As receitas econômicas terão um impacto limitado, ou nenhum, se não houver um debate aprofundado sobre que sociedade queremos construir.
Por Sophia Mappa*
O anúncio de uma possível falência do Estado grego provocou na Europa reações passionais e moralistas, de um lado e, do outro, reações técnicas, econômicas e até contáveis. O que revelam, antes de tudo, é a regressão do pensamento crítico e político entre os herdeiros do Iluminismo. Foram evocadas, especialmente nos bons e velhos países protestantes, guardiões da moralidade e do rigor econômico, a preguiça dos gregos, sua corrupção e clientelismo. A perspectiva de ver a crise se espalhar para outros países do sul da Europa levou ao uso de adjetivos tão deselegantes quanto desprovidos de capacidade analítica: os gregos foram classificados de "porcos", "Club Med" e por aí vai.
Mas não se viu uma análise da sociedade grega que pudesse contribuir para a compreensão de sua especificidade e jogar luz, também, sobre as contradições da construção europeia. As abordagens econômicas tampouco tocaram nas questões mais profundas. Por que o "subdesenvolvimento" crônico da Grécia, uma vez que os gregos são "ricos", como afirma o muito simpático Guy Burgel?[1] Por que os esforços europeus para "desenvolver" o país fracassam depois de trinta anos de adesão à União Europeia, e apesar dos dois séculos de tutela ocidental sobre o país? Quais os critérios utilizados para avaliar o desenvolvimento, a preguiça e a corrupção?
As poucas tentativas de introduzir uma visão mais complexa da sociedade foram dispensadas com uma arrogância representativa da pobreza do nosso pensamento[2] e, em todo caso, não suscitaram debate. Sem uma análise global, as soluções econômicas recomendadas, incluindo o escalonamento da dívida, serão, no fim, ineficazes. Estas soluções não lidam de forma complexa com as dificuldades gregas, incluindo o enorme fosso entre consumo e produção, nem com os desafios da construção europeia, como alguns países que não estão em conformidade com o modelo europeu, ou com a eficácia do próprio modelo, em uma conjuntura de crise sem precedentes. Na realidade, a crise econômica é um sintoma de complexas mutações sociais, e até antropológicas, e não sua origem.[3] O pensamento econômico explica uma pequena parte da sociedade, mas está longe de dar conta de sua complexidade.
As reações dos membros do governo e da opinião pública grega reforçaram o clima passional. Esquecendo que o PASOK reina na Grécia desde 1981, com um intervalo de oito anos de governos de direita, os líderes socialistas encontraram dois bodes expiatórios fáceis: a direita grega e a Alemanha. Nenhuma análise sobre uma sociedade devorada pelo consumo frenético de produtos ocidentais, sem produção equivalente e lutando com a ambivalência identitária que caracteriza todos os dominados: o desejo e a rejeição da Europa, a submissão e o descumprimento de suas ordens, as revoltas sem projeto para o futuro.
As reações viscerais e as abordagens técnicas, de ambas as partes, evitaram três questões básicas: a primeira é saber o grau de adesão dos países-membros da União Europeia aos princípios do liberalismo econômico e político, até sua própria compreensão dos mecanismos, valores e práticas inerentes a ele. As lógicas de exclusão, de que Merkel é a porta-voz, no interior da Europa, baseiam-se no pressuposto da adesão sem ressalvas ou, pelo menos, no imperativo de tal adesão. No extremo oposto, o caso grego desmente esse pressuposto. A segunda questão diz respeito à validade da convicção, amplamente difundida na Europa, de que a ajuda financeira a países não-conformes na Europa têm a finalidade de "desenvolvê-los" seguindo o modelo liberal, ou democratizá-los. Esta questão pode iluminar os impasses da integração europeia, mas também aqueles das políticas externas da Europa. A terceira é a questão da eficácia do modelo liberal, mesmo dentro de países europeus "verdadeiros" como a Alemanha, a França ou Holanda e Bélgica. Ela remete à necessidade de compreender a natureza da crise do modelo como um todo.
Assim como outras regiões e países europeus, como o sul da Itália, a Córsega, Portugal, Irlanda e, em menor medida, a Espanha, a Grécia pode fornecer pistas importantes para estas perguntas.
Rememorando o passado: uma adesão oportunista
Quando o país adere ao Mercado Comum, em 1981, a sociedade grega conhecia a Europa especialmente por suas conquistas materiais. Mas ignorava em grande parte os valores e o trabalho que estão na origem da riqueza. Apegada, sem saber, à sua tradição, principalmente ortodoxa [4], a sociedade nunca se propôs questionar e mudar as ideologias e práticas herdadas do passado bizantino e otomano. Mesmo tendo um domínio intelectual modesto sobre sua tradição, havia a experiência vivida, que se manifesta nas práticas cotidianas e nas ações mais íntimas dos indivíduos. Sua relação com o mundo exterior não indicava uma adesão ao espírito do capitalismo. Eram contemplativos, e a movimentação para transformar o mundo os deixava indiferentes. As seitas protestantes e sua glorificação do trabalho como meio de salvação nunca tocaram o imaginário coletivo, tradicionalmente hostil a qualquer coisa vinda do Ocidente. Como para muitas sociedades no mundo, o trabalho na Grécia não era algo associado à criatividade ou à identidade do indivíduo, mas à necessidade e à sobrevivência. As atividades econômicas que se desenvolviam eram aquelas tradicionalmente conhecidas: agricultura, comércio, marinha mercante, artesanato e, desde a década 1960, o turismo familiar. Não havia nada de capitalista nisso tudo. Nenhum desejo de transformar a natureza, nenhuma indústria, nenhuma acumulação de capital, investimento de longo prazo ou lógica contábil, nada de criação de riqueza ou de empregos modernos, nada de ciência e desenvolvimento tecnológico, mas uma dependência crônica das riquezas produzidas fora (os fundos enviados pelos expatriados, as ajudas europeias e depois americanas).
Do liberalismo político, a sociedade grega também só fazia uma vaga ideia sem nunca, em todo caso, o haver experimentado. O indivíduo livre e responsável por seus atos e pensamentos, o interesse público, o Estado de Direito, o Direito Civil, a razão, o debate público como meio de governar a cidade... nada disso fazia parte do patrimônio cultural nem da experiência da sociedade. Era a obediência aos poderes e a irresponsabilidade individual e coletiva que instituíam o político e o social. O estado, instaurado pelas potências europeias no início do século XIX, estava sob a tutela das chancelarias europeias e, após a Segunda Guerra, sob a tutela norte-americana. As relações do Estado com a sociedade eram clientelistas. Como o beylik Otomano, o estado era considerado propriedade do líder, do qual as clientelas se serviam, em detrimento de outros grupos. Além disso, o sistema de tributação ocidental para financiar a construção de serviços coletivos nunca vingou na Grécia. O poder governava pela força e era transmitido de família em família; como ainda hoje. Não havia nação ou unidade nacional, portanto. No lugar de soberania nacional, sucessivas tutelas. Nada de liberalismo político, mas uma longa série de regimes parlamentares abortados e de golpes militares, o mais recente entre 1967 e 1974.
A história contemporânea da Grécia é marcada por humilhações (derrotas militares, fracassos econômicos) que a fazem esquecer seus sucessos. Frustrações recorrentes igualmente, nunca elucidadas pela razão nem, a fortiori, assumidas. O responsável sempre estava fora: a Turquia, o Ocidente, o imperialismo. A responsabilidade própria, individual e coletiva, não faz sentido naquela sociedade. A genialidade do fundador do PASOK, pai do ex-primeiro-ministro George Papandreou e filho de outro líder político, foi explorar este estado de espírito e de incluir a sociedade grega em um "projeto" anti-capitalista e anti-ocidental. A história vai mostrar que não havia um projeto. O PASOK foi a expressão das frustrações gregas, mas não ofereceu nenhuma solução.
A adesão da Grécia à Europa, conduzida pelo primeiro-ministro K. Karamanlis, foi pensada como um remédio para a incapacidade da sociedade de sair do círculo vicioso de golpes militares, mas também da ameaça turca. Mas não houve nenhum debate significativo sobre a capacidade e a vontade da sociedade de se integrar ao mercado comum. A disputa acirrada que opôs os pró-europeus aos terceiro mundistas do PASOK, hostis à adesão, não se apoiava em qualquer análise da sociedade tal como era. Para os primeiros, cheios de desprezo pela Grécia real, a simples adesão à Europa seria suficiente para transformá-la em uma sociedade europeia. Para os últimos, não havia nada a mudar. Bastaria libertar o país da dominação ocidental para finalmente alcançar a felicidade. É significativo que o PASOK, que chegou ao poder em 1981, logo após a assinatura da adesão, não a contestou. Mas não mudou nada em sua posição antiocidental nem em suas explosões chauvinistas, que tanto entusiasmavam o povo.
Tampouco houve debate entre os europeus. A relutância inicial [5] desapareceu após o "retorno à democracia", em 1974. Por ignorância da sociedade, por uma crença amplamente compartilhada, ainda hoje, de que a democracia se resume à organização de eleições, e que as ajudas financeiras levariam ao capitalismo (e à democracia), pelo desejo de expansão e também de poder, pelo fascínio com o milagre ateniense de vinte e cinco séculos, o clube dos ricos aceitou o ingresso dos pobres. O Partenon agora estava na Europa e, com ele, as ilhas gregas, tão cobiçadas pelos turistas europeus, inclusive os alemães, em busca de sol para reproduzir sua força de trabalho. Sem esquecer o mercado consumidor para os produtos europeus, inclusive armas, que passaram a inundar o país.
Foi, dessa forma, um amálgama de ideologias, interesses e mitologias, que guiou o lado europeu na adesão da Grécia. A expectativa de uma transformação rápida provou-se ilusória. Não poderia ser de outra forma. Nenhuma sociedade muda radicalmente, e, a fortiori, impulsionada de fora. Como todo beneficiário da ajuda ocidental, a Grécia não utilizou a ajuda financeira para se "desenvolver" nem para se democratizar. Como no passado, com o Plano Marshall, o que aconteceu em trinta anos foi o reforço das lógicas tradicionais; de dependência, econômica e política, com um aumento sem precedentes do consumo, sem transformação do seu aparato produtivo. Este último perdeu algumas de suas atividades tradicionais (agricultura, artesanato), sem, no entanto, ser capaz de criar novas. As atividades tradicionais de importação e exportação aumentaram em importância, impulsionadas pelos países industrializados da UE, que usaram a Grécia como um trampolim de acesso aos Balcãs. No mesmo período, as atividades ilegais (tráfico de drogas e armas) floresceram e os laços familiares tradicionais se desintegraram, dando lugar a uma atomização crescente. O populismo se estabeleceu como forma de governo, à esquerda e à direita, e os benefícios sociais concedidos não tinham adequação com as receitas próprias. O custo foi o endividamento público e privado. Quanto às relações com os "parceiros europeus", a divisão histórica e as ambivalências tradicionais persistem, mesmo que atenuadas pelo mimetismo e pelo consumismo. O erro é sempre do outro: da Europa, do FMI, dos bancos norte-americanos. Daí o naufrágio, não só econômico. É a derrota de uma sociedade que caiu na armadilha da ilusão de um progresso material infinito sem mudanças radicais em seus modos de produção e consumo. Como ocorre entre os beneficiários da ajuda ocidental, a sociedade grega nunca enxergou a mudança imposta pela União Europeia como um objetivo a ser alcançado. As obrigações foram contornadas pelo ardil. Hoje, em plena tempestade financeira, a não há nenhum debate em torno da produção.
A lógica da exclusão
A adesão da Grécia à UE foi, assim, uma oportunidade perdida para se debater que Europa queríamos construir, e para buscar uma resposta com conhecimento de causa. Assim, os países europeus "verdadeiros" são tão responsáveis quanto os "falsos". A sempre proclamada diversidade, ainda recentemente evocada nas eleições europeias, não passou de um slogan, como aqueles que exaltam a diversidade no planeta. Não houve reflexão significativa sobre o lugar da alteridade na Europa, pela simples razão de que, ali, a alteridade não está presente nem tampouco é aceita. É difícil compreender valores que não compartilhamos e não experimentamos. É mais fácil pedir mudanças nos outros e esquecer a necessidade de suas próprias mudanças para que o convívio seja possível.
As contradições desta velha ideologia europeia são hoje incontornáveis, tanto no nível europeu quanto internacional. A exclusão da Grécia, proposta por Angela Merkel, é, certamente, um caso extremo. Mas é significativa da densidade histórica das sociedades e das continuidades enraizadas em sua cultura, mesmo quando acreditam ter rompido com o passado. "Uma nação (a alemã) voltada para dentro, que retoma novamente a "questão alemã "no contexto europeu", escreve Ulrich Beck [6]. Esta lógica de exclusão da diferença conduz inexoravelmente ao mito de Narciso: morrer de tanto contemplar a si mesmo e ser intolerante com o outro. Hoje é a Grécia, depois será a Itália e a Espanha. Amanhã, a Europa – ou quem sabe a humanidade – será só a Alemanha.
No entanto, a dificuldade de pensar na coexistência na Europa (e no mundo) de sociedades diferentes daquelas inspiradas no liberalismo é algo inerente à ideologia do suposto "modelo" liberal. O fortalecimento de movimentos xenófobos em todos os países europeus revela uma profunda intolerância a tudo o que vem de fora. O apoio à Grécia foi baseado em argumentos políticos e econômicos sem dúvida razoáveis: a interdependência dos Estados e a ameaça de falência generalizada [7], o fracasso do pacto de estabilidade e crescimento como instrumento de governança da zona do euro [8]. A necessidade de sair da lógica da "autorregulação" pelo mercado é amplamente debatida. Mas quem levantou o debate sobre se valores e modos de vida diferentes podem coexistir na Europa, e como se organizará esta diversidade?
Tanto a pergunta como a resposta são, no entanto, urgentes. Primeiro porque, além da organização da atual UE, levantam a questão das fronteiras e da seleção de novos candidatos. Por que a Grécia e não a Turquia? Em segundo lugar, porque a crise da hegemonia ocidental e a ascensão de sociedades muito diferentes das europeias suscitam a questão das relações da UE com os outros países. Pode-se insistir na lógica da exclusão daqueles que não refletem nossa própria imagem? Podemos nos fechar no autismo euro-americano [9] e na busca de espelhos a golpes de euros ou do furor das armas? Pode-se continuar a evocar a superioridade dos valores europeus para impô-los no relacionamento com o outro?
E que valores são esses? A crise sem precedentes nas sociedades europeias parece aproximá-las das sociedades que elas pretendem desenvolver. O individualismo, a irresponsabilidade individual e coletiva, a anomia e a desintegração dos laços sociais não têm por que causar inveja aos gregos, por exemplo. O interesse pela coisa pública desapareceu, as instituições funcionam mal, as relações entre os cidadãos e os governos são nefastas, e a transparência deu lugar ao segredo. A ganância e a corrupção tornaram-se modo de governança. As desigualdades aumentam e as sociedades temem perder suas conquistas materiais. Nasce um novo tipo de poder, personalizado e autoritário, populista e infantilizador de indivíduos apáticos [10].
A crise grega é o espelho dos limites do modelo liberal [11], não só do ponto de vista econômico, mas também político e social. Os efeitos devastadores da ascensão, no nível mundial, da ganância e do consumo como modo de vida, da competição de todos contra todos, exigem a busca de outras maneiras de vida comum, na UE mas também no planeta. Formas mais inclusivas das diferenças, dos alemães por causa da sua grande competitividade aos gregos pela razão oposta. Isso implica mudar os modos coletivos de nos enxergar e de enxergar os outros. As receitas econômicas terão um impacto limitado, ou nenhum, se não houver um debate aprofundado sobre que sociedade queremos construir no lugar desta que está em crise. Como reconstruir o coletivo, nos níveis nacional, europeu, e até global? Com que valores e que regras? Que tipo de poder político queremos para substituir este atual, tão difamado? Para isso, temos de superar a lógica econômica como único horizonte de pensamento e de ação e restabelecer o debate público, para suscitar a ação da sociedade sobre si mesma, para se transformar. Existem movimentos sociais e outras formas de pensamento na Europa, mas são marginais e fragmentados.
A globalização, por sua vez, exige um enorme esforço de compreensão do outro, por mais difícil seja. A finitude do planeta torna-se uma consciência comum que poderia abrir caminho a formas menos destrutivas de habitá-lo. O caminho, no entanto, será longo! Sem querer ofender economistas e outros detentores de verdades absolutas, não há solução milagrosa. É preciso inovar e trabalhar por uma revolução cultural da sociedade.
[1] G. Burgel, « Athènes est au bord de la faillite, mais les Grecs sont riches », in Le Monde, 6 de março de 2010
[2] Ver o caso de Jacques Attali mandando "se catar" Georges Prevelakis, acadêmico francês de origem grega, que salientou a identificação oriental da sociedade grega, sua cegueira sobre si própria, e a ineficácia das medidas impostas (7 / 10, Nicolas Demorand, France Inter, 6 de maio de 2010)
[3] Ver, entre outros, Marcel Gauchet, La crise du libéralisme, Paris, Gallimard, 2007
[4] Ver Sophia Mappa, Orthodoxie et Pouvoir, in Sophia Mappa (dir) Puissance et impuissance de l’Etat, Karthala, Paris, 1996
[5] O processo inicial de adesão começou em 1961. O Tratado de Roma previa um período de transição de 22 anos.
[6] Ulrich Beck, “Non à l’Allemagne du repli” in Le Monde, 12 de abril de 2010
[7] Ulrich Beck, idem
[8] Poul Nyrup Rasmussen, “introduzir um mecanismo de estabilidade financeira é insispensável", em Le Monde, 06 de março de 2010
[9] Regis Debray, Un mythe contemporain : le dialogue des civilisations, Paris, CNRS Editions, 2007
[10] Além do excelente texto de J. P. Delevoye, Mediador da república, Le Monde, 20/02/2010, permitimo-nos remeter o leitor a nosso livro, Sophia Mappa (dir) Les impensés de la gouvernance. La société civile, réponse à la crise ? Paris, Karthala, 2009
[11] Ver, entre outros, Akram Belkaid, « Doit-on vraiment sauver la monnaie unique européenne ? » Em Le Monde diplomatique, junho de 2010
*Sophia Mappa é historiadora
Tradução de Clarisse Meireles
Mas não se viu uma análise da sociedade grega que pudesse contribuir para a compreensão de sua especificidade e jogar luz, também, sobre as contradições da construção europeia. As abordagens econômicas tampouco tocaram nas questões mais profundas. Por que o "subdesenvolvimento" crônico da Grécia, uma vez que os gregos são "ricos", como afirma o muito simpático Guy Burgel?[1] Por que os esforços europeus para "desenvolver" o país fracassam depois de trinta anos de adesão à União Europeia, e apesar dos dois séculos de tutela ocidental sobre o país? Quais os critérios utilizados para avaliar o desenvolvimento, a preguiça e a corrupção?
As poucas tentativas de introduzir uma visão mais complexa da sociedade foram dispensadas com uma arrogância representativa da pobreza do nosso pensamento[2] e, em todo caso, não suscitaram debate. Sem uma análise global, as soluções econômicas recomendadas, incluindo o escalonamento da dívida, serão, no fim, ineficazes. Estas soluções não lidam de forma complexa com as dificuldades gregas, incluindo o enorme fosso entre consumo e produção, nem com os desafios da construção europeia, como alguns países que não estão em conformidade com o modelo europeu, ou com a eficácia do próprio modelo, em uma conjuntura de crise sem precedentes. Na realidade, a crise econômica é um sintoma de complexas mutações sociais, e até antropológicas, e não sua origem.[3] O pensamento econômico explica uma pequena parte da sociedade, mas está longe de dar conta de sua complexidade.
As reações dos membros do governo e da opinião pública grega reforçaram o clima passional. Esquecendo que o PASOK reina na Grécia desde 1981, com um intervalo de oito anos de governos de direita, os líderes socialistas encontraram dois bodes expiatórios fáceis: a direita grega e a Alemanha. Nenhuma análise sobre uma sociedade devorada pelo consumo frenético de produtos ocidentais, sem produção equivalente e lutando com a ambivalência identitária que caracteriza todos os dominados: o desejo e a rejeição da Europa, a submissão e o descumprimento de suas ordens, as revoltas sem projeto para o futuro.
As reações viscerais e as abordagens técnicas, de ambas as partes, evitaram três questões básicas: a primeira é saber o grau de adesão dos países-membros da União Europeia aos princípios do liberalismo econômico e político, até sua própria compreensão dos mecanismos, valores e práticas inerentes a ele. As lógicas de exclusão, de que Merkel é a porta-voz, no interior da Europa, baseiam-se no pressuposto da adesão sem ressalvas ou, pelo menos, no imperativo de tal adesão. No extremo oposto, o caso grego desmente esse pressuposto. A segunda questão diz respeito à validade da convicção, amplamente difundida na Europa, de que a ajuda financeira a países não-conformes na Europa têm a finalidade de "desenvolvê-los" seguindo o modelo liberal, ou democratizá-los. Esta questão pode iluminar os impasses da integração europeia, mas também aqueles das políticas externas da Europa. A terceira é a questão da eficácia do modelo liberal, mesmo dentro de países europeus "verdadeiros" como a Alemanha, a França ou Holanda e Bélgica. Ela remete à necessidade de compreender a natureza da crise do modelo como um todo.
Assim como outras regiões e países europeus, como o sul da Itália, a Córsega, Portugal, Irlanda e, em menor medida, a Espanha, a Grécia pode fornecer pistas importantes para estas perguntas.
Rememorando o passado: uma adesão oportunista
Quando o país adere ao Mercado Comum, em 1981, a sociedade grega conhecia a Europa especialmente por suas conquistas materiais. Mas ignorava em grande parte os valores e o trabalho que estão na origem da riqueza. Apegada, sem saber, à sua tradição, principalmente ortodoxa [4], a sociedade nunca se propôs questionar e mudar as ideologias e práticas herdadas do passado bizantino e otomano. Mesmo tendo um domínio intelectual modesto sobre sua tradição, havia a experiência vivida, que se manifesta nas práticas cotidianas e nas ações mais íntimas dos indivíduos. Sua relação com o mundo exterior não indicava uma adesão ao espírito do capitalismo. Eram contemplativos, e a movimentação para transformar o mundo os deixava indiferentes. As seitas protestantes e sua glorificação do trabalho como meio de salvação nunca tocaram o imaginário coletivo, tradicionalmente hostil a qualquer coisa vinda do Ocidente. Como para muitas sociedades no mundo, o trabalho na Grécia não era algo associado à criatividade ou à identidade do indivíduo, mas à necessidade e à sobrevivência. As atividades econômicas que se desenvolviam eram aquelas tradicionalmente conhecidas: agricultura, comércio, marinha mercante, artesanato e, desde a década 1960, o turismo familiar. Não havia nada de capitalista nisso tudo. Nenhum desejo de transformar a natureza, nenhuma indústria, nenhuma acumulação de capital, investimento de longo prazo ou lógica contábil, nada de criação de riqueza ou de empregos modernos, nada de ciência e desenvolvimento tecnológico, mas uma dependência crônica das riquezas produzidas fora (os fundos enviados pelos expatriados, as ajudas europeias e depois americanas).
Do liberalismo político, a sociedade grega também só fazia uma vaga ideia sem nunca, em todo caso, o haver experimentado. O indivíduo livre e responsável por seus atos e pensamentos, o interesse público, o Estado de Direito, o Direito Civil, a razão, o debate público como meio de governar a cidade... nada disso fazia parte do patrimônio cultural nem da experiência da sociedade. Era a obediência aos poderes e a irresponsabilidade individual e coletiva que instituíam o político e o social. O estado, instaurado pelas potências europeias no início do século XIX, estava sob a tutela das chancelarias europeias e, após a Segunda Guerra, sob a tutela norte-americana. As relações do Estado com a sociedade eram clientelistas. Como o beylik Otomano, o estado era considerado propriedade do líder, do qual as clientelas se serviam, em detrimento de outros grupos. Além disso, o sistema de tributação ocidental para financiar a construção de serviços coletivos nunca vingou na Grécia. O poder governava pela força e era transmitido de família em família; como ainda hoje. Não havia nação ou unidade nacional, portanto. No lugar de soberania nacional, sucessivas tutelas. Nada de liberalismo político, mas uma longa série de regimes parlamentares abortados e de golpes militares, o mais recente entre 1967 e 1974.
A história contemporânea da Grécia é marcada por humilhações (derrotas militares, fracassos econômicos) que a fazem esquecer seus sucessos. Frustrações recorrentes igualmente, nunca elucidadas pela razão nem, a fortiori, assumidas. O responsável sempre estava fora: a Turquia, o Ocidente, o imperialismo. A responsabilidade própria, individual e coletiva, não faz sentido naquela sociedade. A genialidade do fundador do PASOK, pai do ex-primeiro-ministro George Papandreou e filho de outro líder político, foi explorar este estado de espírito e de incluir a sociedade grega em um "projeto" anti-capitalista e anti-ocidental. A história vai mostrar que não havia um projeto. O PASOK foi a expressão das frustrações gregas, mas não ofereceu nenhuma solução.
A adesão da Grécia à Europa, conduzida pelo primeiro-ministro K. Karamanlis, foi pensada como um remédio para a incapacidade da sociedade de sair do círculo vicioso de golpes militares, mas também da ameaça turca. Mas não houve nenhum debate significativo sobre a capacidade e a vontade da sociedade de se integrar ao mercado comum. A disputa acirrada que opôs os pró-europeus aos terceiro mundistas do PASOK, hostis à adesão, não se apoiava em qualquer análise da sociedade tal como era. Para os primeiros, cheios de desprezo pela Grécia real, a simples adesão à Europa seria suficiente para transformá-la em uma sociedade europeia. Para os últimos, não havia nada a mudar. Bastaria libertar o país da dominação ocidental para finalmente alcançar a felicidade. É significativo que o PASOK, que chegou ao poder em 1981, logo após a assinatura da adesão, não a contestou. Mas não mudou nada em sua posição antiocidental nem em suas explosões chauvinistas, que tanto entusiasmavam o povo.
Tampouco houve debate entre os europeus. A relutância inicial [5] desapareceu após o "retorno à democracia", em 1974. Por ignorância da sociedade, por uma crença amplamente compartilhada, ainda hoje, de que a democracia se resume à organização de eleições, e que as ajudas financeiras levariam ao capitalismo (e à democracia), pelo desejo de expansão e também de poder, pelo fascínio com o milagre ateniense de vinte e cinco séculos, o clube dos ricos aceitou o ingresso dos pobres. O Partenon agora estava na Europa e, com ele, as ilhas gregas, tão cobiçadas pelos turistas europeus, inclusive os alemães, em busca de sol para reproduzir sua força de trabalho. Sem esquecer o mercado consumidor para os produtos europeus, inclusive armas, que passaram a inundar o país.
Foi, dessa forma, um amálgama de ideologias, interesses e mitologias, que guiou o lado europeu na adesão da Grécia. A expectativa de uma transformação rápida provou-se ilusória. Não poderia ser de outra forma. Nenhuma sociedade muda radicalmente, e, a fortiori, impulsionada de fora. Como todo beneficiário da ajuda ocidental, a Grécia não utilizou a ajuda financeira para se "desenvolver" nem para se democratizar. Como no passado, com o Plano Marshall, o que aconteceu em trinta anos foi o reforço das lógicas tradicionais; de dependência, econômica e política, com um aumento sem precedentes do consumo, sem transformação do seu aparato produtivo. Este último perdeu algumas de suas atividades tradicionais (agricultura, artesanato), sem, no entanto, ser capaz de criar novas. As atividades tradicionais de importação e exportação aumentaram em importância, impulsionadas pelos países industrializados da UE, que usaram a Grécia como um trampolim de acesso aos Balcãs. No mesmo período, as atividades ilegais (tráfico de drogas e armas) floresceram e os laços familiares tradicionais se desintegraram, dando lugar a uma atomização crescente. O populismo se estabeleceu como forma de governo, à esquerda e à direita, e os benefícios sociais concedidos não tinham adequação com as receitas próprias. O custo foi o endividamento público e privado. Quanto às relações com os "parceiros europeus", a divisão histórica e as ambivalências tradicionais persistem, mesmo que atenuadas pelo mimetismo e pelo consumismo. O erro é sempre do outro: da Europa, do FMI, dos bancos norte-americanos. Daí o naufrágio, não só econômico. É a derrota de uma sociedade que caiu na armadilha da ilusão de um progresso material infinito sem mudanças radicais em seus modos de produção e consumo. Como ocorre entre os beneficiários da ajuda ocidental, a sociedade grega nunca enxergou a mudança imposta pela União Europeia como um objetivo a ser alcançado. As obrigações foram contornadas pelo ardil. Hoje, em plena tempestade financeira, a não há nenhum debate em torno da produção.
A lógica da exclusão
A adesão da Grécia à UE foi, assim, uma oportunidade perdida para se debater que Europa queríamos construir, e para buscar uma resposta com conhecimento de causa. Assim, os países europeus "verdadeiros" são tão responsáveis quanto os "falsos". A sempre proclamada diversidade, ainda recentemente evocada nas eleições europeias, não passou de um slogan, como aqueles que exaltam a diversidade no planeta. Não houve reflexão significativa sobre o lugar da alteridade na Europa, pela simples razão de que, ali, a alteridade não está presente nem tampouco é aceita. É difícil compreender valores que não compartilhamos e não experimentamos. É mais fácil pedir mudanças nos outros e esquecer a necessidade de suas próprias mudanças para que o convívio seja possível.
As contradições desta velha ideologia europeia são hoje incontornáveis, tanto no nível europeu quanto internacional. A exclusão da Grécia, proposta por Angela Merkel, é, certamente, um caso extremo. Mas é significativa da densidade histórica das sociedades e das continuidades enraizadas em sua cultura, mesmo quando acreditam ter rompido com o passado. "Uma nação (a alemã) voltada para dentro, que retoma novamente a "questão alemã "no contexto europeu", escreve Ulrich Beck [6]. Esta lógica de exclusão da diferença conduz inexoravelmente ao mito de Narciso: morrer de tanto contemplar a si mesmo e ser intolerante com o outro. Hoje é a Grécia, depois será a Itália e a Espanha. Amanhã, a Europa – ou quem sabe a humanidade – será só a Alemanha.
No entanto, a dificuldade de pensar na coexistência na Europa (e no mundo) de sociedades diferentes daquelas inspiradas no liberalismo é algo inerente à ideologia do suposto "modelo" liberal. O fortalecimento de movimentos xenófobos em todos os países europeus revela uma profunda intolerância a tudo o que vem de fora. O apoio à Grécia foi baseado em argumentos políticos e econômicos sem dúvida razoáveis: a interdependência dos Estados e a ameaça de falência generalizada [7], o fracasso do pacto de estabilidade e crescimento como instrumento de governança da zona do euro [8]. A necessidade de sair da lógica da "autorregulação" pelo mercado é amplamente debatida. Mas quem levantou o debate sobre se valores e modos de vida diferentes podem coexistir na Europa, e como se organizará esta diversidade?
Tanto a pergunta como a resposta são, no entanto, urgentes. Primeiro porque, além da organização da atual UE, levantam a questão das fronteiras e da seleção de novos candidatos. Por que a Grécia e não a Turquia? Em segundo lugar, porque a crise da hegemonia ocidental e a ascensão de sociedades muito diferentes das europeias suscitam a questão das relações da UE com os outros países. Pode-se insistir na lógica da exclusão daqueles que não refletem nossa própria imagem? Podemos nos fechar no autismo euro-americano [9] e na busca de espelhos a golpes de euros ou do furor das armas? Pode-se continuar a evocar a superioridade dos valores europeus para impô-los no relacionamento com o outro?
E que valores são esses? A crise sem precedentes nas sociedades europeias parece aproximá-las das sociedades que elas pretendem desenvolver. O individualismo, a irresponsabilidade individual e coletiva, a anomia e a desintegração dos laços sociais não têm por que causar inveja aos gregos, por exemplo. O interesse pela coisa pública desapareceu, as instituições funcionam mal, as relações entre os cidadãos e os governos são nefastas, e a transparência deu lugar ao segredo. A ganância e a corrupção tornaram-se modo de governança. As desigualdades aumentam e as sociedades temem perder suas conquistas materiais. Nasce um novo tipo de poder, personalizado e autoritário, populista e infantilizador de indivíduos apáticos [10].
A crise grega é o espelho dos limites do modelo liberal [11], não só do ponto de vista econômico, mas também político e social. Os efeitos devastadores da ascensão, no nível mundial, da ganância e do consumo como modo de vida, da competição de todos contra todos, exigem a busca de outras maneiras de vida comum, na UE mas também no planeta. Formas mais inclusivas das diferenças, dos alemães por causa da sua grande competitividade aos gregos pela razão oposta. Isso implica mudar os modos coletivos de nos enxergar e de enxergar os outros. As receitas econômicas terão um impacto limitado, ou nenhum, se não houver um debate aprofundado sobre que sociedade queremos construir no lugar desta que está em crise. Como reconstruir o coletivo, nos níveis nacional, europeu, e até global? Com que valores e que regras? Que tipo de poder político queremos para substituir este atual, tão difamado? Para isso, temos de superar a lógica econômica como único horizonte de pensamento e de ação e restabelecer o debate público, para suscitar a ação da sociedade sobre si mesma, para se transformar. Existem movimentos sociais e outras formas de pensamento na Europa, mas são marginais e fragmentados.
A globalização, por sua vez, exige um enorme esforço de compreensão do outro, por mais difícil seja. A finitude do planeta torna-se uma consciência comum que poderia abrir caminho a formas menos destrutivas de habitá-lo. O caminho, no entanto, será longo! Sem querer ofender economistas e outros detentores de verdades absolutas, não há solução milagrosa. É preciso inovar e trabalhar por uma revolução cultural da sociedade.
[1] G. Burgel, « Athènes est au bord de la faillite, mais les Grecs sont riches », in Le Monde, 6 de março de 2010
[2] Ver o caso de Jacques Attali mandando "se catar" Georges Prevelakis, acadêmico francês de origem grega, que salientou a identificação oriental da sociedade grega, sua cegueira sobre si própria, e a ineficácia das medidas impostas (7 / 10, Nicolas Demorand, France Inter, 6 de maio de 2010)
[3] Ver, entre outros, Marcel Gauchet, La crise du libéralisme, Paris, Gallimard, 2007
[4] Ver Sophia Mappa, Orthodoxie et Pouvoir, in Sophia Mappa (dir) Puissance et impuissance de l’Etat, Karthala, Paris, 1996
[5] O processo inicial de adesão começou em 1961. O Tratado de Roma previa um período de transição de 22 anos.
[6] Ulrich Beck, “Non à l’Allemagne du repli” in Le Monde, 12 de abril de 2010
[7] Ulrich Beck, idem
[8] Poul Nyrup Rasmussen, “introduzir um mecanismo de estabilidade financeira é insispensável", em Le Monde, 06 de março de 2010
[9] Regis Debray, Un mythe contemporain : le dialogue des civilisations, Paris, CNRS Editions, 2007
[10] Além do excelente texto de J. P. Delevoye, Mediador da república, Le Monde, 20/02/2010, permitimo-nos remeter o leitor a nosso livro, Sophia Mappa (dir) Les impensés de la gouvernance. La société civile, réponse à la crise ? Paris, Karthala, 2009
[11] Ver, entre outros, Akram Belkaid, « Doit-on vraiment sauver la monnaie unique européenne ? » Em Le Monde diplomatique, junho de 2010
*Sophia Mappa é historiadora
Tradução de Clarisse Meireles
Fonte: Carta Maior
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