dona do jornal] assumem que estavam na conspiração; dois anos
antes do golpe eles já faziam parte das reuniões que discutiam como seria o
Brasil depois do apocalipse. Mas três anos depois do golpe já está na linha de
tiro, tanto que vai receber a censura. É talvez o único órgão da grande
imprensa, ao lado da revista Veja, que tem censura prévia no interior da
redação.
Com o fim da ditadura, é possível
dizer que há uma contradição entre democratização política e a ausência de
democratização da mídia?
Os grandes blocos de comunicação – o
Brasil tem meia dúzia, se chegar a tanto – você observa que não têm como ideal
a defesa da democratização das comunicações. Porque democratizar significa, ao
fim, que você dará liberdade para as pessoas se organizarem em pequenos jornais
que passariam a ter direito à luz do sol. Para a grande imprensa isso não
interessa.
Quando você pega "o grande
jornal A" versus "o grande jornal B" você vai ver manchetes
idênticas, até a fotografia de capa muito parecida. O mesmo para as grandes
revistas, parece tudo a mesma coisa. É bom esse mundo, né? Esse mundo entre
"iguais" agrada a grande imprensa, o mundo da diversidade não.
Na realidade se está na defesa do
oligopólio. Há grupos enormes que dominam fatias gigantescas do mercado das
comunicações. É uma defesa cooperativista. Não quer que outros entrem. Para
eles o "mesmismo" é bom. De forma alguma tem a ver com liberdade de
imprensa. Liberdade de imprensa, inclusive, seria lutar pela diversidade.
Você vai a uma cidade do Acre, lá tem
uma concessionária dos grandes veículos de comunicação. É isso que está em
jogo. Por isso que está em jogo, a perda de domínio. No Brasil, antes mesmo de
se colocar em pauta, se faz o discurso de que se está ameaçando a liberdade de
imprensa.
Nesse sentido, qual sua avaliação
mais geral sobre o papel da imprensa no fortalecimento da democracia?
Fortalece enquanto defensora das
liberdades democráticas, dentre elas a liberdade de expressão e imprensa. Tem
um papel importante sim, mas não se pode dizer que ela seja fiel à democracia
no sentido de que a democracia também significa conviver com o diferente, com o
antagônico. O que se vê hoje é a incapacidade de viver com o antagônico.
"Vocês estão de um lado, eu de outro, não quero diálogo". Hoje cumpre
um papel péssimo nesse sentido.
Eu fico muito chateada e entristecida
quando eu comparo as manchetes que antecedem o golpe de 1964 e o que se faz
hoje na grande imprensa. Só é comparável o que se faz hoje em relação ao
governo. A grande imprensa está fazendo isso de novo, não aprendeu com a
censura, com o fechamento, com o empastelamento, não aprendeu nada, repete a
mesma coisa. Só a semelhança com a destruição que hoje se faz do governo com o
processo de destruição de que foi alvo o governo de João Goulart.
Quando você acompanha as manchetes,
as primeiras páginas, os editoriais daquela época, eles são devastadores. Não é
"queremos um Brasil melhor", mas sim "o que está aí não nos
serve", independentemente de ser democrático ou não, então partiram para o
ataque. Está acontecendo o pior que pode ocorrer, não se está dando
possibilidade de defesa para alguém que você colocou no chão. Usa-se todo seu potencial
e destrata cada um dos pontos do governo. "Nada é bom".
"O Brasil teve coisas negativas,
mas cresceu o nível de emprego". O "mas cresceu o nível de
emprego" é o mais importante, mas aparece no rodapé da página. É clara a
iniciativa para quem quiser ver e estiver prestando atenção.
Em sua opinião, o que permaneceu
intocado mesmo com o fim da ditadura?
Hoje pouca coisa. Uma das coisas que
persistem é o comportamento das elites. Ainda é muito parecido com o que era em
1964. As elites não evoluíram, não avançaram. Enquanto o Brasil mudou muito,
para melhor, um país que inclui muito mais pessoas, e não só por causa dos
últimos anos, vem num processo de inclusão muito importante. A realidade que
vivemos hoje está a léguas de diferença da realidade de 50 anos atrás. Talvez a
única que persista é uma atitude semelhante das elites, infelizmente.
Então as elites ainda se comportam do
mesmo jeito?
Quando você analisa as elites que
estavam posicionadas em 1964 elas são claramente golpistas. Elas querem a
derrubada do regime democrático. Elas não sabem e não conseguem conviver com o
Estado democrático. Portanto, partem para sua destruição e dissolução, que
ocorre através do golpe, ilegal e ilegítimo.
Hoje você tem uma elite que tem um
pouco de receio. Ela tem um pouco de receio de dizer "para nós acabou a
brincadeira, a bola é minha e não brinco mais" e assumir uma
caracterização abertamente golpista. Não que ela não flerte. Não que ela não
seja capaz de embarcar em uma aventura terrível, pela forma como age, pelas
considerações que ela faz.
Um exemplo foi quando a presidenta
Dilma se elegeu. Ela teve uma capacidade eleitoral bastante grande no Nordeste.
Quando você olha as redes sociais falando dos nordestinos, você vai ver a cara
dessa elite. Ela é exatamente aquilo. Ela começa a dizer: "é esse tipo de
gente que elegeu, e nós somos melhores". Ela tem condições, desejo e
vontade de flertar abertamente [com o autoritarismo].
Ou seja, hoje você tem um processo ou
uma proposta de inclusão social, que de uma maneira ou de outra dá acesso a
determinadas instâncias, desde a casa própria até o ensino universitário, a
pessoas que não teriam esse acesso.
Essa proposta descontentava, como
descontenta hoje. A proposta de inclusão. Se o Brasil vive um momento de crise,
se é que existe a crise, se ela não é fabricada pelos meios de comunicação,
essa crise se deve fundamentalmente a esse descontentamento. São os mesmos
grupos, a mesma raiz, que não aceita que as pessoas que não têm nem acesso às
migalhas passem a se sentar na mesa.
Como a senhora analisa os protestos
pedindo impeachment, os "panelaços"?
Quem bateu panelas? Foi a grande
elite? Eu sou capaz de entender o porquê. Tem o que perder, e é só por isso que
está batendo panela. Eu não tenho dúvida que essa gente está em defesa de seus
privilégios. Existiu a tentativa de puxar um fio de corrupção que envolveria o
PSDB, mas foi engavetado. Então por que se diz que só existe um criminoso, o
PT?
O Paulo Francis há mais de vinte anos
já falava de corrupção na Petrobras. Faleceu porque veio um processo judicial
que ele não conseguiu arcar. A corrupção é exclusiva desse governo?
Mas o conservadorismo, atualmente,
não se resume à elite...
Uma coisa é pensarmos no Brasil como
um país jovem, que está vivendo um processo de ascensão das chamadas classes
médias; quanto a isso não há dúvida. Mas é um erro achar que nesse mesmo
processo progressivo também terá o mesmo processo no sentido de qual leitura
eles terão da realidade brasileira. Infelizmente, a leitura que se tem, na
média, é conservadora.
Isso se deve à formação do Brasil,
uma escolarização muito baixa. Teve o acesso das pessoas ao ensino, mas é um
ensino transformador? Quando se pega a escola pública, que atende à vasta
maioria, essa educação transforma sua mentalidade, prepara para os novos tempos?
Se tivesse uma imprensa que fosse muito mais plural, também contribuiria para
que tivéssemos esses debates ampliados.
O que você diria para alguém que
defende o retorno da ditadura?
Pensa, raciocina e observa o que o
regime militar produziu. Um mundo sem luz. A desigualdade se ampliou
enormemente nesse período, os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. É isso
que você quer para a sociedade brasileira? O remédio para a sociedade
brasileira é uma aventura antidemocrática? Para combater a corrupção é
necessário acabar com a democracia?
Para pessoas que pensam nisso, eu aconselharia a
ver as contas da Transamazônica. Ou as contas nunca fechadas da Ponte
Rio-Niterói. Ninguém falou, porque naquele momento não podia falar. Se você
levantar, você vai trazer uma quantidade de coisas irregulares que arrepia os
cabelos de qualquer um. Hoje, graças ao caminho que a sociedade brasileira
trilhou, nós temos liberdade de falar. O autoritarismo corre ao lado da
irregularidade, porque ele abafa a irregularidade.
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