O presente artigo busca lançar luz sobre as disputas no Mar do Sul da China e seu potencial para uma escalada de violência capaz de impactar todo o sistema internacional.
Por Diego Pautasso e Gaio Doria do Portal Resistência
Para tanto, o presente artigo está organizado da seguinte forma. Primeiro, deve-se situar visões importantes acerca da ascensão chinesa, considerando tanto estadunidenses quanto chineses. Segundo, aborda-se a dimensão regional do conflito no Mar do Sul da China, destacando as ambições em jogo. Terceiro, a dimensão internacional do conflito, pois revela uma “queda de braço” entre a potência ascendente (China) e a superpotência hegemônica (EUA) num contexto de transição de poder no sistema internacional. Se é possível reconhecer que o sistema internacional se encontra numa encruzilhada, cujo potencial de escala militar é inédito, parte disso se deve aos riscos relativos aos litígios no Mar do Sul da China.
1. Algumas visões sobre a ascensão chinesa
As reformas econômicas e políticas implementas pela Nova China na década de 1970 alçaram o país ao patamar de segunda maior economia do mundo – e a maior medida em poder de paridade de compra, com 19,3 trilhões contra 19,1 trilhões dos EUA (1). O poderio conquistado, no entanto, impôs o desafio de entender, no âmbito das relações internacionais, as novas capacidades do gigante asiático e sua posição na ordem internacional vigente. No Ocidente, a interpretação que ganhou mais fôlego foi a da “ameaça chinesa”, amplamente derivada dos conceitos sobre o realismo ofensivo propostos por John J. Mearsheimer. Na versão atualizada de sua obra seminal, o autor explica que a teoria do realismo ofensivo se baseia em cinco premissas: 1 – o sistema internacional é anárquico; 2 – as grandes potências tem um poder militar inerente a sua condição, o que lhes dá poder de destruir umas as outras; 3 – os estados nunca estão completamente cientes das intenções dos demais estados; 4 – os estados possuem como objetivo primário a sua sobrevivência; 5 – grandes potências são atores racionais [CITATION Mea14 l 1033 ].
Mearsheimer lembra que desde a década de 1990 sustentava que a ascensão da China não iria ocorrer de forma pacífica. Segundo ele, “se a China continuar a crescer economicamente, irá tentar dominar a Ásia da mesma maneira que os EUA dominaram o hemisfério ocidental”. O autor é claro ao sentenciar que os EUA farão o possível para prevenir a China de atingir hegemonia regional, buscando construir alianças para conter a ascensão do país asiático. E destaca ainda que o “resultado será uma enorme competição de segurança com enorme potencial para a guerra” e uma improvável ascensão tranquila da China[ CITATION Mea14 l 1033 ].
De fato, a China incrementou sobremaneira suas capacidades econômicas, política e militares, tornando-se peça importante no tabuleiro internacional. É notório que o potencial militar chinês vem crescendo quase que proporcionalmente ao seu sucesso econômico. Como destaca Dornelles Jr. (2014), a modernização militar do Exército de Libertação do Povo (ELP) tem mudado sensivelmente a distribuição de poder no Leste Asiático (e no mundo) em favor da China. Com efeito, o gigante asiático passou a influenciar de forma decisiva temas tão diversos como o engajamento em assuntos de segurança, a crescente integração econômica da Ásia, os investimentos na África e na América Latina, a criação de instituições alternativas ao sistema financeiro vigente, entre outras. Inegavelmente, a ascensão da China aparece no horizonte como um claro desafio a ordem internacional atualmente liderada pelos EUA.
Com o intuito de se contrapor a esta visão, oficiais do governo e acadêmicos chineses desenvolveram a ideia de desenvolvimento pacífico e da construção de um mundo harmonioso (和平发展与构建和谐世界). O novo conceito de segurança (新安全观) tem buscado integrar as questões securitárias às concepções históricas chinesas avessa ao emprego da força como recurso prioritário. Conforme o documento publicado pelo Ministério das Relações Exteriores, “na visão da China, o cerne deste novo conceito de segurança deve incluir confiança mútua, benefício mútuo, igualdade e coordenação” [CITATION Min02 l 1033 ]. Yan Xuentong é um bom exemplo da maneira como intelectuais e formuladores chineses têm buscando integrar pensamentos e conceitos da antiguidade chinesa com novas teorias e interpretações para a inserção do país asiático (Yan, 2011).
No bojo deste debate, um proeminente membro do Partido Comunista da China, Zheng Bijian, cunhou em 2003, o conceito de “ascensão pacífica” da China (中国和平崛起) ao dizer que “a única opção da China é se esforçar para ascender e, mais importante, para lutar por uma ascensão pacífica” (Zheng 2005, p. 14-19). Esse conceito gerou controvérsias na elite dirigente chinesa. Alguns nacionalistas acharam equivocado pois sinalizava que um eventual movimento independentista (Taiwan ou Tibet) ou disputa territorial seria tolerada. Outros pensavam que o conceito provocava desconfiança nos vizinhos por reafirmar a ideia de “ascensão”.
O fato é que tem ocorrido atualizações nos conceitos de política externa ao longo das gerações de liderança coletiva do PCCh. É inegável, contudo, que os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica – nomeadamente respeito mútuo a integridade territorial e soberania; não agressão mútua; não interferência nos assuntos internos; igualdade, beneficio mútuo e coexistência pacífica – foram concebidos pela China para resolver a questão da convivência com países não socialistas e para resolver questões pendentes do ponto de vista histórico. Estes conceitos podem ser interpretados como a alma da PE Chinesa. Inicialmente proposta por Zhou Enlai para resolver a questão entre a China e a Índia no tocante ao Tibet, passou do âmbito das relações bilaterais para a esfera internacional através da Conferência Afro-Asiática realizada em Bandung, na Indonésia em 1955. Como destacam Pereira e Medeiros[CITATION Per15 l 1033 ], esta foi a base da Conferência de Bandung e de outros mecanismos multilaterais como o Movimento dos Não-Alinhados e o G-77, inaugurando, por sua vez, uma nova etapa na história mundial, sendo a origem das relações sul-sul e sua organização em torno de princípios, valores e ideias comuns.
Além disso, o binômio paz e desenvolvimento não é original da terceira geração da liderança do PCCh. Deng Xiaoping, em 1985, já problematizou a questão da interpretação da ascensão chinesa, utilizando conceitos que iriam se tornar chaves no discurso chinês nas próximas décadas, tais como relação sul-sul, antihegemonismo, entre outros. Deng é categórico ao afirmar que “quando a hora chegar, a China certamente irá desempenhar um grande papel na manutenção da paz e estabilidade mundial” (Deng, 1994, p. 110-12).
Ambas as interpretações são convincentes, contudo será na realidade prática, em especial nas situações onde há conflito de interesses, que poderemos captar a verdadeira natureza da ascensão chinesa. Nesse sentido, a questão do Mar do Sul assume uma importância singular para a região e para o mundo. O número de países que clamam soberania sobre aqueles territórios, a partilha das reservas de recursos naturais e a complexidade em acomodar as diversas disputas serão um grande desafio para a resolução do imbróglio. E, naturalmente, o envolvimento da superpotência estadunidense recrudesce estas disputas. Dessa forma, a consolidação da China como líder regional e potência mundial passa por saber conduzir tais litígios – que, por extensão, são essenciais para sua integridade territorial, segurança energética, integração regional e comércio exterior.
2. A dimensão regional do conflito
Não resta dúvidas de que um dos pontos de atrito mais tensos da Ásia-Pacifico é a questão do Mar do Sul da China. Para compreender a questão e suas narrativas, não se pode abstrair os centros acadêmicos produtores da pesquisa, muito menos veículos midiáticos envolvidos com o assunto. Embora a narrativa dominante ocidental concentre-se no expansionismo da China sobre os vizinhos, a problemática é muito mais profunda. Inclusive porque a China começou a estabelecer sua presença de maneira mais assertiva apenas por volta de setembro de 2013, com a construção de estruturas nos territórios reivindicados nas ilhas Spratly, enquanto outras estruturas já foram construídas, sendo 29 pelo Vietnã, 5 pela Malásia, 8 pelas Filipinas, 7 pela RPC e 1 por Taiwan [ CITATION Dol15 l 1033 ].
As disputas no Mar do Sul envolvem diversas ilhas e zonas econômicas exclusivas (mar territorial) entre diversos países da região, nomeadamente a República Popular da China, a República da China (Taiwan), Filipinas, Vietnã, Brunei e Malásia. A República Popular da China possui as maiores aspirações em termos territoriais, uma área definida através do conceito de “linha de nove-traços” (九段线), originalmente o nome era “linha dos onze-traços” e foi proposto pela República da China durante o governo do Guomindang, com ajuda técnica dos EUA, antes da derrota para os comunistas, em 1947, com intuito de reivindicar soberania sob as ilhas Paracels, Prats e Spratly, logo após a rendição japonesa na Segunda Guerra. Em fevereiro de 1948, a China publicou um atlas onde já apresentava o Mar do Sul como parte integrante do seu território.
O imbróglio aumentou quando o Tratado de São Francisco que dispôs sobre a situação do Japão no pós-guerra não resolveu a questão das ilhas, deixando a RPC e Taiwan de fora de qualquer negociação. Os comunistas emitiram notas de repúdio e, posteriormente, o Premier Zhou Enlai subtraiu dois traços, retirando o Golfo de Tonkin e formando a “linha de nove-traços” que a China reivindica atualmente. Aliás, em 1951 Zhou deixou claro a posição da China ao dizer que “as ilhas Xisha e Nanwei (Spratly) são partes inerentes do território chinês, assim como o as ilhas Nansha, Zhongsha e Dongsha. Elas caíram durante a guerra de resistência à agressão dos imperialistas japoneses, mas foram completamente recuperadas pelo então governo chinês após a rendição japonesa” (Gao e Jia 2014, p. 67).
Segundo a entrevista concedida ao Consensus Net por Xue Li [CITATION Xue16 l 1033 ], chefe da Divisão Estratégica Internacional do Instituto de Economia e Política Mundial da Academia de Ciências Sociais da China, não existe consenso entre os acadêmicos chineses sobre assunto. Há, todavia, quatro grandes interpretações sobre o significado da “linha dos nove-traços”: demarcação de fronteiras marítimas, soberania sob as ilhas, direitos históricos e águas históricas.
O governo chinês, no entanto, adota como posição oficial os direitos históricos sobre a região, pois argumenta que as atividades dos chineses no Mar do Sul da China datam de mais de dois mil anos. A China teria sido a primeira a descobrir, nomear e se dedicar à exploração e ao aproveitamento das ilhas localizadas no Mar do Sul, além de ter sido a primeira a exercer soberania e jurisdição sobre elas de forma contínua, pacífica e eficaz. Segundo o recente Livro Branco publicado pelo Gabinete de Imprensa do Conselho de Estado da China envolvendo a questão, há numerosos documentos históricos para comprovar essa afirmação, tais como o “Yi Wu Zhi (Relato de Coisas Estranhas) da dinastia Han do Leste (25-220); Fu Nan Zhuan (Registro de Fu Nan) do Período dos Três Reinos (220-280); Meng Liang Lu (Registro de um Sonhador Acordado) e Ling Wai Dai Da (Notas sobre as Ilhas além das Passagens) da dinastia Song (960-1279); Dao Yi Zhi Lüe (Breve Relato das Ilhas) da dinastia Yuan (1271-1368); Dong Xi Yang Kao (Estudos sobre Oceanos do Leste e do Oeste) e Shun Feng Xiang Song (Bom Vento para Escolta) da dinastia Ming (1368-1644); assim como Zhi Nan Zheng Fa (Navegações com Bússola) e Hai Guo Wen Jian Lu (Registros de Coisas Vistas e Ouvidas sobre as Regiões Costeiras) da dinastia Qing (1644-1911)”. (Gabinete de Imprensa do Conselho de Estado da China, 2016)
Todos os atores regionais têm suas razões para sustentar seus pleitos territoriais, pois não se trata de uma questão técnico-jurídica e sim (geo)política. De acordo com Hayton (2014), assim como a China busca na história as razões de sua soberania sobre aqueles territórios, é possível argumentar que a existência dos governantes do Império de Funan no delta do Mekong não representava submissão à China, mas apenas o controle das rotas marítimas que levam aos portos chineses. Na mesma linha, o mesmo autor argumenta que o problema recrudesceu na medida em que os europeus transformaram as “fronteiras fluidas” em “fronteiras fixas” durante o período colonial (Hayton, 2014, p. 47). Assim, Taiwan segue as mesmas reivindicações de Pequim; o Vietnã argumenta que possui presença ativa nas ilhas Paracels e Spratly desde o século 17; a Malásia e Brunei reivindicam territórios no Mar do Sul baseando-se na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; e as Filipinas não só reivindica ilhas nas Spratly como o Scarborough Shoal (conhecida como Huangyan Island pela China).
Sabedora da complexidade do litigio, a China percorre caminhos sinuosos. Por um lado, o governo chinês mostra-se assertivo, buscando reafirmar a Lei sobre o Mar Territorial e Zonas Contíguas de 1992 da RPC que deixa claro soberania indisputável sobre as ilhas e territórios reivindicados no Mar do Sul. Por outro, busca evita posturas unilaterais e intervencionistas para não gerar ressentimentos regionais e atender aos interesses estadunidenses.
Aliás, em julho de 2016 o Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia aceitou a demanda das Filipinas de explorar recursos no Mar do Sul da China. Segundo o Tribunal, não procede as alegações chinesas acerca das “evidências históricas” de seu controle sobre aquela região. Mesmo que tivesse direitos históricos sobre as águas do Mar do Sul, esses direitos foram extintos pois são incompatíveis com as zonas econômicas exclusivas estabelecidas pela Convenção das Nações Unidas de 1982 sobre o Direito do Mar (2). Ao que parece, a China já esperava uma resposta negativa, pois no dia 5 de junho de 2016, no Diálogo China-EUA sobre o Mar do Sul da China entre think-tanks chineses e estadunidenses, em Washington D.C, o diplomata chinês veterano Dai Bingguo [CITATION Dai16 l 1033 ] afirmou que “adjudicação definitiva da arbitragem, que sairá nos próximos dias, equivale a nada mais do que um pedaço de papel”.
E mesmo antes da decisão oficial ser publicada, o jornal Global Times já havia escrito um editorial avisando que a reação da China iria depender da provocação das demais partes envolvidas, defendendo que “o povo e governo chinês compartilham dos mesmos interesses e responsabilidades. Nós devemos não apenas salvaguardar a soberania territorial, como também realizar esforços máximos para manter a paz na periferia da China, prolongando as oportunidades estratégicas para a ascensão da China” (Global Times, 2016). Após o veredicto, o governo chinês – que havia boicotado as audiências em Haia por não reconhecer a jurisdição do tribunal sobre a disputa – declarou “solenemente que o veredicto é nulo e não possui força vinculativa”, o país asiático ainda reafirma que “em relação às questões territoriais e disputas de delimitação marítima, a China não aceita qualquer meio de solução de disputas por terceiros ou qualquer solução imposta à China” (Ministério das Relações Exteriores da República Popular da China, 2016).
Em outras palavras, prefere realizar as negociações no âmbito das relações bilaterais conforme estabelecido na Declaração de Conduta das Partes no Mar do Sul da China, assinada em 2002 com dez países membros da ASEAN. Em março de 2016, o vice-ministro de relações exteriores da China, Liu Zhenmin, reafirmou esta posição ao declarar que “alguns países gostam de trazer à tona a questão do Mar do Sul da China nos fóruns multilaterais. O propósito verdadeiro deles não é resolver o problema, mas jogar com ele. Isto fez com que a questão do Mar do Sul da China se torne suscetível à exploração externa” (Liu, 2016).
É importante ressaltar que apesar da China não ter apresentado defesa oficial perante o Tribunal, surgiram diversas publicações de cunho técnico apresentando os argumentos da parte chinesa. Dentre estas, o livro editado pelo professor do Institute for Public International Law da University of Bonn Stefan Talmon e pelo professor da Escola de Direito da Tsinghua Univeristy Jia Bingbing se destaca pois assume o claro objetivo de “oferecer uma perspectiva especificamente chinesa em alguns dos assuntos legais perante o Tribunal de Arbitragem”, porém lembra que “o livro não pretende estabelecer ou representar de qualquer forma a posição do governo chinês, mas se esforça para servir como um tipo breve de amicus curiae de acadêmicos atuando em suas capacidades como especialistas independentes de direito internacional.” (Talmon e Jia, 2014) Em suma, a versão chinesa mesmo que transmitida por vias não oficiais esteve amplamente presente no processo do julgamento.
Ademais, o veredicto desfavorável a China também coloca as reivindicações do Vietnã em uma situação delicada, uma vez que o país também utiliza a ideia de direitos históricos para fundamentar seus argumentos. O interesse do Vietnã na disputa vai muito além da questão territorial, esbarra nas pretensões do país em se tornar um fator de peso na região e defender seus interesses frente a China e os EUA. Conforme assinala o professor da Academia Naval dos Estados Unidos, Robert Kaplan, “os vietnamitas sustentam que o Mar do Sul da China significa muito mais do que um sistema de disputas territoriais: é a encruzilhada do comércio marítimo global, vital para as necessidades energéticas da Coreia do Sul e do Japão, e o local onde a China poderia um dia verificar o poder dos Estados Unidos na Ásia” (Kaplan, 2015, p. 66).
A disputa entre o Vietnã e a China é extremamente sensitiva, visto que em um plano ambos os países comungam do mesmo sistema e ideologia e, em outro, apresentam profundas contradições oriundas de processos históricos e das conflitantes aspirações regionais de ambos os países. É uma disputa quase emocional onde a resolução do conflito “depende da disponibilidade de cada país em abandonar seus planos e ambições, que estão intimamente ligados à identidade nacional, patrimônio cultural, crescimento econômico e status internacional” (Cáceres, 2014, p. 125).
Em suma, a região tem importância estratégica e cada ator movimenta suas peças no tabuleiro com muita cautela. Na perspectiva chinesa, o imperativo é garantir a livre navegação na região, inclusive com a construção da Nova Rota da Seda Marítima; a atuação de sua plataforma móvel Haiyang Shiyou 981 (HYSY 981) para a exploração de recursos sem necessidade de ocupação (3); e a capacitação militar e sua mudança doutrinária para consolidar uma política de anti-acesso e negação de área (A2AD ou Anti-Access/Area Denial) (Malafaia, 2015).
3. A dimensão global: as disputas entre China e EUA
Existe a lenda de que Deng Xiaoping teria visitado as Filipinas e o presidente local da época teria dito: “se você olhar o mapa, as ilhas em disputa são mais perto das Filipinas do que da China”. Do que Deng teria dito, após uma pitadinha num cigarro estilo thug life: “se você olhar o mapa, as Filipinas são uma ilha perto da China” (4). Apesar de circular como verdade entre os chineses, sabe-se que não é verdade; contudo não deixa de expressar um fenômeno que é verossímil. Isso mostra, por um lado, que a China possuí uma percepção de ter herdado a condição de Império do Meio; e, por outro, que nos litígios territoriais os contendores possuem argumentos para legitimar seus pleitos.
Tudo indica, contudo, que os EUA tenham influenciado a demanda filipina junto ao Tribunal de Haia para fomentar o litígio e a consequentemente construção de alianças anti-chinesas na região. Não se deve aos laços que os unem, pois os EUA concederam a independência das Filipinas condicionado ao estabelecimento de suas bases militares (Losurdo, 2016, p. 247). Mas, de acordo com Viktor Sumsky (5), diretor do Centro da ASEAN na Universidade de Relações Internacionais de Moscou, o encaminhamento ao Tribunal tende a produzir um resultado contraproducente e potencializar o conflito, uma vez que o direito internacional existe para resolver pacificamente as situações de conflito, sobretudo porque a iniciação do processo de arbitragem exige a concordância de ambos os lados.
Os EUA, em conjunto com seus aliados, se anteciparam em criticar a China pela decisão de não respeitar a decisão da corte. Cabe destacar que historicamente nenhum membro permanente do conselho de segurança da ONU respeitou qualquer decisão do tribunal em quesitos envolvendo decisões que julguem infringir suas soberanias e interesses nacionais. Não obstante a hipocrisia estadunidense, fica a dúvida acerca do comportamento que a China irá adotar para dirimir esse conflito sem replicar as práticas das potências tradicionais.
Embora haja as legítimas disputas territoriais por esta região, é importante reconhecer que as raízes são mais profundas. A começar pelo fato de que os EUA nem são signatários da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar – documento no âmbito do direito internacional que dispõe sobre os conceitos relacionados ao mar territorial – e tampouco fazem parte da região. Ou, como destaca Losurdo (2016, p. 238), os EUA são reincidentes em negar de organismos internacionais, como foi o caso da condenação em 1986 do Tribunal de Haia pelas agressões contra a Nicarágua sandinista ou mesmo a rejeição à Corte Penal Internacional.
Nesse sentido, para os interesses estratégicos dos EUA, as disputas no Mar do Sul da China se prestam a muitos objetivos regionais. Primeiro, ampliar sua presença militar sob pretexto de resguardar os demais países da “ameaça chinesa”. Segundo, fomentar padrões de inimizade para fragilizar a liderança da China na região. Terceiro, gerar dissensos para fragilizar as iniciativas de integração regionais conduzida pelos chineses, tanto relacionado à ASEAN quanto à Rota da Seda Marítima. Quarta, tentar engolfar a China num conflito regional fazendo ser o “seu Vietnã”. Detalhe: os EUA usam o controle sobre o Estreito de Malaca como uma ameaça permanente à China.
A ascensão da China, até o presente momento, foi um processo pacífico e relativamente suave, onde a ordem internacional – não sem atritos – abriu espaço para acomodar a nova potência econômica. O país asiático foi sagaz ao buscar oportunidades em regiões esquecidas pelo eixo euro-estadunidense. No entanto, na medida que a influência e o poderio chinês crescem, também crescem suas responsabilidades diplomáticas internacionais. A estratégia adotada de não intervenção e neutralidade que garantiu poucos desgastes para a China, já não comporta mais os desafios e barreiras do quadro atual enfrentado pelo país asiático.
É evidente que os EUA vão explorar os conflitos na Ásia-Pacífico para criar entraves à liderança chinesa. Kissinger foi explicito, por exemplo, em indicar que o Japão deve redefinir seu papel na ordem mundial e se tornar um “país normal” (Kissinger, 2015, p. 193). Para os EUA, não interessa apenas que o Japão seja um aliado militarmente capaz e assertivo, mas também justificar a forte presença na península coreana em razão do cerco à Coreia do Norte. É nesse sentido que os conflitos no Mar do Sul da China se prestam para legitimar a presença dos EUA na região. Não é por acaso que a presença militar dos EUA, com exercícios e manobras, tem ocorrido com regularidade. Por exemplo, em junho de 2016, os dois maiores do mundo porta-aviões estadunidenses, USS John C. Stennis e USS Ronald Reagan, participaram de exercícios militares no mar das Filipinas, com mais de 12 mil marinheiros, 140 aeronaves e 6 navios de guerra (6). A desproporção de forças combinado ao evidente e histórico “poder de polícia internacional” auto conferido aos EUA são razões suficientes para as preocupações chinesas e para o risco de uma escala militar.
Em suma, essas demonstrações de força revelam que os EUA estão cada vez menos dispostos a assistir a ascensão chinesa. Com efeito, a questão do Mar do Sul da China é mais uma das formas de tentar contê-la, tal como fizera com a URSS durante a Guerra Fria. A isso se somam os intentos estadunidenses para desagregar a China através de movimentos separatistas no Tibet e em Xinjiang (Bandeira, 2013, p. 119). Há inclusive de se considerar o paralelo existente entre o conflito da Ucrânia e os litígios no Mar do Sul. Em ambos os casos, tem se tentado engolfar as potências desafiantes – China e Rússia – em conflitos regionais. A partir disso, é possível vilanizar os países em questão e criar enormes desafios às suas iniciativas internacionais. É inegável, por fim, que a questão do Mar do Sul certamente será um marco divisor na atuação internacional da China.
Considerações finais
Em âmbito regional, estas aparentes ilhotas geram tamanha controvérsia em razão de questões importantes: i) reservas de 11 bilhões de barris de óleo e 190 trilhões de metros cúbicos de gás natural; ii) rota marítima de extrema importância por onde passa cerca de U$5,3 trilhões de dólares do total anual de comércio do mundo e estão metade dos 50 maiores portos do mundo (7); e iii) alto potencial de exploração dos demais recursos naturais do mar.
Mas a questão de fundo é outra. Esse conflito é, antes de tudo, a antessala da tentativa dos EUA de conter a ascensão chinesa. Do lado dos EUA, trata-se de reproduzir a estratégia usada contra a URSS durante a Guerra Fria. Dividir, isolar a conter a China é essencial para tal, como atestam o apoio a movimentos separatistas e/ou à ênfase na construção da “ameaça chinesa”.
A dimensão militar é fortalecer a aliança com o Japão, utilizar o litígio com a Coreia do Norte para fixar presença na península e, como estamos destacando, utilizar as disputas no Mar do Sul da China para ampliar sua presença militar na região. A dimensão comercial dar-se-ia pela criação do Acordo de Parceria Trans-Pacífico (TPP) que foi negociado em segredo entre os Estados Unidos e 11 países da Ásia e do Pacífico – Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Cingapura, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru e Vietnã – para fazer frente às inciativas chinesas. Essa estratégia desenhada no governo Obama agora retroage com a política errática do governo Trump.
Em suma, o jornalista e especialista na questão, Bill Hayton, assinalou corretamente que dois imperativos estratégicos e diversos interesses regionais colidem no Mar do Sul da China. A disputa é perigosa pois cristaliza de certa forma a imagem que as duas nações conferem a si próprias. De um lado, está a China que através do Partido Comunista da China busca o rejuvenescimento da nação chinesa e a recuperação dos territórios e dignidade perdidos no século das humilhações, de outro, está os Estados Unidos e seu destino manifesto de líder global, protetor do “mundo livre” e guardião da ordem internacional.
Hayton sustenta que o Mar do sul da China é o primeiro lugar onde as normas e regras desse sistema internacional estão sendo desafiados pela China, pois se os EUA perdem o controle sobre as navegações pela região, perderá sua predominância global e se tornará apenas mais uma potência. Caso isso ocorra o “choque seria profundo e as consequências para a identidade, prosperidade e segurança estadunidenses devastadoras.” (Hayton, 2014, p. 208)
Por seu turno, a China busca a recriação do sistema sinocêntrico [ CITATION Pau11 l 2052 ] a partir de iniciativas para liderar a integração regional através de processos voltados ao Pacífico (Regional Comprehensive Economic Partnership também chamado de ASEAN+6) e à Eurásia (Organização para a Cooperação de Xangai). E tudo isso amarrado na Nova Rota da Seda Continental e Marítima (One Belt, One Road,一带一路) e seus mecanismos de financiamento, como o Fundo e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura. O caminho da China é, portanto, sinuoso, pois a um só tempo tem de preservar sua segurança e liderar os processos de integração regionais, mas sem replicar um padrão expansionista que legitime a estratégia estadunidense.
Fonte: Resistência
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