Existe
um fato objetivo. A economia chinesa acostumada a índices de
crescimento médio acima dos 9% desde o início das reformas econômicas
(1978), nos últimos – e nos próximos anos – deverá acostumar-se a
patamares mais modestos; algo em torno de 6,5% e 7,0%.
Por Elias Jabbour e Alexis Dantas*
As
explicações variam desde o “esgotamento de um modelo” aos modismos
etapistas/rostowianos que relacionam a queda da performance chinesa a
uma tal de “armadilha da renda média” e do surgimento de um “novo
normal”. Autores mais sérios tratam a questão, por exemplo, como um
preço pago pelo país por reformas internas recentes visando maior
liberalização financeira (1).
Neste sentido é evidente que a ampliação do escopo de ação internacional de sua moeda, o reinminbi, não ocorreria sem traumas: crises financeiras atingiram os mercados financeiros do país em agosto de 2015 ocasionando perda de mais de US$ 1 trilhão de suas reservas cambiais desde então. Porém, o trauma serviu para a afirmação do gradualismo que acompanha as reformas econômicas com as contradições sendo enfrentadas com ação estatal objetiva do Estado; nesse caso com clara intervenção sobre a política cambial e de gestão das reservas. Na China, o custo da liberalização não é pago com mais mercado, ao contrário.
Por outro lado, a combinação de alguns dados pode nos dar alguma luz sobre os rumos do gigante asiático: 1) mantidas as atuais médias anuais crescimento, poderemos concluir como espetacular o desempenho econômico do país; 2) sua atual contribuição à recuperação da demanda em escala internacional pode ser resumida tanto nos 13 milhões de empregos urbanos gerados no país em 2016 quanto na previsão de investimentos imediatos da ordem de US$ 1 trilhão somente no Projeto “Um cinturão, uma rota”.
Neste aspecto, vale um importante parêntese: interessante notar que o problema da falta de crescimento no Brasil e no mundo não deve ser analisada – somente – à luz da elasticidade-demanda da economia chinesa. O baixo crescimento mundial, apesar de também determinado pelo menor crescimento da economia chinesa, decorre dos efeitos fundamentais das próprias políticas de recuperação que foram implementadas, sobretudo nos países centrais. Um monetary easing que teve pouco efeito sobre crescimento de renda e emprego, determinando, ao contrário, uma retomada dos níveis de operações financeiras, principalmente de derivativos, ao momento pré-crise.
Voltando, o que será da China e do mundo demanda analisar a conjugação de dois níveis de transição. A primeira, na transformação da China em uma “potência de tripla condição” (comercial, industrial e financeira). A segunda, na conjunção deste processo com a transição interna de dinâmica de acumulação que o país tem passado juntamente com o papel do Estado e de sua força política dirigente (o Partido Comunista da China – PCCh).
A transformação da China em uma “potência de tripla condição” não ocorreu por uma propensão genética à poupança. Trata-se de um processo marcado por escolhas ativas de um Estado Nacional decidido a recuperar sua condição de grande potência perdida desde as Guerras do Ópio (1839-1842). As reformas econômicas reafirmam e reorientam uma estratégia nacional consagrada desde os eventos de outubro de 1949. Desde então, os comunistas chineses passaram a apostar em uma inserção soberana no mundo, internalizando o desenvolvimentismo de tipo asiático e aproveitando-se de mudanças na geografia econômica internacional inauguradas desde o início do processo de financeirização, além de preparar seu território à recepção de gigantescas unidades produtivas provenientes tanto do Atlântico Norte quanto de seus vizinhos (Hong-Kong, Taiwan, Coreia do Sul) e do Japão pós Acordos de Plaza (1985).
Ao longo das reformas econômicas foi se consolidando um grande setor privado, até então inexistente, que avançou, inclusive, sobre ativos estatais. Porém, é equivocado falar em diminuição do papel do Estado na China. Ocorre um processo onde o Estado foi reorganizando a si mesmo e encerrando, processualmente, novas e superiores formas de atuação. A trajetória chinesa, que nos obriga a estudar a responder determinadas questões postas pelo presente, é a história do surgimento de ondas de inovações institucionais explicando, em parte, as “soluções de continuidade” do processo de desenvolvimento.
Percebe-se que a cada onda de inovações institucionais surgem novos parâmetros de atuação entre os setores estatal e privado da economia. Por exemplo, a preparação do próprio território à recepção desde a implantação gradual das Zonas Econômicas Especiais (ZEE`s) até o lançamento em 1999 do “Programa de Desenvolvimento do Grande Oeste” constituíram-se em desenvolvimentos de elevação da ação do Estado em relação ao avanço, por baixo, do setor privado. A articulação destes ciclos institucionais com as dinâmicas internas de acumulação dá conta de um processo que tem capacitado o Estado Nacional chinês à intervenção rápida e direta sobre a realidade – conforme a própria resposta estatal à crise desde 2008 tem demonstrado. Vejamos abaixo.
Ganha forma o “socialismo de mercado”
Desde o início da década de 1990, sucessivas mudanças institucionais foram essenciais à: 1) a emersão de uma moderna economia monetária (fortalecimento e capilarização de uma imensa rede de bancos públicos voltados ao crédito de longo prazo) substituindo uma rede de financiamento dependente do orçamento estatal e das empresas; 2) mecanismos de controle macroeconômico (maxidesvalorização cambial em 1994 e instituição de controle sobre os fluxos de capitais); 3) um processo de fusões e aquisições no setor estatal da economia dando margem à formação de 149 conglomerados empresariais localizados nos setores estratégicos da economia e 4) formação, em 2003, da SASAC (State-owned Assets Supervision and Administration Commission of the State Council) responsável pela observância quanto à execução das políticas de Estado por parte dos citados conglomerados estatais (um claro órgão moderno de coordenação do investimento).
Esse interessante processo interno, com gigantescas implicações internacionais, logrou o desenvolvimento de um poderoso Estado Nacional que não somente detém o controle dos instrumentos cruciais do processo de acumulação e formação de policy space à execução de políticas monetárias propícias à socialização do investimento. Em outras “duas pontas”, o Estado – através de seus bancos de desenvolvimento – tanto financia o longo prazo quanto se utiliza de seus conglomerados estatais à execução de grandes empreendimentos internos e externos. Investimentos estes (“na frente”) geradores, nos lembrando A. Hirschman, efeitos de encadeamento que – em primeira instância – beneficiam diretamente seu braço ancilar, o setor privado (2).
Por fim, não estaríamos longe da verdade afirmar que a expansão do setor estatal na economia chinesa pós-crise pode ter gestado uma nova formação econômico-social, o chamado “socialismo de mercado”. Longe de ser uma “economia mista”, dado o poder de encadeamento do setor estatal. Algo muito diferente dos capitalismos de Estado clássicos, dado o peso real do próprio setor estatal na China: a estrutura de propriedade chinesa ainda é muito diferente de outras partes do mundo. Esse processo reflete-se diretamente em um aumento continuo, desde a segunda metade da década de 1990, do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional: de 13,5% do PIB em 1996 a 37,3% em 2015 (3).
Esse “socialismo de mercado” nasce na interseção entre um poder político de novo tipo gestado nos acontecimentos de 1949 e a fusão do grande banco e da grande indústria, ambas estatais. Trata-se de um processo fascinante. Uma construção eivada de limites e contradições explosivas. Algo que deveríamos, o pensamento progressista em geral, olhar com mais atenção, mais profundidade e, principalmente, menos preconceito.
___________________
* Respectivamente Professor Adjunto e Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ.
REFERÊNCIAS
Neste sentido é evidente que a ampliação do escopo de ação internacional de sua moeda, o reinminbi, não ocorreria sem traumas: crises financeiras atingiram os mercados financeiros do país em agosto de 2015 ocasionando perda de mais de US$ 1 trilhão de suas reservas cambiais desde então. Porém, o trauma serviu para a afirmação do gradualismo que acompanha as reformas econômicas com as contradições sendo enfrentadas com ação estatal objetiva do Estado; nesse caso com clara intervenção sobre a política cambial e de gestão das reservas. Na China, o custo da liberalização não é pago com mais mercado, ao contrário.
Por outro lado, a combinação de alguns dados pode nos dar alguma luz sobre os rumos do gigante asiático: 1) mantidas as atuais médias anuais crescimento, poderemos concluir como espetacular o desempenho econômico do país; 2) sua atual contribuição à recuperação da demanda em escala internacional pode ser resumida tanto nos 13 milhões de empregos urbanos gerados no país em 2016 quanto na previsão de investimentos imediatos da ordem de US$ 1 trilhão somente no Projeto “Um cinturão, uma rota”.
Neste aspecto, vale um importante parêntese: interessante notar que o problema da falta de crescimento no Brasil e no mundo não deve ser analisada – somente – à luz da elasticidade-demanda da economia chinesa. O baixo crescimento mundial, apesar de também determinado pelo menor crescimento da economia chinesa, decorre dos efeitos fundamentais das próprias políticas de recuperação que foram implementadas, sobretudo nos países centrais. Um monetary easing que teve pouco efeito sobre crescimento de renda e emprego, determinando, ao contrário, uma retomada dos níveis de operações financeiras, principalmente de derivativos, ao momento pré-crise.
Voltando, o que será da China e do mundo demanda analisar a conjugação de dois níveis de transição. A primeira, na transformação da China em uma “potência de tripla condição” (comercial, industrial e financeira). A segunda, na conjunção deste processo com a transição interna de dinâmica de acumulação que o país tem passado juntamente com o papel do Estado e de sua força política dirigente (o Partido Comunista da China – PCCh).
A transformação da China em uma “potência de tripla condição” não ocorreu por uma propensão genética à poupança. Trata-se de um processo marcado por escolhas ativas de um Estado Nacional decidido a recuperar sua condição de grande potência perdida desde as Guerras do Ópio (1839-1842). As reformas econômicas reafirmam e reorientam uma estratégia nacional consagrada desde os eventos de outubro de 1949. Desde então, os comunistas chineses passaram a apostar em uma inserção soberana no mundo, internalizando o desenvolvimentismo de tipo asiático e aproveitando-se de mudanças na geografia econômica internacional inauguradas desde o início do processo de financeirização, além de preparar seu território à recepção de gigantescas unidades produtivas provenientes tanto do Atlântico Norte quanto de seus vizinhos (Hong-Kong, Taiwan, Coreia do Sul) e do Japão pós Acordos de Plaza (1985).
Ao longo das reformas econômicas foi se consolidando um grande setor privado, até então inexistente, que avançou, inclusive, sobre ativos estatais. Porém, é equivocado falar em diminuição do papel do Estado na China. Ocorre um processo onde o Estado foi reorganizando a si mesmo e encerrando, processualmente, novas e superiores formas de atuação. A trajetória chinesa, que nos obriga a estudar a responder determinadas questões postas pelo presente, é a história do surgimento de ondas de inovações institucionais explicando, em parte, as “soluções de continuidade” do processo de desenvolvimento.
Percebe-se que a cada onda de inovações institucionais surgem novos parâmetros de atuação entre os setores estatal e privado da economia. Por exemplo, a preparação do próprio território à recepção desde a implantação gradual das Zonas Econômicas Especiais (ZEE`s) até o lançamento em 1999 do “Programa de Desenvolvimento do Grande Oeste” constituíram-se em desenvolvimentos de elevação da ação do Estado em relação ao avanço, por baixo, do setor privado. A articulação destes ciclos institucionais com as dinâmicas internas de acumulação dá conta de um processo que tem capacitado o Estado Nacional chinês à intervenção rápida e direta sobre a realidade – conforme a própria resposta estatal à crise desde 2008 tem demonstrado. Vejamos abaixo.
Ganha forma o “socialismo de mercado”
Desde o início da década de 1990, sucessivas mudanças institucionais foram essenciais à: 1) a emersão de uma moderna economia monetária (fortalecimento e capilarização de uma imensa rede de bancos públicos voltados ao crédito de longo prazo) substituindo uma rede de financiamento dependente do orçamento estatal e das empresas; 2) mecanismos de controle macroeconômico (maxidesvalorização cambial em 1994 e instituição de controle sobre os fluxos de capitais); 3) um processo de fusões e aquisições no setor estatal da economia dando margem à formação de 149 conglomerados empresariais localizados nos setores estratégicos da economia e 4) formação, em 2003, da SASAC (State-owned Assets Supervision and Administration Commission of the State Council) responsável pela observância quanto à execução das políticas de Estado por parte dos citados conglomerados estatais (um claro órgão moderno de coordenação do investimento).
Esse interessante processo interno, com gigantescas implicações internacionais, logrou o desenvolvimento de um poderoso Estado Nacional que não somente detém o controle dos instrumentos cruciais do processo de acumulação e formação de policy space à execução de políticas monetárias propícias à socialização do investimento. Em outras “duas pontas”, o Estado – através de seus bancos de desenvolvimento – tanto financia o longo prazo quanto se utiliza de seus conglomerados estatais à execução de grandes empreendimentos internos e externos. Investimentos estes (“na frente”) geradores, nos lembrando A. Hirschman, efeitos de encadeamento que – em primeira instância – beneficiam diretamente seu braço ancilar, o setor privado (2).
Por fim, não estaríamos longe da verdade afirmar que a expansão do setor estatal na economia chinesa pós-crise pode ter gestado uma nova formação econômico-social, o chamado “socialismo de mercado”. Longe de ser uma “economia mista”, dado o poder de encadeamento do setor estatal. Algo muito diferente dos capitalismos de Estado clássicos, dado o peso real do próprio setor estatal na China: a estrutura de propriedade chinesa ainda é muito diferente de outras partes do mundo. Esse processo reflete-se diretamente em um aumento continuo, desde a segunda metade da década de 1990, do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional: de 13,5% do PIB em 1996 a 37,3% em 2015 (3).
Esse “socialismo de mercado” nasce na interseção entre um poder político de novo tipo gestado nos acontecimentos de 1949 e a fusão do grande banco e da grande indústria, ambas estatais. Trata-se de um processo fascinante. Uma construção eivada de limites e contradições explosivas. Algo que deveríamos, o pensamento progressista em geral, olhar com mais atenção, mais profundidade e, principalmente, menos preconceito.
___________________
* Respectivamente Professor Adjunto e Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ.
REFERÊNCIAS
(1) LO, D: China confronts the Great Recession: ‘rebalancing’ neoliberalism, or else. In, ARESTIS, P.; SAWYER, M. Emerging Economies During and After the Great Recession. New York: Palgrave Macmillan, 2016.
(2) Sobre este processo cíclico interno, ler: PAULA, L. F. & JABBOUR, E.: A China e seu catching up: uma análise desenvolvimentista clássica. In, Prêmio ABDE-BID, Edição 2016 (coletânea de trabalhos). ABDE-BID: Rio de Janeiro, 2017.
(3) NAUGHTON, B: Is China Socialist? Journal of Economic Perspectives, (31) 1, 2017: pp. 3-24.
Fonte: Jornal dos Economistas
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