Quem assistiu ao filme vencedor do Oscar, Doze anos de Escravidão, o primeiro conquistado por um diretor negro, pode considerar que a redução de pessoas à condição de mercadoria é algo terrível, mas superado. Trata-se de um triste engano. O tráfico de pessoas envolve nos dias de hoje, segundo a OIT, o aterrador contingente de mais de vinte milhões de vítimas em todo o mundo.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) definiu a luta contra o tráfico humano como o tema da Campanha da Fraternidade de 2014. Na esteira desta decisão, o papa Francisco pediu que os brasileiros se mobilizem para combater este terrível comércio. Em suas palavras: “Não é possível permanecer indiferentes sabendo que existem seres humanos comprados e vendidos como mercadorias”.
Foi Karl Marx quem primeiro afirmou que o capitalismo se caracterizava por ter criado o reino da mercadoria, no qual o valor intrínseco das coisas, o seu valor de uso, passava a ser opaco, operando na realidade somente um valor de troca. Falando da burguesia, Marx afirmou no Manifesto do Partido Comunista: “Ela dissolveu a dignidade pessoal em valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades atestadas em documento e valorosamente conquistadas colocou uma única inescrupulosa liberdade de comércio”.
Pois bem, o tráfico de pessoas talvez seja a expressão mais cruel deste processo no mundo contemporâneo: homens, mulheres e crianças vendidos para a prostituição, para o tráfico de órgãos, para o trabalho escravo.
A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que o tráfico humano renda algo como US$ 32 bilhões anuais, situando-o entre os crimes organizados mais lucrativos, ao lado do tráfico de drogas e de armas.
Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) referentes às modalidades do trabalho escravo também contribuem para a enxergarmos as dimensões desse crime aviltante. No início de junho de 2012, a OIT estimou que as vítimas do trabalho forçado e exploração sexual chegam a 20,9 milhões de pessoas em todo o mundo. Neste número assustador não estão incluídas, por exemplo, as vítimas do tráfico de órgãos e da adoção ilegal de crianças, por exemplo.
Esta mesma pesquisa constatou que 4,5 milhões (22%) das vítimas são exploradas em atividades sexuais forçadas; 14,2 milhões (68%) em trabalhos forçados em diversas atividades econômicas; e 2,2 milhões (10%) pelo próprio Estado, sobretudo os militarizados.
A pesquisa demonstrou que as mulheres e jovens representam 11,4 milhões (55%) das vítimas, enquanto 9,5 milhões (45%) são homens e jovens. Destas vítimas 5,5 milhões (26%) têm idade até 17 anos, o que amplia a barbárie deste tipo de atividade que mercadeja com a vida humana.
O Brasil é signatário do Protocolo de Palermo, um acordo internacional com vistas ao combate ao tráfico de pessoas. Desde o momento em que assinou este acordo, no ano de 2004, o país tem envidado esforços no sentido de erradicar este fenômeno terrível. Após a assinatura do Protocolo de Palermo, o governo do ex-presidente Lula lançou, em 2006, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e, em 2008, o 1º Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (1º PNETP). Agora, está em vigor o 2º PNETP, elaborado para o período de 2013 a 2016, que prevê uma série de ações, tocadas por vários ministérios, com o objetivo de reduzir as situações de vulnerabilidade ao tráfico humano; capacitar profissionais, instituições e organizações envolvidas no seu enfrentamento; produzir e disseminar informações sobre o tráfico; propor ações para o enfrentamento; sensibilizar e mobilizar a sociedade para prevenir a ocorrência do crime.
As linhas traçadas pelo 2º Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas são importantes pontos de partida, mas não são suficientes. A necessidade de esclarecimento para as potenciais vítimas e de denúncia dos criminosos impõe uma mobilização social que vá além dos governos e envolva o conjunto daqueles que lutam por um mundo justo e solidário.
A Campanha da Fraternidade de 2014 impulsionada pela CNBB e o pronunciamento do papa Francisco são iniciativas muito importantes porque ajudam a chamar a atenção para a emergência de enfrentar o grave problema, com a mobilização de amplas forças sociais.
Todos os que têm compromisso com os valores básicos da solidariedade, da defesa da dignidade humana, precisam entrar na luta por dar fim a este assustador fenômeno.
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