O dia de hoje teve um sabor de nostalgia quando decidi refletir sobre os feitos da Revolução Russa de 1917. O mais incrível é o fato de que um acontecimento histórico tão distante, temporal e espacial, possa ter exercido tamanha influência sobre minha vida assim como de outros que compartilham minha geração.
*Por Eduardo Soares de Lara
Sequer vivi a “Guerra Fria” e desconheço os sentimentos de frustração que levaram a esquerda mundial aos frangalhos com o “discurso secreto” de Nikita Khrushchov seguido da queda do muro de Berlim anos depois. Mesmo assim, ainda recordo o momento em que, diante dos meus olhos, pela primeira vez, brotaram imagens e textos que narravam a epopeia revolucionaria de 1917.
Nunca fui muito sensível na apreciação das artes, mas emocionava-me diante do realismo socialista. Em especial o quadro de Isaal Brodsky que belamente retratava a força da oratória de Lenin diante do proletário. Assim como o óleo de Geliy Korzhev que capitou a convicção inabalada do homem que diante do camarada tombado pegava para si a bandeira vermelha e seguia em frente, em direção ao sonho da igualdade. A energia e princípios de solidariedade transmitida pelos símbolos da revolução bolchevique passaram a fazer um sentido incrível na minha vida. Foi questão de tempo para que um exemplar de “A Mãe” de Máximo Gorki caísse nas minhas mãos tornando-se meu livro de cabeceira. Esse é o poder da Revolução Russa.
Contra tudo e todos um povo decidiu tomar em suas mãos o destino das próprias vidas. Sem entrar no mérito dos erros e acertos, é impossível não reconhecer que essa foi a experiência social e política mais rica do século 20. Pela primeira vez algo completamente impensável pelos “famélicos da terra” ganhava forma. Um Estado de operários e camponeses se fez surgir há exatos 97 anos. E junto a ele, moldado em luta e sacrifício, o homo soviéticos, uma comunidade histórica de pessoas que tinham por finalidade a construção do comunismo.
O impacto que esse evento político trouxe ao mundo irradia ainda hoje o debate sobre os caminhos e modelos da humanidade futura. Apesar de muitos anunciarem aos quatro ventos o fim completo da utopia socialista, acredito que o escritor uruguaio Eduardo Galeano respondeu bem essa questão em um nostálgico texto intitulado “O menino perdido na intempérie” . Diante da queda do muro e a derrota sandinista na Nicarágua o “menino” Galeano afirmava que “o socialismo não morreu, porque ainda não era”. Tudo o que caiu com o muro deveria ser lembrado como o primeiro dia da longa vida que o socialismo tem por viver.
É preciso reconhecer, do ponto de vista latino-americano e do chamado Terceiro Mundo, que o defunto bloco soviético tinha, ao menos, uma virtude essencial: não se alimentava da pobreza dos pobres, não participava do saque do mercado interacional capitalista e, em troca, ajudava financeiramente a justiça em Cuba, na Nicarágua e em muitos outros países. Eu suspeito que isto será, em breve, recordado com saudades (GALEANO, 1992).
O filósofo esloveno Slavij Zizek, dedicado em efetuar uma interessante crítica cultural e política da pós-modernidade, lembra muito bem em seu livro “Vivendo no fim dos tempo” que não faltaram vozes sedutoras e maliciosas à nossa volta para entoar todo tipo de canto da sereia. “Bem feito, seus lunáticos, que queriam impor sua visão totalitária à sociedade!”. Outros tantos tentaram esconder a alegria, gemendo e erguendo os olhos para o céu como se dissessem: “Como ficamos pesarosos de ver nossos temores justificados! Como era nobre sua visão de uma sociedade justa! Nosso coração bate com o seu, mas nossa razão nos dizia que seus planos só poderiam terminar em miséria e novas formas de servidão!” (ZIZEK, 2012).
Para Zizek não é preciso temer a crítica, mas lembrar da criatividade de Lenin diante da construção diária da experiência socialista. Em um texto datado de 1922 e intitulado “Sobre a subida de uma alta montanha” Lenin compara a edificação do socialismo com o desafio de um alpinista em escalar um pico. Não atingindo seu objetivo em uma primeira vez, volta-se ao vale para novas tentativas e mostra o que significa recuar sem trair de forma oportunista a fidelidade à causa.
Como Lenin sugere em seu texto, para Zizek agora é necessário voltar ao começo. “Começar do princípio repetidas vezes”, entendendo que o processo revolucionário não é um progresso gradual, mas um movimento repetitivo, um movimento de repetir o princípio várias e várias vezes.
(...) mantivemos a mente limpa e podemos calcular sobriamente onde, quando e até que ponto recuar (para saltar mais adiante), onde, quando e como trabalhar para alterar o que ficou inacabado. Estão condenados os comunistas que imaginam ser possível terminar uma realização tão momentosa quanto completar os alicerces da economia socialista (ainda mais num país de pequenos camponeses) sem cometer erros, sem recuos, sem numerosas alterações do que está inacabado ou foi feito de forma errada. Os comunistas que não tem ilusões, que não se entregaram ao desalento e que conservam a força e a flexibilidade de “começar do princípio” repetidas vezes ao abordar uma tarefa dificílima não estão condenados (e, com toda a probabilidade, não perecerão). (LENIN, 1922, apud ZIZEK, 2012, p.341).
Desta vez não construiremos sobre os alicerces da época revolucionária do século 20, pelo caminho original que o alpinista não alcançou. Voltaremos ao ponto de partida para escolher um caminho diferente. Mas como bem lembra Zizek, isso não significa engrossar coro ao ardiloso discurso de falsa fidelidade ao comunismo do século 20, que rejeita todos os socialismos reais em nome de um movimento autêntico e espontâneo da classe trabalhadora. Não negaremos. Enfrentaremos os erros e exaltaremos os acertos de nossas experiências. Só me resta dizer, como Badiou : “Não renuncio à ideia do comunismo”.
*Eduardo Soares de Lara é Cientista Social graduado na Universidade Federal de Santa Catarina, pós-graduando e professor de Sociologia.
Notas
1 Eduardo Galeano, “El niño perdido em la intemperie”, em Ser como ellos y otros artículos, Madrid, Siglo XXI, 1992.
2 ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo : Boitempo, 2012.
3 V. I. Lenin, “Notes of a Publicist: on Ascending a High Mountain”, em Collected Works, cit., v. 33, p. 204-11.
4 BADIOU, Alain. The communist hypothesis. London: Verso, 2010.
5 BADIOU, Alain. The communist hypothesis. London: Verso, 2010
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