sábado, 4 de novembro de 2017

REVOLUÇÃO RUSSA: O EVENTO FUNDAMENTAL DO SÉCULO XX

Um país assolado pelas agruras da guerra. A fome era disseminada entre uma população marcada pelo maior conflito bélico já ocorrido até então: a Primeira Guerra Mundial. O número de órfãos, viúvas e mutilados crescia conforme o tempo do confronto se estendia. É neste cenário que a primeira experiência bem sucedida de tomada do poder pela classe trabalhadora se deu.
Além da miséria causada pelo ingresso da Rússia na Guerra, a maior parte do povo já enfrentava condições de vida de penúria, mesmo em tempos de paz no âmbito internacional. O país, comandado por uma monarquia absolutista autocrática, só havia abolido formalmente as relações feudais no campo - ou seja, a servidão – em 1861, momento em que os países da Europa Ocidental estavam em plena industrialização. Ainda assim, o campesinato permanecia em patamares de vida miseráveis.

Observando cem anos após os episódios deste evento histórico, parece natural que uma revolução fosse ocorrer em um país onde a exploração e a opressão fossem tão agudos. Apesar disso, pelo seu próprio caráter, revoluções nunca são naturais.
Parte da literatura historiográfica vê a Revolução como simples resultado dos equívocos cometidos pelo czar Nicolau Segundo, dirigente do Império Russo, e, posteriormente, pelo Governo Provisório de cunho liberal que o substituiu em fevereiro de 1917.
Professor da Universidade de São Paulo e estudioso da experiência revolucionária, o historiador Osvaldo Coggiola rejeita tais interpretações e indica outras razões para a eclosão da revolta que levou a classe trabalhadora ao poder, oriundas do “processo histórico nacional e internacional” e da combinação de “contradições do desenvolvimento do capitalismo mundial”.
AS CONTRADIÇÕES DO CAPITALISMO
Entre 1939 e 1945, porém, o mundo viu um conflito armado de maiores proporções – a Segunda Guerra Mundial – que não foi seguido por revoluções na Europa. O próprio Coggiola apresenta esta questão.
"Dizer que era inevitável por conta das consequências da Primeira Guerra Mundial não consegue explicar porque não houve revoluções com o desfecho da Segunda Guerra Mundial", disse.
Se o desenvolvimento das contradições do capitalismo, incluindo as Guerras Mundiais, abriram espaço para a revolução na Rússia, mas não a explicam, o que levou a classe trabalhadora ao poder naquele país de forma tão inédita?
O professor da USP é categórico. “Sem bolchevismo, não haveria Revolução”. “A Revolução não era inevitável. Era necessário que houvesse um partido revolucionário. De um modo geral, sem um partido com esse caráter não há revoluções”, defende.

DILEMAS
Ao contrário do que possa parecer em uma primeira impressão, as condições extremas em que viviam os russos, o caráter atrasado do país, não só não eram compreendidos como um potencial para uma revolução da classe operária, mas também eram tidos por boa parte do que pode se chamar de esquerda russa como empecilhos para tal luta.
Em 1917, ano em que ocorre a Revolução Russa, completavam-se 50 anos da primeira edição de O Capital, escrito por Karl Marx. Diversas interpretações da obra do pensador alemão já existiam, dentro e fora da Rússia.
Em âmbito internacional, parte do movimento socialista considerava que somente o próprio desenvolvimento do capitalismo seria capaz de levá-lo ao seu próprio fim. A tarefa dos trabalhadores, portanto, seria apenas o de reivindicar melhores salários até este momento. Lênin, o principal dirigente da Revolução Russa, discordava, apontando que era necessária a ação política do operariado tendo como alvo o poder político.

No âmbito interno, o atraso russo era lido sob diversas óticas. Na esquerda, entre os não marxistas, entendia-se que o campesinato seria o sujeito fundamental da revolução, criando uma espécie de socialismo agrário a partir de seus modos de vida tradicionais.
Entre os marxistas, organizados no Partido Social-Democrata, a polêmica não era menor. Os chamados mencheviques, compreendiam que, se ainda havia relações feudais no país, era necessária uma revolução burguesa na Rússia. O operariado, nessa visão, deveria ser, em última instância, um aliado da burguesia na instauração do capitalismo e da democracia liberal. Lênin, líder dos bolcheviques, ainda que muitas vezes isolado em seu próprio grupo, desenvolveu uma posição diversa.
Em sua percepção, já havia um nascente capitalismo na Rússia, estimulado pela própria monarquia. Os operários, portanto, eram a força fundamental da revolução. De outro lado, também era verdade que as relações no campo eram semi-feudais e o país vivia sob uma autocracia e, desta forma, era necessário acabar com o czarismo.
A partir destes elementos, chega a uma conclusão rigorosa, porém inovadora: o operariado deveria se unir ao campesinato, e realizar uma revolução em duas fases interligadas: uma democrática, que abolisse o czarismo; outra socialista, que instituísse o poder da classe trabalhadora. Exatamente o que aconteceria em 1917.
PASSOS ENSAIADOS

O texto é de 1905. Aquele ano foi marcado pela mal-sucedida Revolução de 1905. Em meio à guerra contra o Japão, o povo russo demandava comida, aumento salarial e regulamentação da jornada. As manifestações foram duramente reprimidas pelo czar, resultando em mortos, presos e exilados. João Quartim de Moraes, professor de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, aponta o impacto da experiência de 1905 sobre os bolcheviques, dada a ampla participação do campesinato.
Lênin, de um lado, reafirma o operariado como principal força revolucionária. De outro, reconhece o camponês como aliado histórico da luta, forjando uma posição política inédita e sem paralelo entre as outras organizações russas e “heterodoxa” no interior do marxismo.
Em 1917, em meio a outra guerra, os russos iniciaram uma série de protestos, tendo como memória de luta os eventos de 1905. No final de fevereiro do calendário juliano, utilizado então na Rússia, uma marcha convocada por mulheres disseminou a onda de greves por todo o país. No calendário gregoriano, a data é hoje mundialmente conhecida: o Oito de Março.
“Na Rússia, mesmo antes do processo da Revolução, já havia uma organização das mulheres, inclusive do Partido Social-Democrata. A partir, principalmente de 1913 e 1914, há uma intensificação da organização das mulheres. Em 1917, foi em um dia de comemoração do Dia Internacional da Mulher que houve uma grande mobilização e hoje se reconhece como o início da Revolução Russa”, explica Nalu Faria, militante da Marcha Mundial das Mulheres.
Quartim de Moraes relaciona o papel desempenhado pelas mulheres com o contexto de guerra. “Foram as mulheres. A vanguarda [em Fevereiro] é composta por mães de soldados, famélicas e desesperadas”, disse.
(Confira "A revolução das trabalhadoras: quantas mulheres revolucionárias você conhece?" do especial).
Nalu aponta que, naquele momento, em todo movimento socialista europeu, a luta das mulheres ganhava força, tendo figuras do porte da alemã Clara Zetkin como uma de suas principais dirigentes. As mulheres socialistas eram, parte ativa das campanhas pelo direito ao voto feminino.
Como a militante feminista apontou, foram as mulheres a fagulha da Revolução de Fevereiro, responsável pela queda do czar e pela instituição do Governo Provisório, de caráter liberal. A permanência da Rússia na Primeira Guerra, entretanto, permaneceu inalterada.
Lênin, até então exilado, volta à Rússia. Apenas um mês antes, em janeiro, mostrava-se pessimista em relação às possibilidades ainda abertas para sua geração de bolcheviques. “Nós, os mais velhos, não veremos talvez as lutas decisivas da revolução iminente”, escreveu na data.
Dois meses após fevereiro, postula que a luta revolucionária deve ir além da queda do czarismo. Nas Teses de Abril, indica como linha a ser seguida uma famosa frase: “Todo poder aos sovietes”. Os sovietes – conselhos, em russo – eram organismos auto-organizados de operários, camponeses e soldados. Para Lênin, era necessária a derrubada do Governo Provisório, sob o lema “Paz e Terra”.
Os bolcheviques, com o apoio da maior parte da classe trabalhadora, decidem tomar o poder em outubro, e assim o fazem.
MEDIDAS
Logo após a consolidação do poder dos sovietes, o governo revolucionário passa a tomar medidas inéditas na história da humanidade. Coggiola cita uma série delas. “Foi o primeiro país a despenalizar a homossexualidade, a criar um sistema de seguridade social universal, a estabelecer educação laica gratuita e universal”, aponta.
A revolução operária e camponesa modifica também as relações entre homens e mulheres, como lembra Nalu. “Após a vitoria da Revolução Russa, continua o processo de organização. Alexandra Kollontai é a única ministra, mas já no primeiro governo dos bolcheviques. Nos primeiros anos, há um processo muito forte, cria-se um departamento de mulheres no Partido”, afirma.
“Em 1918, há uma série de avanços na legislação, a legalização do aborto, mudanças na questão da família, a prioridade de emprego para mães solteiras. É importante ressaltar que não era um debate restrito às mulheres, estava sendo feito por grande parte do Partido”, disse.
A militante da Marcha Mundial das Mulheres também indica como os bolcheviques socializaram parte do trabalho doméstico, através de alterações sociais e econômicas, ainda que “não levassem em conta que parte do trabalho doméstico não é socializável”.
Para ambos, as medidas revolucionárias surtiram um enorme impacto sobre a luta internacional dos trabalhadores. Coggiola fala que a experiência russa “plantou muitas sementes”, tendo servido de “inspiração” e, por conta de suas contradições posteriores, também foi uma “desinspiração” em algum sentido. “Além de celebrar, temos é que pensar sobre a Revolução Russa”, resume o historiador.
“Revolução Russa foi o elemento fundamental do século XX, porque iniciou o ciclo histórico que ainda não está concluído. O ciclo da revolução socialista mundial, da luta dos trabalhadores contra o capital, que não se sabe onde termina”, finaliza Coggiola.
Texto: Rafael Tatemoto | Edição: Simone Freire | Artes gráficas: Wilcker Morais
Brasil de Fato

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