segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Proibido negros, judeus e cães


Jeosafá Fernandez *

A escravidão não é criação da era moderna. A Grécia antiga, inventora da democracia, empregou o trabalho forçado como parte de sua estrutura social e produtiva – estando os escravos, como se sabe, excluídos dos direitos de participação nas decisões públicas.


 

A china praticou a escravidão em larga escala, e a rigor, ela só foi extinta com a revolução comunista de Mao Tse Tung, quando, deposto o último imperador, os eunucos foram libertados, e quando seus escrotos secos, guardados em caixinhas, lhes foram devolvidos pelos revolucionários, como símbolo de que os vínculos com seu senhor estava definitivamente extinto (no filme O último imperador, de Bernardo Bertolucci, essa cena é particularmente perturbadora).


Por toda a América pré-colombiana há registros de escravidão: maias fizeram escravos, aztecas fizeram escravos, incas fizeram escravos. No Brasil pré-Cabral, era comum o sequestro de mulheres após guerras entre tribos. A função da mulher sequestrada era a de, incorporada à força, tornar-se esposa de algum jovem da tribo vencedora. Se a esse casamento compulsório com o filho ou mesmo o próprio matador de seus pais – para fins de garantir descendentes saudáveis a partir de um estoque genético diverso – não chamamos de escravidão sexual, é por zelo para com uma prática indígena que, praticada hoje nas sociedades ocidentais, recebe, sim, a classificação de escravidão sexual – condenada e punida por leis nacionais e internacionais.

Colored: Negros, índios e mexicanos no fundo do ônibus.

Assim, é um erro grotesco considerar que a discriminação racial em razão da escravidão ou por outros motivos recai somente sobre os negros. Nos dias de hoje, palestinos são alvo de racismo em Israel, tanto quanto judeus foram vítimas do ódio nazista na Alemanha hitlerista. Na Espanha de Franco, ciganos foram perseguidos com crueldade, tanto quanto chineses foram massacrados durante a 2ª. Guerra por japoneses imperiais, estes embalados pelo delírio de superioridade racial.

O racismo tem-se revelado ao longo dos séculos e milênios como uma estratégia violenta de grupos sociais para submeter, explorar e expropriar outros grupos. Riquezas imensas produzidas pelo povo judeu foram saqueadas por nazistas e fascistas e o próprio indivíduo semita teve seu corpo exaurido até a última gota de energia nos campos de concentração do III Reich. O objetivo principal do Japão ao invadir a China não foi instaurar uma “civilização mais avançada”, mas estabelecer um império político no extremo da Ásia para explorar as imensas riquezas continentais dessa região. Assim, o argumento de superioridade racial nunca passa de um álibi para, criando-se em um grupo de força uma coesão interna a partir de um a farsa, explorar e extorquir – o que não se faz sem muita violência e, por oposição, muita resistência.

Servimos apenas brancos . Nunca hispânicos, nem mexicanos.

Porém, não há historiador que não admita ter sido a escravidão negra um dos pilares do capitalismo emergente das Grande Navegações, tendo alimentado, ela própria, a escravidão, grande parte das rotas marítimas atlânticas entre os séculos XVI e XIX, no chamado comércio triangular (um metrópole europeia, um posto de compra de escravos na África ocidental e uma colônia na América). É essa proeminência da exploração da mão de obra escrava negra oriunda da África que levará um dos maiores líderes da luta contra o racismo nos EUA, o jovem Malcolm X, a afirmar: “Não existe capitalismo sem racismo.”

Nos EUA, tanto quanto por toda parte em que foi empregada, a escravidão e a discriminação racial deixaram e deixam ainda marcas profundas, que sequer o amontoamento de séculos sobre séculos futuros apagará. Essas marcas, embora as mídias contemporâneas se apressem em soterrar com avalanches de imagens dispersivas, estão por toda parte, e com o advento da internet, se espalham e se oferecem como fontes de reflexão para quem não deseja que semelhantes episódios de injustiça e vergonha se repitam.

Linchamentos legalizados no Sul dos EUA.

A luta pelos direitos civis nos EUA, por exemplo, não é recente. Com a vitória dos ianques sobre os confederados na Guerra Civil Americana (1861), também chamada Guerra da Secessão – pois o Sul tinha intenção de se separar do Norte –, o fim da escravidão foi imposto pelos vencedores aos vencidos na forma de lei federal que, em última instância, reconhecia igualdade entre brancos e negros, todos agora cidadãos livres de um mesmo país.

Porém, mergulhados no ressentimento da derrota e do ódio racial, bem como apoiados na grande independência administrativa que a Constituição dos EUA faculta aos estados, os do Sul passaram a confrontar a legislação federal por meio de aprovação de leis estaduais abertamente racistas. Esses esses dispositivos de submissão e de segregação racial que tornaram os negros cidadão de segunda classe em seu próprio país, foram sendo aprovadas paulatinamente nos legislativos estaduais desde 1876, vigoraram até 1965, e ficaram conhecidas como leis Jim Krow – apelido que se deve ao personagem empregado por racistas para ridicularizar os negros nos EUA.

Linchamentos legalizados no Sul dos EUA.

Assim, a luta pela igualdade, vencida, ao menos no terreno legal (pois as explosões sociais de resistência de negros contra o racismo nos EUA, todos o sabem, são freqüentes), em 1964 com a promulgação Lei dos Direitos Civis, durou noventa anos, período durante o qual todo tipo de violação aos direitos humanos foi cometido com amparo legal local no interior do país que se apresentava e se apresenta ao mundo como campeão da liberdade e dos direitos individuais.

As leis Jim Krow não apenas segregavam seres humanos pela cor da pele, proibindo que uns tomassem água no bebedouro de outros, ou se sentassem nos mesmos bancos de praças ou transporte coletivo, como algumas delas estimulavam o ódio racial e disciplinavam o linchamento de negros em praças públicas. Essas leis, a rigor, eram ainda piores do que as empregadas no período da escravidão, pois não tinham com alvo um ou outro escravo fujão ou escrava com a péssima mania de andar com o queixo erguido, mas todo e qualquer cidadão negro, toda e qualquer mulher ou criança negra, não necessitando de motivações quaisquer além do preconceito e do rancor.

Num dos períodos mais agudos de resistência ao racismo na década de 1960 e na luta pela aprovação da Lei dos Direitos Civis, surgiram os Freeddom Riders, Viajantes da Liberdade, caravana de jovens, estudantes, intelectuais e militantes negros e brancos que, unidos, decidiram confrontar a racismo legal imperante nos estados do Sul.

Linchamentos legalizados no Sul dos EUA.

Essas caravanas de ônibus em que brancos e negros se sentavam lado a lado, cruzaram os estados sulinos, sendo recebidos com violência pela Ku Klux Klam – sempre apoiada pela polícia local e mesmo por agentes federais racistas, que transmitiam informações sobre o roteiro dos ônibus.

Obviamente, na vanguarda dessas caravanas da liberdade estavam os principais atores: negros e negras dispostos a conquistarem definitivamente para si e para as gerações futuras de afrodescendentes norte-americanos o estatuto de cidadania plena. Porém eles encontraram em seus colegas brancos não racistas apoio decisivo – o que não impediu que os dois principais líderes negros dos EUA fossem assassinados: Malcolm X em 1965 e Luther King em 1968.


Ônibus dos Freedom Riders incendiado .

A principal lição que essas caravanas deixaram a todos, não só aos norte-americanos, é a de que a luta pela igualdade, contra todos os tipos de discriminação e preconceitos não diz respeito apenas às vítimas diretas deles. Se eu sou branco, tenho um amigo negro e ele é humilhado, eu fui também. Se meu vizinho japonês é ofendido por causa de seus olhos puxados, os meus olhos também foram furados. Se uma piada nazista atinge um amigo judeu, eu fui jogado no forno junto com ele. Se uma manifestação de intolerância manda que meus amigos nordestinos voltem para sua terra depois de eles terem erguido a maioria dos grandes edifícios de São Paulo, eu fui convidado a partir da minha terra com eles.

Porém, a verdade é que eu não preciso ter um amigo negro, japonês, judeu, palestino, nordestino sírio, gay, lésbica, transsexual, deficiente físico ou com limitação intelectual para eu me posicionar em defesa da igualdade e da justiça, pelo simples motivo de que, em milhares de anos estudados pela história, não se conhece um único exemplo de que o ódio, a intolerância, a escravidão tenham construído nada. Onde prosperou a histeria coletiva, ali imperou os piores momentos da humanidade.
* Jeosafá é Doutor em Letras pela USP. Tem, entre seus mais de 50 títulos, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X e o ciclo de romances paulistanos Era uma vez no meu bairro (Zonas Norte, Sul, Leste e Oeste).

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