Por Ângela Carrato[*]
Apesar da crença reinante nas
sociedades ocidentais sobre a importância da mídia para a democracia, a
realidade das últimas décadas na Europa, Estados Unidos e no Brasil aponta para
situação oposta. À medida que a mídia substituiu o precário compromisso de
informar – que historicamente a caracterizou – pela defesa intransigente dos
interesses das elites e dos seus próprios, ela inverte este papel e se
transforma em uma das principais, senão a principal, ameaça à democracia. Em
especial das democracias mais inclusivas.
Cedo, nos chamados países do
capitalismo central – em especial os Estados Unidos e a Inglaterra – estas
ameaças foram detectadas e tratou-se de se estabelecer um conjunto de regras
para disciplinar e impedir que a mídia, sobretudo a audiovisual – se
transformasse em um poder acima dos demais, evitando-se assim o rompimento da
própria regra democrática.
Foi assim que surgiu, ainda nos anos
1930, as primeiras leis que regularam a criação e funcionamento de emissoras de
rádio na Inglaterra. É importante salientar que o Estado inglês rapidamente
percebeu a importância e a dimensão estratégica e de segurança nacional
envolvendo estas emissoras. Motivo pelo qual elas não foram deixadas ao sabor da
iniciativa privada. Até o final dos anos 1970, a comunicação audiovisual na
Inglaterra e Reino Unido era pública. Vale dizer: pautava-se pelo interesse da
cidadania e não pelo dos anunciantes ou interesses do governo.
Nos Estados Unidos houve uma pesada (e
convenientemente esquecida) disputa envolvendo os primórdios das emissoras de
rádio. Parcela significativa da sociedade defendia que elas tivessem o caráter
educativo e, outra parcela, as via como comerciais. Prevaleceram os defensores
da segunda posição. O que não impediu que os Estados Unidos consolidassem uma
rígida legislação envolvendo a regulação da mídia. Lá, por exemplo, é proibida a
chamada “propriedade cruzada” que nada mais é do que a proibição que uma mesma
empresa de comunicação possua, na mesma cidade, mais de um veículo. Dito de
outra forma, em Nova York, por exemplo, o jornal The New York Times não pode ter
emissora de rádio, de televisão ou revista.
Entre
famílias
O desenvolvimento da mídia na Europa e
nos Estados Unidos foi acompanhado, de perto, pela legislação do setor, sempre
vigilante para impedir que o capital e os avanços tecnológicos se sobrepusessem
aos interesses da maioria, entendida como a essência e a razão de ser da própria
democracia.
Situação diferente enfrentou os países
da chamada periferia do capitalismo. Aqui como na maioria esmagadora da América
Latina, da África e da Ásia, o desenvolvimento da mídia pautou-se pelo interesse
do capital e dos seus proprietários, sem qualquer tipo de legislação que a
obrigasse a levar em conta a vontade da maioria. É importante lembrar que boa
parte desta mídia surgiu ou cresceu em períodos de governos ditatoriais, aos
quais não só apoiou e acobertou desmandos, como deles recebeu apoio e
benesses.
Até hoje, em que pese o retorno à
democracia em 1985, estas distorções não foram corrigidas, com a informação na
sociedade brasileira sendo controlada por uns poucos grupos de mídia, nas mãos
de meia dúzia de famílias. Que o digam os Marinho, Civita, Frias, Saad, Macedo,
Santos e Sirotsky.
O neoliberalismo que passou a dominar
alguns dos principais governos europeus a partir do início da década de 1980,
com sua determinação de derrubar todas as conquistas do welfare state do
pós-Segunda Guerra Mundial, não foi suficiente para liquidar a preocupação
envolvendo o compromisso democrático que deve reger a mídia e a necessidade dela
ser regulada. Razão pela qual partiu, recentemente, de um consórcio
internacional de jornalistas investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) sediado
em Londres, em parceria com o jornal francês Le Monde, a iniciativa de
investigar uma lista de 106 mil clientes do banco HSBC, com contas na filial
suíça desta instituição.
Patrões na
lista
A lista era fruto de um vazamento do
WikiLeaks, em 2008, e sobre ela havia a suspeição de que muitos destes clientes,
espalhados por 203 países, mantinham ali contas cujo objetivo era fugir do
pagamento de impostos e também lavar dinheiro fruto de atividades ilegais, como
venda de armas a terroristas e tráfico de drogas.
No Brasil, não é crime manter contas
bancárias no exterior, desde que sejam declaradas à Receita Federal e ao Banco
Central, quando o saldo for superior a US$ 100 mil. No entanto, grande parte da
elite brasileira tem o péssimo hábito de sonegar impostos, ao mesmo tempo em que
se autointitula paladina da moral e dos bons costumes, tachando seus críticos e
adversários de “corruptos”.
Durante vários meses, os jornalistas do
ICIJ trabalharam na apuração dos nomes que integram esta lista e, há mais de um
mês, eles são conhecidos na Europa. Na vizinha Argentina, por exemplo, há duas
semanas foi confirmado o que alguns sabiam e muitos desconfiavam: um dos maiores
depositantes destas contas é o grupo de mídia, Clarín, coincidentemente, o maior
opositor ao governo da presidente Cristina Kirchner e de seus programas
sociais.
Aqui, se não fosse a pressão das redes
sociais, este assunto não teria sido, sequer, divulgado e a lista suíça dos
brasileiros ficaria limitada apenas aos denunciados nas delações premiadas da
Operação Lava Jato. Isto porque, num primeiro momento, a mídia brasileira tentou
convencer os respeitáveis leitores, ouvintes e telespectadores que apenas a
turma da Lava Jato estava lá. Nem o antes conceituado comentarista político
Fernando Rodrigues, ex-Folha de S.Paulo e agora do UOL, quis enfrentar o
problema. Mesmo tendo, há mais de dois meses, acesso aos 8.667 nomes de
brasileiros que a integram e que possuem depositados de US$ 7 bilhões, preferiu
fingir de morto, sobretudo ao constatar que seus patrões figuravam na lista.
Rodrigues é dos poucos jornalistas brasileiros a fazer parte do
ICIJ.
Divulgação
manipulada
Em 14/03, dia seguinte às manifestações
em que integrantes de movimentos populares em 24 estados da federação e no
Distrito Federal saíram às ruas em apoio ao governo Dilma Rousseff, em defesa da
democracia, do pré-sal, da Petrobras, e da regulação democrática da mídia, uma
ínfima parte desta lista veio a público. Num acerto entre pares, coube ao jornal
O Globo e à Folha de S.Paulo esta divulgação, mesmo assim feita de forma parcial
e manipulada.
Os 22 “barões da mídia” e sete
jornalistas que tiveram seus nomes divulgados o foram de maneira indiscriminada,
colocados, lado a lado, com pessoas que visivelmente não têm nada a ver com o
assunto (caso da família Dines), sem falar na tentativa da Grupo Globo de jogar
nas costas da já falecida viúva de Roberto Marinho, dona Lily, a
responsabilidade por possíveis irregularidades. No entanto, por mais cuidados
com que tenham cercado a divulgação desta lista, não deixou de chamar atenção o
fato das contas dos donos do Grupo Folha terem sido abertas logo depois do
confisco de poupanças e depósitos bancários no governo Collor.
Se o dinheiro de todos os brasileiros
estava temporariamente confiscado, qual a origem dos recursos com os quais os
Frias abriram estas contas? Em outras palavras, o buraco é bem mais embaixo. A
primeira suspeita é de que os Frias, além de sonegarem, receberam informação
privilegiada de setores do próprio governo Collor, confirmando-se a relação
promíscua entre mídia e governo no Brasil até 2002.
A chegada de Luiz Inácio Lula da Silva
e do Partido dos Trabalhadores ao poder abalou este tipo de relação. Além de
Lula ter vencido as eleições presidenciais contra a mídia oligopolística, as
políticas sociais que passou a implementar mexeram com aqueles que não se
conformam com a redução das desigualdades sociais e não querem abrir mão de seus
privilégios. Setores dos quais fazem parte os próprios “barões” da
mídia.
Oposição
político-midiática
Num primeiro momento, estes “barões”
passaram a dar voz prioritariamente aos setores de oposição e, junto com eles,
montaram espetáculos político-midiáticos cujo objetivo era desgastar e, se
possível, apear o PT do poder. Alguém, em sã consciência, tem dúvida de que este
era o objetivo por trás das denúncias do chamado mensalão petista, em 2005?
Objetivo retomado em 2012 e 2013, quando da “cobertura” do julgamento pelo STF
dos envolvidos no escândalo.
A sociedade brasileira quer o fim da
corrupção. Mas é inaceitável, como tem feito a mídia, desde 2003, identificar a
corrupção ao PT e a uns poucos partidos políticos, sempre da base aliada,
ignorando a corrupção existente em outros níveis de governo, em outros poderes e
em outros partidos. O exemplo mais emblemático é o silêncio desta mídia em
relação à compra de votos para a reeleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB),
em 1998, e as privatizações a preço de banana de estatais brasileiras realizadas
naquele governo, cujo exemplo mais eloquente é o da Companhia Vale do Rio
Doce.
A mídia oligopolista desconheceu
naquela época – e continua desconhecendo – a existência de um outro mensalão, a
cargo dos tucanos em Minas Gerais, quando da tentativa de reeleição do
governador Eduardo Azeredo. Apesar de farta documentação e de ter em comum com o
mensalão petista o mesmo operador, Marcos Valério, a mídia faz questão de não
tratar do assunto. E é esta mesma mídia que gosta de apontar o dedo em riste e
chamar adversários de corruptos que não noticia que o mensalão tucano está
prestes a completar 10 anos e legalmente caducar, sem que ninguém tenha sido
julgado ou condenado.
Apesar da histeria contra Lula e o PT,
Lula se reelegeu em 2006 e fez de Dilma, sua sucessora, em 2010. As pesadas
baterias oposicionistas da mídia brasileira não foram suficientes para derrotar
o projeto desenvolvimentista e de política externa independente colocado em
prática. Projeto que possibilitou, inclusive, a descoberta pela Petrobras, das
reservas do pré-sal, o grande tesouro brasileiro, capaz de assegurar melhoria na
qualidade de vida para as nossas próximas gerações.
Entre 2003 e 2010, a mídia
oligopolista, baseada em São Paulo e no Rio de Janeiro, acreditava ter
candidatos competitivos para as disputas presidenciais. Apostou em José Serra e
em Geraldo Alckmin, ambos do PSDB e ambos derrotados. Em 2014, novamente, por
mais que tentasse, não conseguiu um nome que garantisse a vitória e a manutenção
de seus interesses. Por mais que tenha atuado em favor de Aécio Neves – que o
diga a reportagem de capa da revista Veja sobre corrupção na Petrobras às
vésperas do segundo turno – ele perdeu.
É verdade que Lula, em seus dois
mandatos, quase nada fez em termos de regulação da mídia. Dilma Rousseff também
deixou dívida semelhante em seu primeiro mandato. Dívida que passou a ter
obrigação de saltar agora, especialmente depois que a atuação da própria mídia,
durante a campanha eleitoral, não lhe há e nem aos movimentos sociais que a
apoiam, outra alternativa. Até porque, na queda de braços com a mídia, ou ela
vence ou será vencida.
Oposição e
golpismo
Daí não ser surpresa que a mídia
hegemônica, de voz da oposição, tenha se transformado na própria oposição e,
mais recentemente, deixasse de lado qualquer pudor e passasse a preparar o golpe
contra Dilma e a democracia. Se em 2010, a então dirigente da Associação
Nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito, afirmava, com todas as letras, que onde
a oposição era fraca, a mídia deveria assumir este papel, nos últimos meses a
mídia passou a agir como oposição e a pregar o desrespeito ao resultado
democrático das urnas.
Na tentativa de viabilizar o chamado
“terceiro turno” fez de tudo: denúncias absurdas de fraudes nas eleições,
ênfases a pedidos de recontagem de votos por parte da oposição e até divulgação
da ridícula posição do PSDB solicitando ao TSE que seu candidato fosse empossado
em lugar da candidata democraticamente eleita. A mídia, ao invés de mostrar o
que estava em jogo, amplificou apenas as vozes dos perdedores e confundiu a
opinião pública. A presença de oposicionistas em esquemas de corrupção, como na
Operação Lava Jato, continuou sedo escondida ou minimizada. Os jornais,
telejornais e emissoras de TV passaram a bombardear a população, 24 horas por
dia, com informações que apresentavam e apresentam o Brasil como à beira do
caos, mergulhado numa crise econômica, política e social sem precedentes.
Informações que escondem um Brasil que, nos últimos anos, transformou-se na
sétima economia do planeta, com sólidas reservas monetárias, inflação na casa de
um dígito e todas as condições, graças ao fortalecimento de seu mercado interno,
de fazer frente aos problemas econômicos internos e externos.
Ao martelar na tecla da corrupção, como
se este fosse o problema número um do Brasil, e como se o país, suas empresas e
instituições, estivessem sendo assaltados por ratazanas, o que esta mídia tem
buscado é assustar a classe média e, a partir dela, atingir os setores
populares, até agora confiantes no governo e nas políticas sociais. Mais ainda:
o que esta mídia tem feito é disseminar o ódio entre os brasileiros, tentando
jogar sulistas contra nordestinos, trabalhadores de colarinho branco contra
operários e profissionais liberais contra o governo, como no caso do Programa
Mais Médicos. Enfim, esta mídia se transformou em sinônimo de um verdadeiro
fundamentalismo, atrasado, excludente e preconceituoso.
Uma olhada rápida sobre o que se passa
no mundo seria suficiente para desmontar a visão apocalíptica que a mídia tem
construído sobre o Brasil, mas como ela é interessada e responsável pela
divulgação das informações, a maioria da população acaba se pautando pelo que
ela mostra ou deixa de mostrar.
Por tudo isso, lutar contra o golpe é
sinônimo de regular a mídia no Brasil. Fazer aqui, com décadas de atraso, o que
países capitalistas centrais fizeram e continuam aperfeiçoando ao longo dos
últimos anos. O governo tem instrumentos legais para tanto, a começar pelo que
dispõe a Constituição de 1988. A título de exemplo, as emissoras que sonegaram
informações, não cobriram ou cobriram insuficientemente as manifestações dos
movimentos populares na sexta-feira (13/3), e inflaram e convocaram o povo às
ruas nas manifestações do domingo (15/3), deveriam merecer, no mínimo, uma dura
advertência por parte do Ministério das Comunicações e da Anatel. TVs e rádios
são concessões públicas e não podem ser utilizadas em favor de uns e em
detrimentos dos outros, no incitamento ao ódio e na divulgação de mentiras e
informações falsas.
No momento, os desafios para o governo
Dilma, na área da comunicação, são muitos, mas não impossíveis de serem
vencidos. É preciso se comunicar mais e melhor com a sociedade, ouvir o clamor
das ruas, dos movimentos e das redes sociais. A mídia oligopolista não noticiou,
mas as hastags que bombaram na web nos últimos dias 14 e 15 foram
“#Globogolpista” e #FamiliaMarinhoHSBC”, deixando claro que o povo não é
bobo.
Vandalismo
informativo
Veio também das redes sociais o
desmascaramento do Grupo Globo, que tentou transformar as manifestações do
domingo, 15, que ele própria estimulou, convocou e cobriu, nas maiores
manifestações da história brasileira. Não cabe um milhão de pessoas na Avenida
Paulista, fato que por si só desmontou o show de vandalismo informativo
realizado pela emissora. Show tão absurdo que nem a Folha de S.Paulo e nem o
portal UOL, em que pesem serem parceiros, tiveram condição de a ele
aderir.
Outros indícios dos efeitos negativos
deste vandalismo por parte da mídia podem ser vistos na crescente perda de
leitores, telespectadores e receita com que ela se defronta. Em 2013, por
exemplo, o lucro do Grupo Globo desabou 17% em relação ao ano anterior e os seus
próximos balanços devem apresentar números ainda piores. Em 15/3, fruto de
intensa mobilização nas redes sociais em prol de audiência zero para a TV Globo,
ela teve a pior performance em um domingo nos últimos 20 anos. Mesmo cobrindo as
manifestações, alcançou apenas 7,2 pontos de audiência na parte da manhã e
chegou a 17, 4 à tarde, segundo informação da Real Time, do site TV Foco.
Semanas antes, foi a vez da outrora todo-poderosa Editora Abril ter que deixar o
imponente prédio que ocupava na Marginal do rio Pinheiros, em São Paulo, e
vender a parte mais lucrativa de suas empresas, deixando patente a incerteza
quanto ao seu futuro.
Para o início de abril, as redes
sociais estão convocando um movimento que tem como objetivo exigir que o governo
casse a concessão da TV Globo. É a primeira vez que uma proposta assim ganha tal
magnitude, sintetizando um desejo de milhares de pessoas em todos os quadrantes
do país. A Globo, como todas as emissoras de rádio e TVs, é uma concessão
pública. Se uma parcela expressiva deste público não a quer, o governo não pode
fechar os olhos, especialmente quando esta concessão nunca foi alvo de qualquer
tipo de avaliação. O tabuleiro, portanto, está se movendo e o alvo não é mais
apenas o governo.
Ao contrário do que alguns pensam, não
é fácil repetir, 51 anos depois, um golpe nas instituições brasileiras como
aconteceu em 1964, embalado numa campanha que guarda semelhanças com a em curso
pela mídia. Só que a história não se repete. A Guerra Fria acabou. O Brasil
possui uma sólida economia e integra, junto com a Rússia, China, Índia e África
do Sul, o Brics, grupo de países emergentes não alinhados aos Estados Unidos.
Por tudo isso, a aposta desta mídia é no sangramento do governo Dilma, de forma
que ela não consiga fazer seu sucessor, colocando-se assim um ponto final nos
governos desenvolvimentistas. Só que neste processo, depois de tanto dar voz aos
golpistas e de transformar-se, ela própria, em golpista, a mídia brasileira
também está sangrando.
*Jornalista e
professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi
publicado no blog Estação Liberdade
Nenhum comentário:
Postar um comentário