OSVALDO BERTOLINOPUBLICADO EM 28.05.2016
Ao participar do ciclo de debates com o tema "Os caminhos da esquerda diante do golpe”, realizado por professores e alunos da Universidade de São Paulo (USP), Luis Fernandes, dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), cientista político do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, ex-diretor da Faperj, ex-secretário executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia e ex-presidente da Finep, classificou o golpe em curso como contrário aos ideais da Revolução de 1930.
O tema da palestra de Luis Fernandes foi a política internacional. Segundo ele, o atual ministro das relações exteriores, José Serra, assumiu com um discurso muito forte de crítica à política externa dos governos de Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, caracterizando-a de ideológica e partidarizada, um argumento falacioso. O ministro golpista falou em defesa do “interesse nacional” e apelou para “contribuições técnicas” para definir a nova orientação das relações exteriores, ignorando que toda política está entrelaçada com ideologia, explicou Luis Fernandes. “Não há política sem ideologia”, argumentou.
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Ele prosseguiu com a explicação citando que não existe definição política desligada de valores, de ideologias. Dizer que a política externa adotada até aqui foi ideológica e partidarizada não significa isentá-la da defesa do interesse nacional, afirmou. “O que está em jogo é de fato a definição do interesse nacional”, analisou. Para Luis Fernandes, uma coisa é a ideologia que orienta com valores a política, outra é o contexto no qual essa política opera. “E, a rigor, existem duas interpretações sobre a inserção do Brasil no mundo e a realidade do século XXI, ambas ideológicas e partidarizadas”, argumentou.
Realidade de multipolarização
A política externa dos governos Lula e Dilma definiu que o Brasil precisava ao mesmo tempo não se afastar dos polos dominantes do sistema de poder internacional - em particular os Estados Unidos e a Europa – e se inserir na nova dinâmica que se formou com a ascensão dos países emergentes. Esse seria o caminho que melhor realizaria o interesse nacional brasileiro no contexto da globalização, de acordo com Luis Fernandes. Segundo ele, o diagnóstico que fundamentou a política externa adotada nos últimos 13 anos aponta para o enfraquecimento dos polos centrais do sistema internacional.
Desse ponto de vista, o interesse nacional precisa estar inserido na realidade de multipolarização. Não faz sentido o Brasil se acoplar a polos em decadência e ignorar os polos em ascensão. A orientação estratégica que deveria predominar é de diversificação das relações no mundo crescentemente multipolar, avaliou. Essa não é só uma opção política e ideológica, argumentou Luis Fernandes. Ela encerra valores. Os indicadores de poder relativo do mundo, da evolução da política econômica internacional, avaliados a partir da Guerra Fria, mostram um enfraquecimento objetivo das potências tradicionais, explicou.
Ele citou como exemplo a participação da China no PIB mundial, medido por paridade de poder de compra – a medida mais efetiva de produção de riqueza –, que já ultrapassou o dos Estados Unidos. Outro indicador: a produção científica e tecnológica, que também passa por uma diversificação da produção no mundo. Mais outro: a origem das principais empresas operando em áreas de fronteira da sociedade de conhecimento, com o enfraquecimento das empresas americanas e a ascensão de um forte polo na Índia. São indicadores objetivos de um processo de transição que está em curso no sistema internacional, explicou Luis Fernandes. Ele argumentou que na dimensão bélica do poder, os gastos armamentistas, que se intensificou com a Guerra Fria, há de fato um desnível, tendo os Estados Unidos como referência.
Dois eixos da política externa
Mas, apesar disso, mesmo apoiados nessa superioridade bélica, das cinco guerras após a Segunda Guerra Mundial eles ganharam apenas uma, a primeira Guerra do Golfo. Na Guerra da Coreia, na melhor das hipóteses ficou-se em um impasse, um empate; tanto que até hoje não foi firmado acordo de paz. Na Guerra do Vietnã foram derrotados, embora não reconheçam. Depois vieram a Guerra do Afeganistão e a segunda Guerra do Iraque, das quais os norte-americanos tiveram de sair sem alcançar seus objetivos. Luis Fernandes lembrou que o ex-presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, atacou o Iraque com a falsa acusação de que o regime do presidente Saddam Hussein possuia armas de destruição em massa, o que justificaria uma guerra global contra o terror, transformando os territórios do Iraque e da Síria em campos de cultivo de grupos terroristas.
É nesse contexto que se deve situar a política externa desenvolvida nos últimos 13 anos, de acordo com Luis Fernandes. Segundo ele, existem duas iniciativas que foram fundamentais nesse sentido, dois eixos da política externa brasileira. O primeiro é o processo de integração sul-americana, com o Mercosul e a Unasul, ajudado pela viragem progressista ocorrida em boa parte do continente. Tratava-se de uma agenda de integração política e econômica. E que se pretendia também militar, com o Conselho de Defesa da Unsaul. Esse processo teve sua materialidade econômica nos investimentos na integração física da América do Sul, com seu núcleo formado por grandes empresas de construção pesada brasileiras.
O segundo eixo foi a aproximação com os BRICS (Brasil, Rússia, Índia e África do Sul), entendidos como expressão dos novos polos em ascensão, que casa com a política de defesa brasileira, com uma estratégia de dissuasão, que implica política assimétrica em posição de inferioridade, orientada para a preservação da soberania brasileira e sul-americana sobre a Amazônia e a Amazônia Azul, sobretudo a partir da descoberta do pré-sal.
Velocidades diferentes
A orientação era de preservar a capacidade dissuasória contra qualquer agressão, explicou Luis Fernandes, lembrando que a perda de poder relativo dos polos dominantes tem resultado numa crescente tendência à ação unilateral e coercitiva dos Estados Unidos. Isso se traduziu, de acordo com ele, na ofensiva no Oriente Médio, na Guerra da Líbia e na anunciada invasão da Síria, abortada por uma reação firme, diplomática e militar, da Rússia. Se traduziu também na promoção ativa de golpes de Estado na Ucrânia e no Egito. A política externa norte-americana não pode dizer que ela é golpista porque a lei não permite ajuda militar a golpistas, mas é assim que eles têm agido.
Segundo Luis Fernandes, o golpe brasileiro deve ser inserido nesses acontecimentos. Em primeiro lugar, é preciso considerar que essa prática esteve presente em Honduras e no Paraguai. A América Latina foi identificada como o elo mais frágil desses movimentos contra-hegemônicos na evolução do sistema de poder internacional. Há também ações de desestabilização na Venezuela, na Bolívia e no Equador. Com a possível exceção do Uruguai, a viragem à esquerda da região seu deu com figuras carismática à frente; a destruição das suas reputações compõe a estratégia golpista, de acordo com Luis Fernandes. Há ainda a política de isolamento da China, particularmente com a presença da 7ª Frota norte-americana em suas fronteiras e o Tratado Transpacífico, que tenta isolar o gigante socialista no comércio internacional.
Luis Fernandes avaliou que nos BRICS existem velocidades diferentes, com a China em primeiro lugar, com uma estratégia nacional de desenvolvimento muito mais sólida. A Índia também evolui numa velocidade maior, assim como a Rússia. Brasil e África do Sul estão num patamar mais claudicante. O gigante sul-americano foi identificado como elo mais frágil dessa cadeia. Segundo ele, com um governo liderado pela esquerda, em um Estado que não perdeu sua natureza de classe, o golpe se instalou por dentro do sistema de poder. O papel do Judiciário na ruptura democrática mostra o caráter de classe do Estado. Mesmo no âmbito da política se vê aspectos desenvolvimentistas convivendo com a persistência de áreas do Estado dominadas por circuitos financeiros.
Polo de financiamento público
Luis Fernandes concluiu dizendo que é assustador a agressividade da agenda que o governo interino está tentando impor. Ele disse que os golpistas não foram nem um pouco cautelosos e anunciaram uma agenda contrarrevulicionária. Não porque os governos de Lula e Dilma foram revolucionários; ele se referiu à Revolução de 1930. E explicou que os golpistas anunciam medidas contra a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Previdência Social, que representam a negação do Estado Social. A Seguridade Social passa a ser tratada no âmbito do Ministério da Fazenda, um retrocesso dos princípios consagrados na Constituição de 1988.
Citou também o desmonte do polo de financiamento público para o desenvolvimento nacional. Retiraram recursos que subsidiam a TJLP (Taxa de Juro de Longo Prazo) do BNDES, liquidando a capacidade de financiamento de longo prazo para se estruturar o desenvolvimento nacional. O fim do Fundo Soberano também faz parte dessa política de desmonte do polo do financiamento público, assim como o ataque às empresas capazes de alavancar investimentos em infraestrutura nacional, inviabilizadas pela ofensiva que vem no curso da ação golpista a partir da “Operação Lava Jato”.
A engenharia nacional de construção civil é fruto da Revolução de 1930, segundo Luis Fernandes. Elas foram constituídas a partir da existência de um esforço de desenvolvimento nacional com financiamento público. É isso que está sendo desmontado, argumentou. Não se trata apenas da deposição do governo Dilma. Trata-se do desmonte de um projeto de desenvolvimento. “Vamos viver as contradições desse processo agora”, disse ele, explicando que a aplicação dessa agenda conservadora logo explicitará contradições econômicas, sociais e políticas, que vai ampliar a margem de manobra para a resistência democrática. “Essa é a gravidade do processo que está em curso. A nossa luta é dura porque profunda. Não se trata só da preservação do princípio da soberania popular, que é muito importante, de defesa de um governo eleito democraticamente, mas, mais do que isso, de combate a um projeto que está sendo implementado. É necessário explorar todas as contradições para derrota-lo”, concluiu.
Iniciativas estratégicas
Além de Luis Fernandes, participaram da mesa, mediada por Jean Tible, doutor em Sociologia (Unicamp), professor de relações internacionais (Fundação Santo André), Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais (PUC SP) e do programa de pós-graduação San Tiago Dantas, e Maurício Metri (UFRJ).
Nasser comentou o papel do oligopólio da mídia, argumentando que a ideologia do movimento conservador norte-americano Tea Party passou a ter influência no Brasil. Segundo ele, ao longo dos governos Lula e Dilma houve uma progressiva implementação de instituições, de pessoas e de grupos de direita claramente influenciados pelo neoconservadorismo americano, um perfil diferente da direita tradicional. Um sinal importante desse fenômeno é o Instituto Millenium, com fortes ramificações midiáticas. Toda a articulação internacional dessa direita, de acordo com ele, se deu como decorrência da presença marcante do Brasil no cenário mundial, representando um projeto político muito importante para a América Latina e a África. O Brasil era uma simbologia desses países emergentes.
Maurício Metri argumentou que o Brasil tomou algumas iniciativas estratégicas no contexto mundial de ofensiva dos Estados Unidos e Europa contra os BRICS, em especial com seus dois principais integrantes: China e Rússia. Foram ações brasileiras em áreas sensíveis do jogo de poder internacional, com destaque para o Plano Nacional de Defesa. Segundo ele, o Brasil definiu como prioridade sua defesa estratégica, que envolve a América do Sul, o Atlântico Sul e a parte ocidental da África, como espaço de influência e projeção, e a redefinição da agenda de segurança e defesa nacional.
Ao redefinir sua política de defesa, o Brasil criou um antagonismo na geopolítica como principal país desse sistema, de acordo com Metri. Antagonismo com a principal potência do planeta. O pré-sal, uma nova fronteira de exploração do petróleo, com uma legislação específica, é parte destacada desse jogo. Para ele, o discurso de combate à “corrupção” tem sentido geopolítico, parte do esquema para tirar do Brasil os instrumentos de soberania nacional. A dinâmica do golpe se dá com a perseguição das lideranças que têm conduzido esse processo, assim como os aparelhos do Estado com alguma conexão com a projeção brasileira no cenário mundial, relativamente nem sucedida.
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