quarta-feira, 25 de março de 2015

A mídia é o golpe


Por Ângela Carrato[*]


Apesar da crença reinante nas sociedades ocidentais sobre a importância da mídia para a democracia, a realidade das últimas décadas na Europa, Estados Unidos e no Brasil aponta para situação oposta. À medida que a mídia substituiu o precário compromisso de informar – que historicamente a caracterizou – pela defesa intransigente dos interesses das elites e dos seus próprios, ela inverte este papel e se transforma em uma das principais, senão a principal, ameaça à democracia. Em especial das democracias mais inclusivas.

Cedo, nos chamados países do capitalismo central – em especial os Estados Unidos e a Inglaterra – estas ameaças foram detectadas e tratou-se de se estabelecer um conjunto de regras para disciplinar e impedir que a mídia, sobretudo a audiovisual – se transformasse em um poder acima dos demais, evitando-se assim o rompimento da própria regra democrática.

Foi assim que surgiu, ainda nos anos 1930, as primeiras leis que regularam a criação e funcionamento de emissoras de rádio na Inglaterra. É importante salientar que o Estado inglês rapidamente percebeu a importância e a dimensão estratégica e de segurança nacional envolvendo estas emissoras. Motivo pelo qual elas não foram deixadas ao sabor da iniciativa privada. Até o final dos anos 1970, a comunicação audiovisual na Inglaterra e Reino Unido era pública. Vale dizer: pautava-se pelo interesse da cidadania e não pelo dos anunciantes ou interesses do governo.

Nos Estados Unidos houve uma pesada (e convenientemente esquecida) disputa envolvendo os primórdios das emissoras de rádio. Parcela significativa da sociedade defendia que elas tivessem o caráter educativo e, outra parcela, as via como comerciais. Prevaleceram os defensores da segunda posição. O que não impediu que os Estados Unidos consolidassem uma rígida legislação envolvendo a regulação da mídia. Lá, por exemplo, é proibida a chamada “propriedade cruzada” que nada mais é do que a proibição que uma mesma empresa de comunicação possua, na mesma cidade, mais de um veículo. Dito de outra forma, em Nova York, por exemplo, o jornal The New York Times não pode ter emissora de rádio, de televisão ou revista.

Entre famílias

O desenvolvimento da mídia na Europa e nos Estados Unidos foi acompanhado, de perto, pela legislação do setor, sempre vigilante para impedir que o capital e os avanços tecnológicos se sobrepusessem aos interesses da maioria, entendida como a essência e a razão de ser da própria democracia.

Situação diferente enfrentou os países da chamada periferia do capitalismo. Aqui como na maioria esmagadora da América Latina, da África e da Ásia, o desenvolvimento da mídia pautou-se pelo interesse do capital e dos seus proprietários, sem qualquer tipo de legislação que a obrigasse a levar em conta a vontade da maioria. É importante lembrar que boa parte desta mídia surgiu ou cresceu em períodos de governos ditatoriais, aos quais não só apoiou e acobertou desmandos, como deles recebeu apoio e benesses.

Até hoje, em que pese o retorno à democracia em 1985, estas distorções não foram corrigidas, com a informação na sociedade brasileira sendo controlada por uns poucos grupos de mídia, nas mãos de meia dúzia de famílias. Que o digam os Marinho, Civita, Frias, Saad, Macedo, Santos e Sirotsky.

O neoliberalismo que passou a dominar alguns dos principais governos europeus a partir do início da década de 1980, com sua determinação de derrubar todas as conquistas do welfare state do pós-Segunda Guerra Mundial, não foi suficiente para liquidar a preocupação envolvendo o compromisso democrático que deve reger a mídia e a necessidade dela ser regulada. Razão pela qual partiu, recentemente, de um consórcio internacional de jornalistas investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) sediado em Londres, em parceria com o jornal francês Le Monde, a iniciativa de investigar uma lista de 106 mil clientes do banco HSBC, com contas na filial suíça desta instituição.

Patrões na lista

A lista era fruto de um vazamento do WikiLeaks, em 2008, e sobre ela havia a suspeição de que muitos destes clientes, espalhados por 203 países, mantinham ali contas cujo objetivo era fugir do pagamento de impostos e também lavar dinheiro fruto de atividades ilegais, como venda de armas a terroristas e tráfico de drogas.

No Brasil, não é crime manter contas bancárias no exterior, desde que sejam declaradas à Receita Federal e ao Banco Central, quando o saldo for superior a US$ 100 mil. No entanto, grande parte da elite brasileira tem o péssimo hábito de sonegar impostos, ao mesmo tempo em que se autointitula paladina da moral e dos bons costumes, tachando seus críticos e adversários de “corruptos”.

Durante vários meses, os jornalistas do ICIJ trabalharam na apuração dos nomes que integram esta lista e, há mais de um mês, eles são conhecidos na Europa. Na vizinha Argentina, por exemplo, há duas semanas foi confirmado o que alguns sabiam e muitos desconfiavam: um dos maiores depositantes destas contas é o grupo de mídia, Clarín, coincidentemente, o maior opositor ao governo da presidente Cristina Kirchner e de seus programas sociais.

Aqui, se não fosse a pressão das redes sociais, este assunto não teria sido, sequer, divulgado e a lista suíça dos brasileiros ficaria limitada apenas aos denunciados nas delações premiadas da Operação Lava Jato. Isto porque, num primeiro momento, a mídia brasileira tentou convencer os respeitáveis leitores, ouvintes e telespectadores que apenas a turma da Lava Jato estava lá. Nem o antes conceituado comentarista político Fernando Rodrigues, ex-Folha de S.Paulo e agora do UOL, quis enfrentar o problema. Mesmo tendo, há mais de dois meses, acesso aos 8.667 nomes de brasileiros que a integram e que possuem depositados de US$ 7 bilhões, preferiu fingir de morto, sobretudo ao constatar que seus patrões figuravam na lista. Rodrigues é dos poucos jornalistas brasileiros a fazer parte do ICIJ.

Divulgação manipulada

Em 14/03, dia seguinte às manifestações em que integrantes de movimentos populares em 24 estados da federação e no Distrito Federal saíram às ruas em apoio ao governo Dilma Rousseff, em defesa da democracia, do pré-sal, da Petrobras, e da regulação democrática da mídia, uma ínfima parte desta lista veio a público. Num acerto entre pares, coube ao jornal O Globo e à Folha de S.Paulo esta divulgação, mesmo assim feita de forma parcial e manipulada.

Os 22 “barões da mídia” e sete jornalistas que tiveram seus nomes divulgados o foram de maneira indiscriminada, colocados, lado a lado, com pessoas que visivelmente não têm nada a ver com o assunto (caso da família Dines), sem falar na tentativa da Grupo Globo de jogar nas costas da já falecida viúva de Roberto Marinho, dona Lily, a responsabilidade por possíveis irregularidades. No entanto, por mais cuidados com que tenham cercado a divulgação desta lista, não deixou de chamar atenção o fato das contas dos donos do Grupo Folha terem sido abertas logo depois do confisco de poupanças e depósitos bancários no governo Collor.

Se o dinheiro de todos os brasileiros estava temporariamente confiscado, qual a origem dos recursos com os quais os Frias abriram estas contas? Em outras palavras, o buraco é bem mais embaixo. A primeira suspeita é de que os Frias, além de sonegarem, receberam informação privilegiada de setores do próprio governo Collor, confirmando-se a relação promíscua entre mídia e governo no Brasil até 2002.

A chegada de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores ao poder abalou este tipo de relação. Além de Lula ter vencido as eleições presidenciais contra a mídia oligopolística, as políticas sociais que passou a implementar mexeram com aqueles que não se conformam com a redução das desigualdades sociais e não querem abrir mão de seus privilégios. Setores dos quais fazem parte os próprios “barões” da mídia.

Oposição político-midiática

Num primeiro momento, estes “barões” passaram a dar voz prioritariamente aos setores de oposição e, junto com eles, montaram espetáculos político-midiáticos cujo objetivo era desgastar e, se possível, apear o PT do poder. Alguém, em sã consciência, tem dúvida de que este era o objetivo por trás das denúncias do chamado mensalão petista, em 2005? Objetivo retomado em 2012 e 2013, quando da “cobertura” do julgamento pelo STF dos envolvidos no escândalo.

A sociedade brasileira quer o fim da corrupção. Mas é inaceitável, como tem feito a mídia, desde 2003, identificar a corrupção ao PT e a uns poucos partidos políticos, sempre da base aliada, ignorando a corrupção existente em outros níveis de governo, em outros poderes e em outros partidos. O exemplo mais emblemático é o silêncio desta mídia em relação à compra de votos para a reeleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 1998, e as privatizações a preço de banana de estatais brasileiras realizadas naquele governo, cujo exemplo mais eloquente é o da Companhia Vale do Rio Doce.

A mídia oligopolista desconheceu naquela época – e continua desconhecendo – a existência de um outro mensalão, a cargo dos tucanos em Minas Gerais, quando da tentativa de reeleição do governador Eduardo Azeredo. Apesar de farta documentação e de ter em comum com o mensalão petista o mesmo operador, Marcos Valério, a mídia faz questão de não tratar do assunto. E é esta mesma mídia que gosta de apontar o dedo em riste e chamar adversários de corruptos que não noticia que o mensalão tucano está prestes a completar 10 anos e legalmente caducar, sem que ninguém tenha sido julgado ou condenado.

Apesar da histeria contra Lula e o PT, Lula se reelegeu em 2006 e fez de Dilma, sua sucessora, em 2010. As pesadas baterias oposicionistas da mídia brasileira não foram suficientes para derrotar o projeto desenvolvimentista e de política externa independente colocado em prática. Projeto que possibilitou, inclusive, a descoberta pela Petrobras, das reservas do pré-sal, o grande tesouro brasileiro, capaz de assegurar melhoria na qualidade de vida para as nossas próximas gerações.

Entre 2003 e 2010, a mídia oligopolista, baseada em São Paulo e no Rio de Janeiro, acreditava ter candidatos competitivos para as disputas presidenciais. Apostou em José Serra e em Geraldo Alckmin, ambos do PSDB e ambos derrotados. Em 2014, novamente, por mais que tentasse, não conseguiu um nome que garantisse a vitória e a manutenção de seus interesses. Por mais que tenha atuado em favor de Aécio Neves – que o diga a reportagem de capa da revista Veja sobre corrupção na Petrobras às vésperas do segundo turno – ele perdeu.

É verdade que Lula, em seus dois mandatos, quase nada fez em termos de regulação da mídia. Dilma Rousseff também deixou dívida semelhante em seu primeiro mandato. Dívida que passou a ter obrigação de saltar agora, especialmente depois que a atuação da própria mídia, durante a campanha eleitoral, não lhe há e nem aos movimentos sociais que a apoiam, outra alternativa. Até porque, na queda de braços com a mídia, ou ela vence ou será vencida.

Oposição e golpismo

Daí não ser surpresa que a mídia hegemônica, de voz da oposição, tenha se transformado na própria oposição e, mais recentemente, deixasse de lado qualquer pudor e passasse a preparar o golpe contra Dilma e a democracia. Se em 2010, a então dirigente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito, afirmava, com todas as letras, que onde a oposição era fraca, a mídia deveria assumir este papel, nos últimos meses a mídia passou a agir como oposição e a pregar o desrespeito ao resultado democrático das urnas.

Na tentativa de viabilizar o chamado “terceiro turno” fez de tudo: denúncias absurdas de fraudes nas eleições, ênfases a pedidos de recontagem de votos por parte da oposição e até divulgação da ridícula posição do PSDB solicitando ao TSE que seu candidato fosse empossado em lugar da candidata democraticamente eleita. A mídia, ao invés de mostrar o que estava em jogo, amplificou apenas as vozes dos perdedores e confundiu a opinião pública. A presença de oposicionistas em esquemas de corrupção, como na Operação Lava Jato, continuou sedo escondida ou minimizada. Os jornais, telejornais e emissoras de TV passaram a bombardear a população, 24 horas por dia, com informações que apresentavam e apresentam o Brasil como à beira do caos, mergulhado numa crise econômica, política e social sem precedentes. Informações que escondem um Brasil que, nos últimos anos, transformou-se na sétima economia do planeta, com sólidas reservas monetárias, inflação na casa de um dígito e todas as condições, graças ao fortalecimento de seu mercado interno, de fazer frente aos problemas econômicos internos e externos.

Ao martelar na tecla da corrupção, como se este fosse o problema número um do Brasil, e como se o país, suas empresas e instituições, estivessem sendo assaltados por ratazanas, o que esta mídia tem buscado é assustar a classe média e, a partir dela, atingir os setores populares, até agora confiantes no governo e nas políticas sociais. Mais ainda: o que esta mídia tem feito é disseminar o ódio entre os brasileiros, tentando jogar sulistas contra nordestinos, trabalhadores de colarinho branco contra operários e profissionais liberais contra o governo, como no caso do Programa Mais Médicos. Enfim, esta mídia se transformou em sinônimo de um verdadeiro fundamentalismo, atrasado, excludente e preconceituoso.

Uma olhada rápida sobre o que se passa no mundo seria suficiente para desmontar a visão apocalíptica que a mídia tem construído sobre o Brasil, mas como ela é interessada e responsável pela divulgação das informações, a maioria da população acaba se pautando pelo que ela mostra ou deixa de mostrar.

Por tudo isso, lutar contra o golpe é sinônimo de regular a mídia no Brasil. Fazer aqui, com décadas de atraso, o que países capitalistas centrais fizeram e continuam aperfeiçoando ao longo dos últimos anos. O governo tem instrumentos legais para tanto, a começar pelo que dispõe a Constituição de 1988. A título de exemplo, as emissoras que sonegaram informações, não cobriram ou cobriram insuficientemente as manifestações dos movimentos populares na sexta-feira (13/3), e inflaram e convocaram o povo às ruas nas manifestações do domingo (15/3), deveriam merecer, no mínimo, uma dura advertência por parte do Ministério das Comunicações e da Anatel. TVs e rádios são concessões públicas e não podem ser utilizadas em favor de uns e em detrimentos dos outros, no incitamento ao ódio e na divulgação de mentiras e informações falsas.

No momento, os desafios para o governo Dilma, na área da comunicação, são muitos, mas não impossíveis de serem vencidos. É preciso se comunicar mais e melhor com a sociedade, ouvir o clamor das ruas, dos movimentos e das redes sociais. A mídia oligopolista não noticiou, mas as hastags que bombaram na web nos últimos dias 14 e 15 foram “#Globogolpista” e #FamiliaMarinhoHSBC”, deixando claro que o povo não é bobo.

Vandalismo informativo

Veio também das redes sociais o desmascaramento do Grupo Globo, que tentou transformar as manifestações do domingo, 15, que ele própria estimulou, convocou e cobriu, nas maiores manifestações da história brasileira. Não cabe um milhão de pessoas na Avenida Paulista, fato que por si só desmontou o show de vandalismo informativo realizado pela emissora. Show tão absurdo que nem a Folha de S.Paulo e nem o portal UOL, em que pesem serem parceiros, tiveram condição de a ele aderir.

Outros indícios dos efeitos negativos deste vandalismo por parte da mídia podem ser vistos na crescente perda de leitores, telespectadores e receita com que ela se defronta. Em 2013, por exemplo, o lucro do Grupo Globo desabou 17% em relação ao ano anterior e os seus próximos balanços devem apresentar números ainda piores. Em 15/3, fruto de intensa mobilização nas redes sociais em prol de audiência zero para a TV Globo, ela teve a pior performance em um domingo nos últimos 20 anos. Mesmo cobrindo as manifestações, alcançou apenas 7,2 pontos de audiência na parte da manhã e chegou a 17, 4 à tarde, segundo informação da Real Time, do site TV Foco. Semanas antes, foi a vez da outrora todo-poderosa Editora Abril ter que deixar o imponente prédio que ocupava na Marginal do rio Pinheiros, em São Paulo, e vender a parte mais lucrativa de suas empresas, deixando patente a incerteza quanto ao seu futuro.

Para o início de abril, as redes sociais estão convocando um movimento que tem como objetivo exigir que o governo casse a concessão da TV Globo. É a primeira vez que uma proposta assim ganha tal magnitude, sintetizando um desejo de milhares de pessoas em todos os quadrantes do país. A Globo, como todas as emissoras de rádio e TVs, é uma concessão pública. Se uma parcela expressiva deste público não a quer, o governo não pode fechar os olhos, especialmente quando esta concessão nunca foi alvo de qualquer tipo de avaliação. O tabuleiro, portanto, está se movendo e o alvo não é mais apenas o governo.

Ao contrário do que alguns pensam, não é fácil repetir, 51 anos depois, um golpe nas instituições brasileiras como aconteceu em 1964, embalado numa campanha que guarda semelhanças com a em curso pela mídia. Só que a história não se repete. A Guerra Fria acabou. O Brasil possui uma sólida economia e integra, junto com a Rússia, China, Índia e África do Sul, o Brics, grupo de países emergentes não alinhados aos Estados Unidos. Por tudo isso, a aposta desta mídia é no sangramento do governo Dilma, de forma que ela não consiga fazer seu sucessor, colocando-se assim um ponto final nos governos desenvolvimentistas. Só que neste processo, depois de tanto dar voz aos golpistas e de transformar-se, ela própria, em golpista, a mídia brasileira também está sangrando.



*Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade

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