O financismo pretende sufocar os serviços de saúde, educação, previdência e demais direitos republicanos que devem ser oferecidos pelo Estado brasileiro.
Por Paulo Kliass*
Lula Marques/Agência PT
As tentativas de reação política em torno da estratégia do afastamento de Dilma Roussef remontam ao dia seguinte da divulgação dos resultados do pleito de outubro de 2014. As forças que haviam sido derrotadas nas eleições presidenciais passaram imediatamente a perseguir aquilo que passou a ser conhecido como o “terceiro turno”. Face à recusa sistemática de simpatia por parte da maioria da população brasileira, lançaram mão do questionamento do resultado nas urnas, do questionamento das contas de campanha vencedora, da articulação das esferas do Poder Judiciário e do Ministério Público, da conspiração aberta dos principais órgãos de comunicação, entre tantos outros expedientes.
Passado um ano e meio de tamanho bombardeio, lograram alguns avanços significativos. O primeiro passo ocorreu com a aquela cena de triste memória no plenário da Câmara dos Deputados, quando a aceitação preliminar do pedido de impedimento mostrou ao mundo inteiro a qualidade da maioria dos integrantes daquela instância de nosso legislativo. Em seguida, veio a votação também preliminar no Senado Federal, que terminou por chancelar o início do processo sem nenhuma base de indiciamento com base em crime de responsabilidade, conforme determina a Constituição Federal. Em suma, um golpe institucional, forma pela qual as principais fontes da imprensa internacional e a unanimidade dos espaços de articulação diplomática assim o reconhecem.
No entanto, ao que tudo indica não imaginavam que a passagem de Michel Temer pelo Palácio do Planalto pudesse oferecer tamanho quadro de trapalhada, incompetência e acusação de corrupção. As dificuldades enfrentadas pelo presidente interino na montagem de sua equipe ministerial e o retardamento recorrente do início efetivo de seu governo terminam por comprometer o objetivo estratégico do financismo nessa aventura putschista. Afinal, trata-se de promover um desmonte do pouco que resta de um Estado de Bem Estar Social em nosso País e acionar a destruição dos principais instrumentos para eventual implementação de alguma política desenvolvimentista.
Temer: austericídio em sua versão 3.0
Essas são as principais razões para que a política de austericídio - iniciada por Joaquim Levy e Nelson Barbosa ainda no governo Dilma - tenha sido mantida e aprofundada mesmo depois da mudança. A chegada de Henrique Meirelles ao Ministério da Fazenda e seu empoderamento simbólico pelo presidente provisório revelam a crueldade com que se pretende solucionar a grave questão fiscal. Cortes, cortes e mais cortes no orçamento da União. Austeridade, austeridade e mais austeridade na recomendação para as finanças de Estados e Municípios. A ordem é promover o ajuste a qualquer custo e na maior brevidade possível. Afinal, o tempo corre contra os golpistas e o desgaste diário do governo contribui inclusive para eventual derrota do impedimento em sua votação definitiva em agosto.
O verdadeiro desmonte que as forças do financismo pretendem impor à sociedade brasileira tem pouco a ver com as tragicômicas cenas oferecidas por integrantes do governo interino. Apesar do inescapável desgaste político causado por esse tipo de ação de ministros indiciados e integrantes desajeitados do primeiro escalão, os estrategistas emprestados à linhagem do tucanato estão ali para executar com seriedade o serviço sujo. Trata-se de eliminar as conquistas inscritas no corpo da Constituição e privatizar as empresas estatais que haviam sobrevivido às várias ondas devastadoras no neoliberalismo que assolaram as nossas costas.
Isso significa ampliar o sufocamento dos serviços de assistência social, saúde, educação, previdência social e demais direitos republicanos que devem ser oferecidos pelo Estado brasileiro. Ao dar continuidade à gestão anterior, Meirelles comprime drasticamente as rubricas orçamentárias destinadas a tais benefícios de natureza social. Com isso os algozes no comando da política econômica perseguem duas metas. De um lado, promovem o sucateamento e a inviabilização da oferta de tais serviços pela estrutura da administração pública. Por outro lado, oferecem ao capital privado a excelente oportunidade de ampliar seus investimentos e sua lucratividade em áreas em que já vêm penetrando com força. Basta ver a impressionante expansão das universidades vinculadas a fundos de investimentos estrangeiro ou o ingresso de conglomerados multinacionais em planos de saúde e no setor de hospitais.
Superávit primário: lucro do financismo.
O tom catastrofista com que a grande imprensa divulga o tema da crise das contas públicas também atua no mesmo sentido. O mantra do inescapável superávit primário permanece inquestionado. Atuar com respeito à necessária responsabilidade fiscal sofreu um reducionismo inescrupuloso. De acordo com a antiga recomendação da velha ortodoxia, tal conduta permanece inalterada: continua sendo sinônimo de apenas promover cortes nas despesas primárias. Está blindada qualquer sugestão de se levar em consideração a possibilidade de políticas anticíclicas, em especial para os momentos de recessão e desemprego como o que vivemos atualmente. Não há espaço para que se proponha a busca do equilíbrio das contas por meio do aumento da receita advinda impostos sobre patrimônio ou incidentes sobre as parcelas do topo da pirâmide social.
Mas o principal aspecto do debate interditado pelo establishment refere-se à manutenção do adjetivo “primário” sempre que se estiver referindo ao superávit fiscal. Essa é a verdadeira malandragem imposta pelo financismo para isolar as despesas de natureza financeira do conjunto do bolo das rubricas potenciais a serem objeto de corte. As manchetes alarmistas se contentam em reproduzir as fontes oficiais, sempre a buscar justificativas para passar a tesoura nos gastos. E ai surgem as fórmulas conhecidas como “o modelo de direitos previsto na Constituição não cabe mais no Orçamento”, “o déficit estrutural da previdência”, “o crescimento exponencial dos gastos com saúde”, “a insustentabilidade das despesas com auxílio desemprego e abono salarial”, “a fraude no recebimento dos valores do Bolsa Família”, entre tantos outras meias verdades repetidas à mancheia.
Ao se referir malandramente ao termo “primário”, os espertalhões da finança retiram do foco das despesas de natureza financeira. Ao sugerir a responsabilidade para com o equilíbrio fiscal, isolam do cálculo os gastos que o orçamento sustenta com o pagamento de juros e demais serviços da dívida pública. Em 2015, por exemplo, foram R$ 540 bilhões a esse título. A maior conta individual em valores e que não sofreu nenhum tipo de corte ou contingenciamento.
Despesas sociais ou despesas financeiras?
Para o presente ano, a situação não é muito distinta. O Ministério do Planejamento e o Ministério da Fazenda acompanham de forma sistemática a evolução das despesas e receitas. Com isso, e por determinação legal, divulgam a cada bimestre um documento chamado “Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias”. A situação do segundo bimestre aponta para um total previsto de R$ 1,5 trilhão a título de despesas financeiras a ser realizada ao longo de 2016. Esse valor representa mais do que 50% do total das despesas do Orçamento que está com previsão de R$ 2,9 tri.
Apesar disso, esse montante trilionário permanece “imexível”, em nome da necessária estabilidade macroeconômica e da manutenção das cláusulas do contrato do sacrossanto mercado. O que interessa a essa gente é cortar os direitos representados por rubricas sociais. Assim, as manchetes escancaram os R$ 503 bilhões dos benefícios do INSS e os R$ 259 bi relativos ao pagamento de pessoal. Também se escandalizam com os R$ 59 bi previstos com despesas de abono salarial e auxílio desemprego, além dos R$ 49 bi destinados ao Beneficio de Prestação Continuada (BPC), benefício dirigido aos idosos e deficientes. São números grandes, pois prestam um serviço para dezenas de milhões de famílias. Mas são benefícios que representam valores individuais muitas vezes inferiores a um salário mínimo por mês. Com toda certeza não são eles que estão promovendo as dificuldades de caixa do governo.
Esse é desmonte que Temer promete concluir. Tudo para beneficiar o sistema financeiro e as elites do andar de cima. Disciplina e determinação para destruir os direitos da grande maioria da população, especialmente em um momento que mais precisam do apoio de políticas públicas.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Passado um ano e meio de tamanho bombardeio, lograram alguns avanços significativos. O primeiro passo ocorreu com a aquela cena de triste memória no plenário da Câmara dos Deputados, quando a aceitação preliminar do pedido de impedimento mostrou ao mundo inteiro a qualidade da maioria dos integrantes daquela instância de nosso legislativo. Em seguida, veio a votação também preliminar no Senado Federal, que terminou por chancelar o início do processo sem nenhuma base de indiciamento com base em crime de responsabilidade, conforme determina a Constituição Federal. Em suma, um golpe institucional, forma pela qual as principais fontes da imprensa internacional e a unanimidade dos espaços de articulação diplomática assim o reconhecem.
No entanto, ao que tudo indica não imaginavam que a passagem de Michel Temer pelo Palácio do Planalto pudesse oferecer tamanho quadro de trapalhada, incompetência e acusação de corrupção. As dificuldades enfrentadas pelo presidente interino na montagem de sua equipe ministerial e o retardamento recorrente do início efetivo de seu governo terminam por comprometer o objetivo estratégico do financismo nessa aventura putschista. Afinal, trata-se de promover um desmonte do pouco que resta de um Estado de Bem Estar Social em nosso País e acionar a destruição dos principais instrumentos para eventual implementação de alguma política desenvolvimentista.
Temer: austericídio em sua versão 3.0
Essas são as principais razões para que a política de austericídio - iniciada por Joaquim Levy e Nelson Barbosa ainda no governo Dilma - tenha sido mantida e aprofundada mesmo depois da mudança. A chegada de Henrique Meirelles ao Ministério da Fazenda e seu empoderamento simbólico pelo presidente provisório revelam a crueldade com que se pretende solucionar a grave questão fiscal. Cortes, cortes e mais cortes no orçamento da União. Austeridade, austeridade e mais austeridade na recomendação para as finanças de Estados e Municípios. A ordem é promover o ajuste a qualquer custo e na maior brevidade possível. Afinal, o tempo corre contra os golpistas e o desgaste diário do governo contribui inclusive para eventual derrota do impedimento em sua votação definitiva em agosto.
O verdadeiro desmonte que as forças do financismo pretendem impor à sociedade brasileira tem pouco a ver com as tragicômicas cenas oferecidas por integrantes do governo interino. Apesar do inescapável desgaste político causado por esse tipo de ação de ministros indiciados e integrantes desajeitados do primeiro escalão, os estrategistas emprestados à linhagem do tucanato estão ali para executar com seriedade o serviço sujo. Trata-se de eliminar as conquistas inscritas no corpo da Constituição e privatizar as empresas estatais que haviam sobrevivido às várias ondas devastadoras no neoliberalismo que assolaram as nossas costas.
Isso significa ampliar o sufocamento dos serviços de assistência social, saúde, educação, previdência social e demais direitos republicanos que devem ser oferecidos pelo Estado brasileiro. Ao dar continuidade à gestão anterior, Meirelles comprime drasticamente as rubricas orçamentárias destinadas a tais benefícios de natureza social. Com isso os algozes no comando da política econômica perseguem duas metas. De um lado, promovem o sucateamento e a inviabilização da oferta de tais serviços pela estrutura da administração pública. Por outro lado, oferecem ao capital privado a excelente oportunidade de ampliar seus investimentos e sua lucratividade em áreas em que já vêm penetrando com força. Basta ver a impressionante expansão das universidades vinculadas a fundos de investimentos estrangeiro ou o ingresso de conglomerados multinacionais em planos de saúde e no setor de hospitais.
Superávit primário: lucro do financismo.
O tom catastrofista com que a grande imprensa divulga o tema da crise das contas públicas também atua no mesmo sentido. O mantra do inescapável superávit primário permanece inquestionado. Atuar com respeito à necessária responsabilidade fiscal sofreu um reducionismo inescrupuloso. De acordo com a antiga recomendação da velha ortodoxia, tal conduta permanece inalterada: continua sendo sinônimo de apenas promover cortes nas despesas primárias. Está blindada qualquer sugestão de se levar em consideração a possibilidade de políticas anticíclicas, em especial para os momentos de recessão e desemprego como o que vivemos atualmente. Não há espaço para que se proponha a busca do equilíbrio das contas por meio do aumento da receita advinda impostos sobre patrimônio ou incidentes sobre as parcelas do topo da pirâmide social.
Mas o principal aspecto do debate interditado pelo establishment refere-se à manutenção do adjetivo “primário” sempre que se estiver referindo ao superávit fiscal. Essa é a verdadeira malandragem imposta pelo financismo para isolar as despesas de natureza financeira do conjunto do bolo das rubricas potenciais a serem objeto de corte. As manchetes alarmistas se contentam em reproduzir as fontes oficiais, sempre a buscar justificativas para passar a tesoura nos gastos. E ai surgem as fórmulas conhecidas como “o modelo de direitos previsto na Constituição não cabe mais no Orçamento”, “o déficit estrutural da previdência”, “o crescimento exponencial dos gastos com saúde”, “a insustentabilidade das despesas com auxílio desemprego e abono salarial”, “a fraude no recebimento dos valores do Bolsa Família”, entre tantos outras meias verdades repetidas à mancheia.
Ao se referir malandramente ao termo “primário”, os espertalhões da finança retiram do foco das despesas de natureza financeira. Ao sugerir a responsabilidade para com o equilíbrio fiscal, isolam do cálculo os gastos que o orçamento sustenta com o pagamento de juros e demais serviços da dívida pública. Em 2015, por exemplo, foram R$ 540 bilhões a esse título. A maior conta individual em valores e que não sofreu nenhum tipo de corte ou contingenciamento.
Despesas sociais ou despesas financeiras?
Para o presente ano, a situação não é muito distinta. O Ministério do Planejamento e o Ministério da Fazenda acompanham de forma sistemática a evolução das despesas e receitas. Com isso, e por determinação legal, divulgam a cada bimestre um documento chamado “Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias”. A situação do segundo bimestre aponta para um total previsto de R$ 1,5 trilhão a título de despesas financeiras a ser realizada ao longo de 2016. Esse valor representa mais do que 50% do total das despesas do Orçamento que está com previsão de R$ 2,9 tri.
Apesar disso, esse montante trilionário permanece “imexível”, em nome da necessária estabilidade macroeconômica e da manutenção das cláusulas do contrato do sacrossanto mercado. O que interessa a essa gente é cortar os direitos representados por rubricas sociais. Assim, as manchetes escancaram os R$ 503 bilhões dos benefícios do INSS e os R$ 259 bi relativos ao pagamento de pessoal. Também se escandalizam com os R$ 59 bi previstos com despesas de abono salarial e auxílio desemprego, além dos R$ 49 bi destinados ao Beneficio de Prestação Continuada (BPC), benefício dirigido aos idosos e deficientes. São números grandes, pois prestam um serviço para dezenas de milhões de famílias. Mas são benefícios que representam valores individuais muitas vezes inferiores a um salário mínimo por mês. Com toda certeza não são eles que estão promovendo as dificuldades de caixa do governo.
Esse é desmonte que Temer promete concluir. Tudo para beneficiar o sistema financeiro e as elites do andar de cima. Disciplina e determinação para destruir os direitos da grande maioria da população, especialmente em um momento que mais precisam do apoio de políticas públicas.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Fonte: Carta Maior
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