Por Leonardo Sakamoto, em seu blog:
O bicho está pegando na educação. É tanto problema que você pode montar o seu combo: roubo de merenda, escolas ocupadas, universidades em greve (e quebradas), proposta de teto orçamentário ameaçando investimentos na área, Plano Nacional de Educação completando dois anos sem NENHUMA meta cumprida e por aí vai.
Mas a julgar pelo que se passa na Congresso Nacional e na mídia, o grande mal da educação brasileira tem outro nome: “Doutrinação Político-Partidária”.
A questão é a bandeira principal do movimento Escola Sem Partido, aquele mesmo defendido por um dos maiores especialistas em Pedagogia (FROTA, Alexandre), em encontro com o ministro Mendonça Filho no fim do mês passado.
O ESP não consta da pauta de reivindicações ao titular interino do MEC, como mostrou a agência Lupa. Mesmo assim, o papo descontraído agradou o presidente do movimento, o advogado e procurador do Estado de São Paulo Miguel Nagib. Veja o recadinho em seu Facebook: “Quero agradecer publicamente ao Alexandre Frota por haver defendido o Projeto Escola sem Partido em sua audiência com o Ministério da Educação. Não exigimos atestado de bons antecedentes.”
Fico pensando em que mundo essa turma vive para achar que as escolas brasileiras – “em todos os níveis, do ensino básico ao superior” – sofrem de “contaminação político-ideológica” comandada por “um exército organizado de militantes travestidos de professores” (é sério, gente, tá tudo no site do movimento http://www.escolasempartido.org/).
A doutrinação na educação é um bichinho pequeno, mas o Escola Sem Partido joga um forte holofote sobre ele e pede que olhemos a sombra – monstruosa, assustadora – projetada na parede.
Uma boa reportagem publicada, nesta sexta (24), no site da Nova Escola confirma essa impressão. São perguntas e respostas que apontam o óbvio: não há evidência consistente do problema.
O Escola Sem Partido afirma ter um batalhão de denúncias de doutrinação, mas publica apenas 33 em seu site (detalhe: o Brasil tem 45 milhões de estudantes). São elas, e uma pesquisa encomendada pela revista Veja em 2008, que sustentam as ações do movimento.
Isso está muito longe de configurar uma tendência, que precisa de dados mais robustos e outros estudos comprovado que confirmem a hipótese. E tem uma outra coisinha: se existe doutrinação esquerdista, ela está dando muito, mas muito errado. E uma pesquisa Datafolha de dois anos atrás e o próprio mapa eleitoral das últimas eleições registram um avanço da direita e um recuo da esquerda.
A reportagem também mostra que de “Sem Partido” o ESP não tem nada. O levantamento dos projetos de lei inspirados nas ideias do movimento mostra um claro predomínio dos partidos de direita e de centro. O campeão é o PSC, com cinco proponentes. Outro dado que ilustra o caráter “independente'' é a vinculação religiosa: 11 dos 19 proponentes de projetos inspirados pelo ESP são ligados a alguma igreja.
As propostas do movimento são perigosas para o pensamento livre. Além dos projetos de lei contra a militância partidária, o ESP disponibiliza uma notificação extrajudicial que ameaça processar professores que abordarem sexualidade e diversidade de gênero. Além de configurar constrangimento ao exercício profissional, é uma baita contradição para quem diz defender a “pluralidade” e o caminho oposto dos países de alto desempenho em educação: Estados Unidos (em que alguns estados oferecem educação sexual desde o século 19), Nova Zelândia, Suécia e Finlândia, França. Ontário, no Canadá, tem currículo que discute relacionamento homoafetivo e identidade de gênero. Aqui, querem interditar o debate.
Mesma coisa com os estudos indígenas e africanos, classificados como porta de entrada para favorecer “movimentos sociais”. Já na Noruega, o currículo é generoso com o povo sami, habitantes originais do norte da Escandinávia. “Doutrinação”, por lá, chama-se respeito à diversidade e às raízes da história do país.
Suspeito que por trás da gritaria esteja uma enorme confusão conceitual. O Escola Sem Partido elege o marxismo como chaga principal, sem sequer se preocupar em definir que raios quer dizer com isso.
Fica nas entrelinhas o entendimento de que joga no mesmo balaio as ideias de Marx, o fracasso do socialismo real e as atrocidades imperdoáveis dos regimes comunistas.
Dessa forma, fica mais fácil ilustrar a tal sombra monstruosa e aterrorizante que “domina as universidades brasileiras” – outra afirmação sem nenhuma evidência.
Aliás, queria muito conhecer essa universidade. Fiz minha graduação em Jornalismo e mestrado e doutorado em Ciência Política na Universidade de São Paulo. E, definitivamente, lá não é. Pelo contrário, a New School, universidade que me recebeu como pesquisador visitante, é bem mais progressista que minha querida USP. E, ironicamente, fica numa cidade comunista (Nova Iorque) de um país comunista, os Estados Unidos.
Para piorar, o principal evangelista dessa Bíblia do Mal, na opinião do movimento seria ninguém mais, ninguém menos do que Paulo Freire. Justo ele, pacifista convicto e obsessivo pela ideia de que as pessoas deveriam pensar livremente.
Coisa de quem nunca leu uma linha sequer do educador brasileiro mais respeitado no mundo. Ou, se leu, não entendeu nada.
O baixo nível do debate, aliás, é o mais triste. Com tanta coisa importante para discutir, com tanta ação urgente para tomar, nos pegamos imobilizados numa falsa questão, sustentada por argumentos frágeis e para lá de questionáveis.
Presos na cortina de fumaça da suposta doutrinação, empobrecemos um pouco mais o debate sobre educação. Ganha quem aposta na confusão e na contenção dos pequenos avanços civilizatórios da área nos últimos anos.
E o futuro, aquele que nunca chega, vai ficando a cada dia mais distante.
O bicho está pegando na educação. É tanto problema que você pode montar o seu combo: roubo de merenda, escolas ocupadas, universidades em greve (e quebradas), proposta de teto orçamentário ameaçando investimentos na área, Plano Nacional de Educação completando dois anos sem NENHUMA meta cumprida e por aí vai.
Mas a julgar pelo que se passa na Congresso Nacional e na mídia, o grande mal da educação brasileira tem outro nome: “Doutrinação Político-Partidária”.
A questão é a bandeira principal do movimento Escola Sem Partido, aquele mesmo defendido por um dos maiores especialistas em Pedagogia (FROTA, Alexandre), em encontro com o ministro Mendonça Filho no fim do mês passado.
O ESP não consta da pauta de reivindicações ao titular interino do MEC, como mostrou a agência Lupa. Mesmo assim, o papo descontraído agradou o presidente do movimento, o advogado e procurador do Estado de São Paulo Miguel Nagib. Veja o recadinho em seu Facebook: “Quero agradecer publicamente ao Alexandre Frota por haver defendido o Projeto Escola sem Partido em sua audiência com o Ministério da Educação. Não exigimos atestado de bons antecedentes.”
Fico pensando em que mundo essa turma vive para achar que as escolas brasileiras – “em todos os níveis, do ensino básico ao superior” – sofrem de “contaminação político-ideológica” comandada por “um exército organizado de militantes travestidos de professores” (é sério, gente, tá tudo no site do movimento http://www.escolasempartido.org/).
A doutrinação na educação é um bichinho pequeno, mas o Escola Sem Partido joga um forte holofote sobre ele e pede que olhemos a sombra – monstruosa, assustadora – projetada na parede.
Uma boa reportagem publicada, nesta sexta (24), no site da Nova Escola confirma essa impressão. São perguntas e respostas que apontam o óbvio: não há evidência consistente do problema.
O Escola Sem Partido afirma ter um batalhão de denúncias de doutrinação, mas publica apenas 33 em seu site (detalhe: o Brasil tem 45 milhões de estudantes). São elas, e uma pesquisa encomendada pela revista Veja em 2008, que sustentam as ações do movimento.
Isso está muito longe de configurar uma tendência, que precisa de dados mais robustos e outros estudos comprovado que confirmem a hipótese. E tem uma outra coisinha: se existe doutrinação esquerdista, ela está dando muito, mas muito errado. E uma pesquisa Datafolha de dois anos atrás e o próprio mapa eleitoral das últimas eleições registram um avanço da direita e um recuo da esquerda.
A reportagem também mostra que de “Sem Partido” o ESP não tem nada. O levantamento dos projetos de lei inspirados nas ideias do movimento mostra um claro predomínio dos partidos de direita e de centro. O campeão é o PSC, com cinco proponentes. Outro dado que ilustra o caráter “independente'' é a vinculação religiosa: 11 dos 19 proponentes de projetos inspirados pelo ESP são ligados a alguma igreja.
As propostas do movimento são perigosas para o pensamento livre. Além dos projetos de lei contra a militância partidária, o ESP disponibiliza uma notificação extrajudicial que ameaça processar professores que abordarem sexualidade e diversidade de gênero. Além de configurar constrangimento ao exercício profissional, é uma baita contradição para quem diz defender a “pluralidade” e o caminho oposto dos países de alto desempenho em educação: Estados Unidos (em que alguns estados oferecem educação sexual desde o século 19), Nova Zelândia, Suécia e Finlândia, França. Ontário, no Canadá, tem currículo que discute relacionamento homoafetivo e identidade de gênero. Aqui, querem interditar o debate.
Mesma coisa com os estudos indígenas e africanos, classificados como porta de entrada para favorecer “movimentos sociais”. Já na Noruega, o currículo é generoso com o povo sami, habitantes originais do norte da Escandinávia. “Doutrinação”, por lá, chama-se respeito à diversidade e às raízes da história do país.
Suspeito que por trás da gritaria esteja uma enorme confusão conceitual. O Escola Sem Partido elege o marxismo como chaga principal, sem sequer se preocupar em definir que raios quer dizer com isso.
Fica nas entrelinhas o entendimento de que joga no mesmo balaio as ideias de Marx, o fracasso do socialismo real e as atrocidades imperdoáveis dos regimes comunistas.
Dessa forma, fica mais fácil ilustrar a tal sombra monstruosa e aterrorizante que “domina as universidades brasileiras” – outra afirmação sem nenhuma evidência.
Aliás, queria muito conhecer essa universidade. Fiz minha graduação em Jornalismo e mestrado e doutorado em Ciência Política na Universidade de São Paulo. E, definitivamente, lá não é. Pelo contrário, a New School, universidade que me recebeu como pesquisador visitante, é bem mais progressista que minha querida USP. E, ironicamente, fica numa cidade comunista (Nova Iorque) de um país comunista, os Estados Unidos.
Para piorar, o principal evangelista dessa Bíblia do Mal, na opinião do movimento seria ninguém mais, ninguém menos do que Paulo Freire. Justo ele, pacifista convicto e obsessivo pela ideia de que as pessoas deveriam pensar livremente.
Coisa de quem nunca leu uma linha sequer do educador brasileiro mais respeitado no mundo. Ou, se leu, não entendeu nada.
O baixo nível do debate, aliás, é o mais triste. Com tanta coisa importante para discutir, com tanta ação urgente para tomar, nos pegamos imobilizados numa falsa questão, sustentada por argumentos frágeis e para lá de questionáveis.
Presos na cortina de fumaça da suposta doutrinação, empobrecemos um pouco mais o debate sobre educação. Ganha quem aposta na confusão e na contenção dos pequenos avanços civilizatórios da área nos últimos anos.
E o futuro, aquele que nunca chega, vai ficando a cada dia mais distante.
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