domingo, 3 de setembro de 2017

Eu, nós, o mundo e a China



  
Tudo, tudo mudará. Passaremos a ver o mundo com outros olhos; veremos tudo sob outros ângulos.

A crise será estrondosa, mais sofrida aqui que lá; tragédia para os mais pobres. Mas nossas crenças mudarão. O mundo anda monótono, quero dizer, todo no mesmo tom. Os meios de comunicação nos impingem um único modo de ver o mundo, um mesmo ângulo.

Até um século atrás, em cada região o povo tinha hábitos próprios, diferentes dos de outras; vestiam-se ao seu modo, comiam suas próprias comidas e falavam com sotaque local. Hoje, no mundo inteiro, todos têm a mesma cara, os mesmos desejos, as mesmas crenças, estamos muito homogêneos, quase completamente. Poucos povos conseguem resistir à fortíssima imposição cultural de todos os valores. Entre esses, os chineses se mantêm a relativa distância da sopa comum, da massa homogênea que compartilha os valores difundidos diariamente pela TV. O contraste entre tais valores nos parecerá chocante, desacostumados que estamos com as diferenças.

Uma peculiaridade emblemática consiste no hábito de comer cachorros, costume incômodo para nós. Aliás, costumes são assim, se diferentes dos nossos, nos desagradam, uns mais, outros menos. Esse causa clamor e repúdio especial. Chamará muita atenção até que nos acostumemos com ele, representará uma espécie de acusação, ou denúncia de maldade, dado que diferenciamos, por aqui, os cachorros, criados dentro de casa, dos animais de corte, criados em fazendas. Não havendo justificativa racional para nosso repúdio, apenas a diferença de hábito causará desconforto. A intolerância gerada por nosso descostume com a diversidade tenderá a nos cindir e gerar desavenças. Tenderemos a não aceitar costumes e crenças diferentes dos que têm sido mostrados na TV.

Muitas outras crenças, diversas das nossas, ganharão relevo, muitas delas mais relevantes que essa. Algumas nos surpreenderão. Quase todas as diferenças nos parecerão erros, desacostumados que estamos com a diversidade de valores, serão motivos de desagrado e conflitos. Mas acabaremos percebendo que palavras como “liberdade”, “democracia”, “rebeldia” e inúmeras outras que temos repetido deverão ser reinterpretadas de maneiras enriquecedoras. Veremos tudo sob novos ângulos, será uma grande revolução em nossas vidas, todas as nossas crenças atuais serão revolvidas.

No início, o contraste nos parecerá desagradabilíssimo, queremos continuar a manter e impor nossos hábitos antigos: o certo é como temos feito. Demoraremos a redescobrir que a riqueza está na diversidade, ainda que eventualmente incômoda, e que a homogeneidade é cinzenta e pobre. Mas teremos que reaprender a lidar com tais diferenças. Depois veremos a redescoberta da diversidade como um renascimento.

A alimentação será especialmente ilustrativa desse evento; a comida estadunidense é pobre e ruim; quanto mais ricos ficaram, mais depauperada se tornou sua culinária, baseada em enlatados e frituras, todos venenosos. Embora riquíssimos monetariamente, os estadunidenses são bem pobres culturalmente, tendo contribuído muito menos para a cultura mundial, durante quase um século de domínio, do que poderiam ter feito. O resultado mais gritante desse domínio, aliás, foi a homogeneização de todas as coisas, o empobrecimento, o descolorido cinzento de tudo; seu grande legado cultural foi a infantilização pop.

Em contraste, os chineses, embora pobres financeiramente, conseguiram manter uma cultura muito mais diversificada e rica que a dos buscapés, o que nos alenta e estimula a participar do renascimento cultural iminente. Também será a hora de revermos valores sem sentido, como o consumismo desenfreado, sustentáculo da sociedade produtora de lixo. Grandes mazelas, tão profundamente encravadas em nosso mundo que não conseguimos imaginá-lo sem elas, como o culto ao dinheiro, a obsessão pelo sexo e outras, serão revistas. Momentaneamente, tudo isso estará aberto para transformações, e nós seremos os agentes, os construtores do que virá. Estaremos participando da construção de um novo mundo, e teremos muita liberdade para isso.

Temos vivido entre ratos e pombos, os equivalentes ecológicos de hambúrgueres e batatas fritas. Enfeiamos o nosso mundo tornando-o cinzento e sujo. As transformações obtidas no último século têm, todas elas, senão a assinatura USA, o seu estilo. Teremos muito a ganhar apagando os vestígios dessa cultura da glutoneria, esbanjamento e homogeneização de todas as coisas. 
*Colabora com Diálogos do Sul – Original do blog do autor

Nenhum comentário:

Postar um comentário