Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
O mudo ruge.
Como o vulcão prestes a explodir, sinais de alerta irrompem no noticiário de diferentes pontos do planeta
A violência e o espaçamento típicos das saturações não deixam muita margem a dúvidas.
Placas tectônicas aceleram a rota de colisão; rolos de fumaça e estremecimentos da crosta prenunciam a erupção do magma da história.
Brexit, Trump, Dallas, Nice, Turquia, Luisiana, Berlim...
Os últimos vinte e dois dias foram exemplares: a globalização neoliberal entrou no modo esgotamento.
Cada vez mais, os ‘colaterais’ da supremacia dos mercados se exprimem em rupturas, vítimas e conflitos que se acumulam no congestionado espaço das manchetes fumegantes.
A larga contabilidade da morte anestesia, mas a aleatoriedade das geografias e dos atores encerra uma regularidade reveladora.
Vive-se um tempo em que a descoordenação antes de ser o imprevisto é a norma deliberada.
Escavada e burilada, ela compõe o altar da religião sem meca nem ofício ou santo, exceto a eternidade do fluxo contínuo, ubíquo, indiviso: a circulação do capital e da mercadoria.
São elas as únicas liberdades de fato soberanas impulsionadas pelo neoliberalismo globalizado, desde os anos 70 do século passado.
Perímetros de soberania nacional foram progressivamente calafetados pelo agigantamento da gigantesca massa de forças assim potencializadas.
Espaços de mediação nos quais esse ectoplasma pudesse ser transmudado em inclusão, igualdade, estabilidade e civilização foram aplastados.
A atrofia descredenciou Estados e governos.
Em seguida desossou partidos e projetos históricos.
Desmoralizou a democracia representativa, desdenhando da urna e das escolhas e agendas do voto majoritário.
Por fim, desqualificou a própria política como fórum de mediação dos conflitos da sociedade e do desenvolvimento.
Um cemitério de administrações zumbis e de Estados ornamentais (para a sociedade) emergiu vigiado pela engrenagem dos fundos sem rosto, dos capitais sem pátria, do dinheiro chantagista.
A pedra angular de toda a vacuidade, para recorrer a um oxímoro destes tempos paradoxais, é a liberação da conta de capitais.
A partir dela, a lógica neoliberal promove o sequestro ou a rendição obsequiosa dos instrumentos endógenos de comando da sociedade sobre o seu desenvolvimento.
A opressão todavia surfa em um poder de sedução gigantesco.
Quem há de ser contra a liberdade de trocas, de pessoas e de recursos estendida a todo o planeta?
Não se trata de retórica.
O crescimento do comércio global nas últimas décadas suplantou de longe a taxa média do PIB mundial.
Transformou-se na grande e irresistível cenoura de adesão ao mainstream do laissez faire, laissez passer repaginado e mundializado.
Enquanto o PIB mundial cresceu em média 3,1%, entre 1985 e 2011, a taxa anual de crescimento do comércio internacional foi de 5,6%. (OMC, 2013).
Entre os países do G-20, apenas Indonésia e África do Sul registraram diminuição do índice de internacionalização comercial nesse período.
Em tese, o dinamismo das exportações eleva o nível de internacionalização das economias nacionais.
Oxigena cadeias de produção.
Revoluciona padrões de tecnologia, consumo e produtividade.
Faz mais.
Em 2009, pela primeira vez, o comércio mundial de bens intermediários (insumos industriais e serviços) atingiu valor superior ao das exportações de bens finais (51% e 49%, respectivamente).
Mas aqui a panaceia teoricamente boa para todos já revela suas trincas no movimento real da história.
A participação das empresas multinacionais no comércio internacional disparou nas últimas décadas.
Segundo a Unctad, exportações globais totalizaram aproximadamente US$ 19 trilhões em 2010.
Megacorporações globais responderam por 80% desse total, US$ 15 trilhões.
Só o comércio intrafirmas foi responsável por aproximadamente 33% das transações.
A bordo dessa esquadra de bandeiras poderosas, o volume do comércio internacional de bens e serviços cresceu, em média, 7,3% ao ano, entre 2002/2007.
Muito acima do desempenho do PIB, com aumento médio de 4,2 no período.
A dominância das manufaturas e serviços na composição dos fluxos, favorecida pela derrubada das tarifas e de legislações protecionistas, fez o valor das exportações mundiais desses itens crescer 264% entre 1990 2008.
De US$ 4,3 trilhões para U$15,3 trilhões.
Os circuitos de produção e consumo extravasaram as fronteiras tradicionais na nova planta manufatureira globalizada, fortemente concentrada nas mãos de grandes corporações.
O poder de interferência e indução dos Estados e das urnas nas políticas nacionais de desenvolvimento sofreria desde então apreciável processo corrosivo.
Mais complicado que isso.
Embora notável, a fermentação do comércio mundial desde a década de 1980 ficou ainda muito aquém do poder ordenador concentrado nas mãos do verdadeiro motor sistêmico da globalização neoliberal.
Os fluxos financeiros internacionais.
Eles equivalem hoje a cerca de 40 vezes o valor das trocas comerciais.
Não há poder econômico ou político que se ombreie a isso até o momento.
Trata-se de um poder imperial ubíquo.
É ele que pavimenta as rotas, alarga portas, arromba trancas, subordina nações, adestra governos, submete agendas, domestica partidos, abastarda programas, desmoraliza lideranças, derruba recalcitrantes, dita ajustes, fiscaliza austeridades, calibra arrochos.
Instaura, enfim, a endogamia funcional entre o interesse financeiro e o domínio comercial dos mares e dos continentes.
Em quarenta anos de supremacia da desregulação econômica não surgiram instituições dotadas de poder e abrangência capaz de contraditar a lógica concentradora e excludente para coloca-la a serviço da civilização e do bem-estar social dos povos e nações.
O efeito dominó, ao contrário, derrubou, mastigou e cuspiu tudo o que parecia sólido ou prometia sê-lo.
No chão mole viceja o sentimento de frustração que se confirma no rastro de Estados rendidos e de sobras humanas dessa lapidação épica.
Desfilam aí os desempregados, os desterrados, os deslocados, os desesperados, os descrentes, os desvalidos, os despossuídos, os devorados, os desacorçoados.
‘Loosers’ de todas as origens.
Expelidos pela liquefação de nações e valores das revoluções burguesas do século XIX, e dos ideais socialistas, libertários e igualitários do século XX, compõem o gigantesco orfanato da desesperança e, cada vez mais, como se vê, do desespero.
A Europa tem hoje 8 milhões de imigrantes sem papeis; 120 milhões de pobres e 27 milhões de desempregados.
Nos EUA, antes ainda da crise de 2008, 90% dos lares viram sua renda deslizar em plano inclinado. Apenas 1% das famílias ascendeu ao paraíso prometido pela retórica neoliberal do estado mínimo com benefício máximo, atingindo faixa de ingressos superior a meio milhão de dólares/ano.
Mais de 20% dos menores norte-americanos vivem atualmente em condições de pobreza.
Na sociedade afluente a única coisa que de fato flui é a desigualdade, que em cem anos nunca foi tão aguda quanto agora.
Pela primeira vez, cristaliza-se no mundo rico o mesmo sentimento das periferias nas nações pobres: uma geração de jovens tem a correta percepção de que dificilmente repetirá a faixa de renda dos pais, se é que conseguirá viver com a sua própria um dia.
O conjunto fortalece o diagnóstico obscurantista que projeta a causa da pobreza nacional na presença ‘invasiva’ da pobreza de idioma estrangeiro.
Não precisa muito para dar a ignição a movimentos extremista xenófobos e populistas, que por sua vez liberam a demência terrorista.
Não necessariamente nessa ordem, mas com essa octanagem explosiva.
O noticiário conservador mimetiza a desordem ajudando a construí-la.
Ao sonegar os antecedentes da tormenta, estica-se o elástico da gigantesca armadilha histórica em que vivemos.
Uma etapa irreversível do desenvolvimento das forças produtivas entrou em colapso sem dispor de uma arregimentação política capaz de promovera sua mutação a serviço da civilização humana.
A nova Bastilha global de interdições e chantagens aguarda o seu 14 de julho.
Na sala de espera a história encena o enredo do caos.
Esse que congestiona as manchetes e escaladas noticiosas diuturnamente.
O caos é a desautorização virulenta da essência da democracia.
A queda da Bastilha em 14 de julho de 1789 reinventou o futuro da sociedade humana.
E o fez, no dizer instigante do filósofo Jacques Rancière, ao suprimir as distinções entre a filiação divina, ou fiduciária, do rei e da realeza, de um lado, e a vala comum dos mortais, de outro.
Nasceu dessa ruptura um conceito ainda hoje rechaçado pela riqueza.
A ideia de que a igualdade não pode ser um alvo remoto, mas deve ser um ponto de partida.
A construção de um futuro comum requer a igualdade dos atores desde o presente.
Onde: no âmbito de uma democracia efetiva, em que o poder emane do povo, para o povo, pelo povo.
A guilhotina, de um lado --mas também os Direitos do Homem e do Cidadão, proclamados cerca de um mês depois da derrubada das Bastilha, em 26 de agosto de 1789-- cuidaria de lavrar essa equivalência em cabeças e nas cabeças.
É tudo o que a globalização nega esfericamente à sociedade e à política hoje.
De forma violenta ela suprime a igualdade no presente e sonega aos povos os meios para sonhar com ela no futuro .
O fim da história como o fim da utopia.
Mas a equação da eternidade não fecha.
A zona do euro enfrenta seu oitavo ano entre a deflação e a recessão.
A Itália tem desemprego recorde.
Alemanha e França assistem a uma espiral de xenofobia.
Grécia tem 59% da juventude fora do mercado.
Portugal encara uns 500 mil desempregados.
A Espanha devastou sua rede de proteção social em oito anos de concessões à austeridade e ainda deve mais um corte de dez bilhões de euros, avisa a troika...
Assim por diante.
Foi preciso que um economista moderado, Thomas Piketty, coligisse uma enciclopédia estatística do avanço rentista sobre a riqueza global para que o tema da desigualdade merecesse algum espaço –fugaz, diga-se— no debate econômico e midiático do nosso tempo.
A ocultação da criatura pretende esconder o colapso do criador.
A essência da desordem neoliberal que se evidencia em contradições nos seus próprios termos.
Crise de superprodução de capitais especulativos, associada a juros negativos (o Brasil é uma excrescência da regra), sobras humanas com anemia da demanda e excesso de capacidade ociosa.
É sobre essa base de placas tectônicas em movimento, a emitir sinais de uma explosão próxima, que o Brasil se depara com a delicada transição de um ciclo econômico.
A sociedade precisa repactuar as bases de seu desenvolvimento.
Mas um golpe de Estado em curso não apenas ignora os sinais de fumaça ao redor: ele é um item constitutivo das manifestações mórbidas em espiral ascendente.
Não se pode pedir à graxa que detenha a engrenagem.
Cunha, Temer, Serra, assemelhados e homólogos na mídia são lubrificações constitutivas do colapso global no plano local.
Assim como a eutanásia do rentista, a derrota desse círculo de besuntadores do mercado requer circunstâncias indutoras bem mais contundentes do que simplesmente denunciar a sua natureza.
A derrubada da Bastilha hoje consiste em dotar a democracia de um poder regulador dos capitais e do investimento para que possa exercer seu papel: ser uma força antagônica às tendências regressivas, abraçadas , entre outros, pela agenda de arrocho do golpe brasileiro.
A consciência desse confronto é um dado fundamental para renovar a ação política em nosso tempo.
Quando a economia se avoca um templo sagrado, dotado de leis próprias, revestida de esférica coerência endógena, avessa às ruas e às urnas, o que sobra à democracia se não romper?
Os que, como Serra, incitavam o governo Lula a jogar o país ao mar na crise de 2008 agora retrucam que o custo de não tê-lo afogado na hora certa acarretou ‘custos insustentáveis’.
Que precisam ser extirpados do orçamento.
Prescreve-se um caldo de afogamento no capítulo dos direitos sociais da Carta Cidadã.
Na prática, o teto de gastos preconizado fará regredir a fatia dos pobres na receita futura.
A noção da igualdade como ponto de partida modelador do desenvolvimento está com a cabeça na guilhotina da restauração da Bastilha brasileira.
As escolhas intrínsecas a uma repactuação do desenvolvimento no século XXI não são singelas.
Nada que se harmonize do dia para a noite.
É crucial, assim, pactuar linhas de passagem feitas de metas, ganhos, perdas, salvaguardas e prazos.
Mas há um requisito para isso ter algum peso num tempo que estrebucha e ameaça levar as nações junto: tirar a economia do altar sagrado da ortodoxia e expô-la a uma repactuação democrática que mobilize toda a cidadania.
O mudo ruge.
Como o vulcão prestes a explodir, sinais de alerta irrompem no noticiário de diferentes pontos do planeta
A violência e o espaçamento típicos das saturações não deixam muita margem a dúvidas.
Placas tectônicas aceleram a rota de colisão; rolos de fumaça e estremecimentos da crosta prenunciam a erupção do magma da história.
Brexit, Trump, Dallas, Nice, Turquia, Luisiana, Berlim...
Os últimos vinte e dois dias foram exemplares: a globalização neoliberal entrou no modo esgotamento.
Cada vez mais, os ‘colaterais’ da supremacia dos mercados se exprimem em rupturas, vítimas e conflitos que se acumulam no congestionado espaço das manchetes fumegantes.
A larga contabilidade da morte anestesia, mas a aleatoriedade das geografias e dos atores encerra uma regularidade reveladora.
Vive-se um tempo em que a descoordenação antes de ser o imprevisto é a norma deliberada.
Escavada e burilada, ela compõe o altar da religião sem meca nem ofício ou santo, exceto a eternidade do fluxo contínuo, ubíquo, indiviso: a circulação do capital e da mercadoria.
São elas as únicas liberdades de fato soberanas impulsionadas pelo neoliberalismo globalizado, desde os anos 70 do século passado.
Perímetros de soberania nacional foram progressivamente calafetados pelo agigantamento da gigantesca massa de forças assim potencializadas.
Espaços de mediação nos quais esse ectoplasma pudesse ser transmudado em inclusão, igualdade, estabilidade e civilização foram aplastados.
A atrofia descredenciou Estados e governos.
Em seguida desossou partidos e projetos históricos.
Desmoralizou a democracia representativa, desdenhando da urna e das escolhas e agendas do voto majoritário.
Por fim, desqualificou a própria política como fórum de mediação dos conflitos da sociedade e do desenvolvimento.
Um cemitério de administrações zumbis e de Estados ornamentais (para a sociedade) emergiu vigiado pela engrenagem dos fundos sem rosto, dos capitais sem pátria, do dinheiro chantagista.
A pedra angular de toda a vacuidade, para recorrer a um oxímoro destes tempos paradoxais, é a liberação da conta de capitais.
A partir dela, a lógica neoliberal promove o sequestro ou a rendição obsequiosa dos instrumentos endógenos de comando da sociedade sobre o seu desenvolvimento.
A opressão todavia surfa em um poder de sedução gigantesco.
Quem há de ser contra a liberdade de trocas, de pessoas e de recursos estendida a todo o planeta?
Não se trata de retórica.
O crescimento do comércio global nas últimas décadas suplantou de longe a taxa média do PIB mundial.
Transformou-se na grande e irresistível cenoura de adesão ao mainstream do laissez faire, laissez passer repaginado e mundializado.
Enquanto o PIB mundial cresceu em média 3,1%, entre 1985 e 2011, a taxa anual de crescimento do comércio internacional foi de 5,6%. (OMC, 2013).
Entre os países do G-20, apenas Indonésia e África do Sul registraram diminuição do índice de internacionalização comercial nesse período.
Em tese, o dinamismo das exportações eleva o nível de internacionalização das economias nacionais.
Oxigena cadeias de produção.
Revoluciona padrões de tecnologia, consumo e produtividade.
Faz mais.
Em 2009, pela primeira vez, o comércio mundial de bens intermediários (insumos industriais e serviços) atingiu valor superior ao das exportações de bens finais (51% e 49%, respectivamente).
Mas aqui a panaceia teoricamente boa para todos já revela suas trincas no movimento real da história.
A participação das empresas multinacionais no comércio internacional disparou nas últimas décadas.
Segundo a Unctad, exportações globais totalizaram aproximadamente US$ 19 trilhões em 2010.
Megacorporações globais responderam por 80% desse total, US$ 15 trilhões.
Só o comércio intrafirmas foi responsável por aproximadamente 33% das transações.
A bordo dessa esquadra de bandeiras poderosas, o volume do comércio internacional de bens e serviços cresceu, em média, 7,3% ao ano, entre 2002/2007.
Muito acima do desempenho do PIB, com aumento médio de 4,2 no período.
A dominância das manufaturas e serviços na composição dos fluxos, favorecida pela derrubada das tarifas e de legislações protecionistas, fez o valor das exportações mundiais desses itens crescer 264% entre 1990 2008.
De US$ 4,3 trilhões para U$15,3 trilhões.
Os circuitos de produção e consumo extravasaram as fronteiras tradicionais na nova planta manufatureira globalizada, fortemente concentrada nas mãos de grandes corporações.
O poder de interferência e indução dos Estados e das urnas nas políticas nacionais de desenvolvimento sofreria desde então apreciável processo corrosivo.
Mais complicado que isso.
Embora notável, a fermentação do comércio mundial desde a década de 1980 ficou ainda muito aquém do poder ordenador concentrado nas mãos do verdadeiro motor sistêmico da globalização neoliberal.
Os fluxos financeiros internacionais.
Eles equivalem hoje a cerca de 40 vezes o valor das trocas comerciais.
Não há poder econômico ou político que se ombreie a isso até o momento.
Trata-se de um poder imperial ubíquo.
É ele que pavimenta as rotas, alarga portas, arromba trancas, subordina nações, adestra governos, submete agendas, domestica partidos, abastarda programas, desmoraliza lideranças, derruba recalcitrantes, dita ajustes, fiscaliza austeridades, calibra arrochos.
Instaura, enfim, a endogamia funcional entre o interesse financeiro e o domínio comercial dos mares e dos continentes.
Em quarenta anos de supremacia da desregulação econômica não surgiram instituições dotadas de poder e abrangência capaz de contraditar a lógica concentradora e excludente para coloca-la a serviço da civilização e do bem-estar social dos povos e nações.
O efeito dominó, ao contrário, derrubou, mastigou e cuspiu tudo o que parecia sólido ou prometia sê-lo.
No chão mole viceja o sentimento de frustração que se confirma no rastro de Estados rendidos e de sobras humanas dessa lapidação épica.
Desfilam aí os desempregados, os desterrados, os deslocados, os desesperados, os descrentes, os desvalidos, os despossuídos, os devorados, os desacorçoados.
‘Loosers’ de todas as origens.
Expelidos pela liquefação de nações e valores das revoluções burguesas do século XIX, e dos ideais socialistas, libertários e igualitários do século XX, compõem o gigantesco orfanato da desesperança e, cada vez mais, como se vê, do desespero.
A Europa tem hoje 8 milhões de imigrantes sem papeis; 120 milhões de pobres e 27 milhões de desempregados.
Nos EUA, antes ainda da crise de 2008, 90% dos lares viram sua renda deslizar em plano inclinado. Apenas 1% das famílias ascendeu ao paraíso prometido pela retórica neoliberal do estado mínimo com benefício máximo, atingindo faixa de ingressos superior a meio milhão de dólares/ano.
Mais de 20% dos menores norte-americanos vivem atualmente em condições de pobreza.
Na sociedade afluente a única coisa que de fato flui é a desigualdade, que em cem anos nunca foi tão aguda quanto agora.
Pela primeira vez, cristaliza-se no mundo rico o mesmo sentimento das periferias nas nações pobres: uma geração de jovens tem a correta percepção de que dificilmente repetirá a faixa de renda dos pais, se é que conseguirá viver com a sua própria um dia.
O conjunto fortalece o diagnóstico obscurantista que projeta a causa da pobreza nacional na presença ‘invasiva’ da pobreza de idioma estrangeiro.
Não precisa muito para dar a ignição a movimentos extremista xenófobos e populistas, que por sua vez liberam a demência terrorista.
Não necessariamente nessa ordem, mas com essa octanagem explosiva.
O noticiário conservador mimetiza a desordem ajudando a construí-la.
Ao sonegar os antecedentes da tormenta, estica-se o elástico da gigantesca armadilha histórica em que vivemos.
Uma etapa irreversível do desenvolvimento das forças produtivas entrou em colapso sem dispor de uma arregimentação política capaz de promovera sua mutação a serviço da civilização humana.
A nova Bastilha global de interdições e chantagens aguarda o seu 14 de julho.
Na sala de espera a história encena o enredo do caos.
Esse que congestiona as manchetes e escaladas noticiosas diuturnamente.
O caos é a desautorização virulenta da essência da democracia.
A queda da Bastilha em 14 de julho de 1789 reinventou o futuro da sociedade humana.
E o fez, no dizer instigante do filósofo Jacques Rancière, ao suprimir as distinções entre a filiação divina, ou fiduciária, do rei e da realeza, de um lado, e a vala comum dos mortais, de outro.
Nasceu dessa ruptura um conceito ainda hoje rechaçado pela riqueza.
A ideia de que a igualdade não pode ser um alvo remoto, mas deve ser um ponto de partida.
A construção de um futuro comum requer a igualdade dos atores desde o presente.
Onde: no âmbito de uma democracia efetiva, em que o poder emane do povo, para o povo, pelo povo.
A guilhotina, de um lado --mas também os Direitos do Homem e do Cidadão, proclamados cerca de um mês depois da derrubada das Bastilha, em 26 de agosto de 1789-- cuidaria de lavrar essa equivalência em cabeças e nas cabeças.
É tudo o que a globalização nega esfericamente à sociedade e à política hoje.
De forma violenta ela suprime a igualdade no presente e sonega aos povos os meios para sonhar com ela no futuro .
O fim da história como o fim da utopia.
Mas a equação da eternidade não fecha.
A zona do euro enfrenta seu oitavo ano entre a deflação e a recessão.
A Itália tem desemprego recorde.
Alemanha e França assistem a uma espiral de xenofobia.
Grécia tem 59% da juventude fora do mercado.
Portugal encara uns 500 mil desempregados.
A Espanha devastou sua rede de proteção social em oito anos de concessões à austeridade e ainda deve mais um corte de dez bilhões de euros, avisa a troika...
Assim por diante.
Foi preciso que um economista moderado, Thomas Piketty, coligisse uma enciclopédia estatística do avanço rentista sobre a riqueza global para que o tema da desigualdade merecesse algum espaço –fugaz, diga-se— no debate econômico e midiático do nosso tempo.
A ocultação da criatura pretende esconder o colapso do criador.
A essência da desordem neoliberal que se evidencia em contradições nos seus próprios termos.
Crise de superprodução de capitais especulativos, associada a juros negativos (o Brasil é uma excrescência da regra), sobras humanas com anemia da demanda e excesso de capacidade ociosa.
É sobre essa base de placas tectônicas em movimento, a emitir sinais de uma explosão próxima, que o Brasil se depara com a delicada transição de um ciclo econômico.
A sociedade precisa repactuar as bases de seu desenvolvimento.
Mas um golpe de Estado em curso não apenas ignora os sinais de fumaça ao redor: ele é um item constitutivo das manifestações mórbidas em espiral ascendente.
Não se pode pedir à graxa que detenha a engrenagem.
Cunha, Temer, Serra, assemelhados e homólogos na mídia são lubrificações constitutivas do colapso global no plano local.
Assim como a eutanásia do rentista, a derrota desse círculo de besuntadores do mercado requer circunstâncias indutoras bem mais contundentes do que simplesmente denunciar a sua natureza.
A derrubada da Bastilha hoje consiste em dotar a democracia de um poder regulador dos capitais e do investimento para que possa exercer seu papel: ser uma força antagônica às tendências regressivas, abraçadas , entre outros, pela agenda de arrocho do golpe brasileiro.
A consciência desse confronto é um dado fundamental para renovar a ação política em nosso tempo.
Quando a economia se avoca um templo sagrado, dotado de leis próprias, revestida de esférica coerência endógena, avessa às ruas e às urnas, o que sobra à democracia se não romper?
Os que, como Serra, incitavam o governo Lula a jogar o país ao mar na crise de 2008 agora retrucam que o custo de não tê-lo afogado na hora certa acarretou ‘custos insustentáveis’.
Que precisam ser extirpados do orçamento.
Prescreve-se um caldo de afogamento no capítulo dos direitos sociais da Carta Cidadã.
Na prática, o teto de gastos preconizado fará regredir a fatia dos pobres na receita futura.
A noção da igualdade como ponto de partida modelador do desenvolvimento está com a cabeça na guilhotina da restauração da Bastilha brasileira.
As escolhas intrínsecas a uma repactuação do desenvolvimento no século XXI não são singelas.
Nada que se harmonize do dia para a noite.
É crucial, assim, pactuar linhas de passagem feitas de metas, ganhos, perdas, salvaguardas e prazos.
Mas há um requisito para isso ter algum peso num tempo que estrebucha e ameaça levar as nações junto: tirar a economia do altar sagrado da ortodoxia e expô-la a uma repactuação democrática que mobilize toda a cidadania.
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