sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Reflexões sobre perspectivas do capitalismo em crise (I)


Sergio Barroso *

Nessa série de cinco artigos retomaremos a discussão sobre a grande crise capitalista atual, incidências e horizontes. Buscando visualizar melhor o que consideramos seus impasses sistêmicos extremos.


Como pano de fundo pressuposto a lei do desenvolvimento desigual do sistema capitalista, problema científico fundamental da evolução histórica das sociedades, então equacionado por Lênin no início do século passado. Mirando-se ainda o imbróglio de conexões cada vez mais vastas e profundas que se renovam entre o centro, a periferia capitalista e os países sobreviventes da experiência socialista.

Apesar dum cenário global de “estilhaçamento” dos marcos geopolíticos da situação pretérita, a análise não descobrirá pólvora alguma, mas examinará a seguinte postulação: a persistência do regime contemporâneo do capital, e a falência da economia política neoclássica aceleram antagonismos incontornáveis à sua sobrevivência. Cruzando problemas estruturais e conjunturais, iniciaremos com aspectos centrais da crise ligada às mudanças na esfera financeira.

Neoliberalismo, enganadores e trapaceiros 

“Mercados competitivos, por sua própria natureza, produzem engano e trapaça” (George Akerlof e Robert Shiller, ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, 25/09/2015). [1]

Em grande medida – temos insistido -, questões estruturais dos ciclos e crises recentes são dedutíveis nas formulações recentes de Mohamed El-Erian (2011): o crescimento econômico mundial passa a viver “um novo normal”; por Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA, onde, a partir do fracasso da economia americana alcunhou de “estagnação secular” o atual estágio do afundamento da economia global (2013); e, no final de 2014, Cristine Lagarde, diretora-gerente do FMI dissertou estarmos vivenciando “uma nova mediocridade”.

Evidente: essa nova onda de aparente “catastrofismo”, advinda de credenciados porta-vozes dos paradigmas neoliberais somente aparece após a devastação resultante da grande crise iniciada em 2007-8. E enfeitar o fracasso com a definição cínica de “nova mediocridade” talvez bem represente a ideia do “moral hazard” (risco moral) difundida pelos ideólogos neoliberais para justificações da ilimitada voracidade e anarquia cometidas pelo grande capital financeiro. Insulto a Keynes? [2]

Ao que tudo indica, a tão almejada luz no fim do túnel “pós-crise” pisca, diante da interesseira propaganda da “recuperação” econômica dos EUA. País que hoje amontoa 2,2 milhões de presidiários (cinco vezes mais que 1980), correspondendo a 25% da população carcerária mundial - enquanto sua população soma apenas 5% da população do planeta! [3]. Noutro indicador econômico fundamental, para o influente economista norte-americano Bradford Delong (ex-subsecretário-adjunto do Departamento do Tesouro dos EUA), a proporção de pessoas empregadas em relação à população “continua sinalizando uma economia em profunda dificuldade”. Ademais, a inflação nos EUA não está apenas inferior à meta de longo prazo do Fed (Banco Central dos EUA), como se acredita “que continue assim durante pelo menos os próximos três anos”. [4] A deflação – que se busca disfarçar - é fenômeno que acompanha as depressões, como mostra a experiência histórica!

Isso oito anos depois de trilionários aportes em dólar pelo Estado americano a bancos e investidores falidos, de fuixação de uma política monetária com taxa de juros negativas, e um extenso e repetido de programa de venda-compra de títulos do Tesouro (quantitative easing). O falhanço em verdade apontaria nada mais que a interrupção prolongada dos ciclos de dinamismo causais da acumulação do capital sistêmica.

“Los Angeles declara estado de emergência após aumento do número de sem-teto” [5]

No âmago da involução, a crise detonada pela “financerização” da riqueza capitalista e seus fenômenos econômicos-sociais, aqui compreendidos como responsáveis pelas conexões verticais de rupturas do processo de acumulação do capital.

Crise e mutações financeiras

As características gerais da presente crise aparecem de maneira similar àquelas grandes crises de outrora que processaram alterações substantivas na dinâmica do ciclo capitalista, isto é, determinada tipologia da expansão pré-crise provocou prolongamento e distúrbios severos no estágio que deveria ser rotineiramente de uma crise recessiva. 

Para o marxista norte-americano Robertt Guttmann, ao invés, o sistema como um todo foi envolvido nessa crise, assim como quando ocorreram agora alterações estruturais no modus operandi do sistema capitalista. Os desequilíbrios gerados, na ausência de processos intervenientes, ensejam explosões seguidas de paralisias sistêmicas. Crises estruturais da mesma envergadura e similares às de: 1873-1879, 1929-1939 e 1979-1982 - argumenta ele. 
Espécies de nuvens passageiras”, outras que se manifestaram nos anos 1990, esta não só apenas originou-se do centro do sistema, ao invés da periferia, esta notabilizou-se por revelar “falhas estruturais profundas na arquitetura institucional de contratos, fundos e mercados que compunham o sistema financeiro novo e desregulamentado”; uma crise sistêmica, de proporções épicas e efeitos duradouros. [6]

Crises sistêmicas que levam à recessão, estagnação ou depressão. É como interpreta e distingue o também economista marxista britânico Michel Roberts. No gráfico abaixo. Roberts não só assinala os ciclos das tendências do crescimento econômico no desenrolar das crises, como destaca um processo depressivo instalado desde a crise de agosta de 2007, “até agora”. [7]


Dito de outra forma, a crise e seus desdobramentos atuais configuram fenômenos gestados num padrão de capitalista voltado à acumulação financeira neoliberal. Assim denominada, a “globalização financeira” dos mercados globais soterrou o padrão anterior regulatório acordado no pós-2ª Guerra. Notadamente a partir dos anos 1980, como nunca as relações do poder no comando direto das operações recompuseram as forças sociais do grande capital financeiro, decretando políticas de desregulamentação e a liberalização dos mercados financeiros e liquidando o regime de finanças e comércio mundial instituído em Bretton Woods.

Importa assim repor: 1) neoliberalismo e “globalização financeira” não apenas reafirmam a tendência à superacumulação de capital, como introduziram novas determinações agravantes da instabilidade e da incerteza do cálculo capitalista próprias desse regime de produção na época dos monopólios; 2) especialmente instrumentos e “inovações” financeiras, e a as obscuras relações se amplificaram progressivamente entre o sistema bancário tradicional e o “sistema financeiro sombra” (shadow banking system), fenômenos decisivos que estiveram no centro da deflagração da crise, em agosto de 2007 e setembro de 2008. 3) desenvolveu-se nova e furiosa campanha permanente de ataque e desmonte das conquistas do trabalho, um aríete de recomposição das taxas de lucros; 4) De acordo com outro pesquisador marxista, David Kotz [8], ocorreram três desenvolvimentos fundamentais no neoliberalismo: a) ascensão das desigualdades econômico-sociais; b) proliferaram grandes bolhas de ativos; c) a expansão de um setor financeiro especulativo e propenso ao risco, visivelmente contrastantes, por exemplo, com os EUA durante o período “regulado” 1948-73 ( “The Golden Age”).

No artigo seguinte veremos mais detalhadamente a relação entre os novos instrumentos financeiros (“inovações”) e a crise.

NOTAS
[1] Ver: “economistas premiados engrossam o coro do ataque ao livre mercado”, Wall Street Journal/Valor Econômico, 25/09/2015. Para J. Schumpeter, “O mercado monetário é sempre, por assim dizer, o quartel general do sistema capitalista” (“A teoria do desenvolvimento econômico”, Abril Cultural, 1983 [1911], p. 86). 
[2] Nos escritos de J. Keynes, o famoso capítulo 8 (“Teoria do juro, emprego e da moeda”, Abril Cultural 1983 [1935], p. 117), pode-se lê: “Além da causa devida à especulação, a instabilidade econômica encontra outra causa, inerente à natureza humana, no fato de que grande parte das nossas atividades positivas depende mais do otimismo espontâneo do que de uma expectativa matemática, seja moral, hedonista ou econômica”. 
[3] Em: “A encarcerada economia americana”, L.Tyson e L. Mendonça, Valor Econômico, 28/09/2015.
[4] Ver: “Sobre o aperto monetário americano”, J. Bradford Delong, Valor Econômico, 31/08/2015.
[5] Manchete da reportagem do New York Times, copiada pelo Estado S. Paulo (23/09/2015), informando ainda que em números oficiais são 26 mil moradores de rua na cidade. Áreas urbanas de Nova York, Washington e São Francisco registram aumento dos sem-teto; em Honolulu, no Havaí, ou Tucson, no Arizona, também em cidades “famosas por suas políticas liberais”, como Madison, Wisconsin, levaram a repressão a grandes acampamentos.
[6] Ver, de R. Guttmann: “Globalização financeira pós-crise”, em: Revista Tempo do Mundo, IPEA, v.1, nº1, dez. 2009; “Uma introdução ao capitalismo dirigido pelas finanças”, Novos Estudos/CEBRAP, nº82, 2008.
[7] Ver: “Deuda, despalancamiento y recesión”, M. Roberts, in: SinPermiso, 05/10/2014.
[8] Ver: “A teoria marxista da crise e a severidade da crise econômica atual”, orig.em: http://people.umass.edu/dmkotz/Marxist_Cr_Th_09_12.pdf. O marxista Kotz vem pesquisando a categoria “Estrutura Social de Acumulação”.
* Médico, doutorando em Economia Social e do Trabalho (Unicamp), membro do Comitê Central do PCdoB

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