Em 2003 a Secretaria de Direitos Humanos da Argentina passou a ser dirigida por um advogado ex-preso político, Luis Eduardo Duhale, que foi sucedido em 2012 por Martín Fresneda, filho de militantes desaparecidos. Desde então a Cúpula das Forças Armadas foi desmanchada, se derrubaram as leis de Obediência devida e Ponto final e se iniciou uma onda de julgamentos que incluía a cumplicidade cívico-militar.
Por Bárba Ester
Telesur
Dias antes das eleições, a Casa da Memória amanheceu pichada pelos revanchistas de Macri
Desta forma, 119 filhos de presos e desaparecidos políticos recuperaram sua identidade graças às melhorias do sistema de busca (Banco Nacional de Dados Genéticos). Centros Clandestinos de Detenção e outros locais vinculados com o terrorismo de Estado se converteram em Espaços de Memória, centros de investigação, educação e promoção de direitos.
Ao longo da campanha presidencial de Maurício Macri ele defendia a conciliação e o diálogo, o que levou a maioria a pensar que os princípios kirchneristas seguiriam de pé. Dois dias antes da votação, a atual Casa da Memória, ex-Mansão Seré – o centro clandestino de tortura e detenção de maior envergadura em Buenos Aires – amanhecia pichado com a seguinte frase: “el 22 se termina el curro” (algo como “no dia 22 terminam os enganos”). Os muros do obscuro passado ressignificado já anunciavam uma mudança de 360 graus de novo ao ponto de partida, mas com um novo-velho relato em disputa.
Em 23 de novembro de 2015, faltando poucas horas para se conhecer o resultado eleitoral, o editorial do diário La Nacion era intitulado “Não mais vingança”. Esta era a inauguração oficial do revanchismo. A instauração de um olhar que questiona, em primeiro lugar, o reconhecimento histórico das organizações de Direitos Humanos, acusadas então de distorcer a história com fins populistas. A caracterização habilitava então o segundo ponto, a demanda dos editores: prisão domiciliar aos genocidas da ditadura. Por último, caso deixe aberta a porta para novas investigações por violações dos direitos humanos, freia-se a busca por qualquer cumplicidade civil e econômica. Os desparecidos não eram “a juventude maravilhosa”, mas sim a guerra suja. Não havia nenhuma epopeia, apenas a distorção de que o próprio kirchnerismo havia tentado instalar. A justiça contra os militares havia sido uma miragem.
A ordem macrista decidiu, frente a isso, “deskirchnerizar” a política e as instituições. Não só no âmbito dos direitos humanos, mas em todo o Estado. Mais de três mil despedidos de ministérios chave como o do Trabalho, da Cultura e do Centro de Cultura Kirchner, além do Ministério de Indústria e a Secretaria de Comércio Interior, o Ministério de Desenvolvimento Social e o de Justiça e Direitos Humanos, o de Segurança, o chefe de gabinete da presidência e outros organismos.
Os gestos simbólicos são abundantes: desalojar a da ex-Esma (maior centro de tortura do país) para um galpão, onde Andrés Zerneri está desenvolvendo um projeto para o monumento da mulher originária, a primeira desaparecida. A proibição de nomear um hospital em homenagem a Laura Bonaparte, mãe da Praça de Maio. O ministro da Cultura portenho, Darío Lopérfido, criticou a cifra de 30 mil desaparecidos tentando estabelecer uma “verdadeira” estatística sobre os casos. No mesmo dia a conta oficial da Casa Rosada no Twitter considerou Sara Rus vítima da “intolerância” e não mais uma sobrevivente dos genocídios – o nazismo e a ditadura argentina, responsáveis pelo desaparecimento de seu filho.
Já não se trata apenas de uma escabrosa mudança linguística, o novo governo busca retirar os presos e desaparecidos da órbita estatal e convertê-los em vítimas de um terrorismo difuso e sem Estado, onde existiram excessos em ambos os lados. Passados dois meses do novo governo, a mudança de paradigma é executada fielmente. A “teoria dos dois demônios” garante a realização simbólica do genocídio porque seu anseio é a destruição dos laços sociais, implica em apagar a identidade e qualquer vestígio de ação coletiva. A recuperação da memória, verdade e justiça é a única garantia de que os fatos não se repitam.
Para impor o ajuste não se poupou exercer uma sorte de poder pretoriano: repressão, gatilho fácil, criminalização da pobreza, volta das averiguações de antecedentes sancionadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, e detenções arbitrárias de líderes de organizações opositoras, como é o caso de Milagro Sala e Rodolfo Aguiar, que foram presos por protestar.
O decreto presidencial de 22 de janeiro declara emergência em matéria de segurança aplicando medidas excepcionais na luta contra o narcotráfico. Esta decisão foi denunciada por diversos espaços políticos, sociais e acadêmicos, entre eles o Acordo de Segurança Democrática e o grupo Convergência, da via livre para uma série de procedimentos de exceção para aumentar o número de efetivos policiais e dotá-los de mais poder de fogo. As Forças Armadas adquirem, por sua vez, o poder de derrubar aviões que não se identifiquem, sem sequer consultar as autoridades políticas. A medida é inconstitucional já que consiste em uma pena de morte sumaria e encoberta, e contradiz o Pacto de San José da Costa Rica. Ao mesmo tempo, o decreto de emergência possibilita o poder Executivo a incrementar seus gastos em tecnologia e armamento. A guerra contra o narcotráfico pode crescer e assumir um grande espaço frente ao Estado.
Alguns juízes fizeram sua parte e nem bem começou o ano. Se destacam Ernestina Herrera de Noble (dona do jornal Clarín) na causa por apropriação de menores e com um julgamento unânime outorgaram prisão domiciliar a Rubén Alfredo Boan – acusado de sequestrar e torturar mais de oitenta pessoas.
Em nível regional, a rispidez do presidente argentino com o venezuelano já se manifestava na cúpula do Mercosul, realizada em dezembro de 2015 no Paraguai – em torno da liberação dos denominados “presos políticos” venezuelanos. Em referência a Leopoldo López, que foi condenado como autor intelectual das manifestações de fevereiro de 2014, que resultaram em 43 mortos e centenas de feridos. Da mesma forma, a vice-presidenta Gabriela Michetti voltou a se pronunciar nesta direção, reconhecendo laços de solidariedade internacional entre ambos os países ao receber exilados durante a ditadura argentina. Paradoxalmente, Leopoldo López foi condenado a treze anos de prisão por “instigar a violência”, mesmo motivo pelo qual o governo argentino mandou prender Milagro Sala.
Ao longo da campanha presidencial de Maurício Macri ele defendia a conciliação e o diálogo, o que levou a maioria a pensar que os princípios kirchneristas seguiriam de pé. Dois dias antes da votação, a atual Casa da Memória, ex-Mansão Seré – o centro clandestino de tortura e detenção de maior envergadura em Buenos Aires – amanhecia pichado com a seguinte frase: “el 22 se termina el curro” (algo como “no dia 22 terminam os enganos”). Os muros do obscuro passado ressignificado já anunciavam uma mudança de 360 graus de novo ao ponto de partida, mas com um novo-velho relato em disputa.
Em 23 de novembro de 2015, faltando poucas horas para se conhecer o resultado eleitoral, o editorial do diário La Nacion era intitulado “Não mais vingança”. Esta era a inauguração oficial do revanchismo. A instauração de um olhar que questiona, em primeiro lugar, o reconhecimento histórico das organizações de Direitos Humanos, acusadas então de distorcer a história com fins populistas. A caracterização habilitava então o segundo ponto, a demanda dos editores: prisão domiciliar aos genocidas da ditadura. Por último, caso deixe aberta a porta para novas investigações por violações dos direitos humanos, freia-se a busca por qualquer cumplicidade civil e econômica. Os desparecidos não eram “a juventude maravilhosa”, mas sim a guerra suja. Não havia nenhuma epopeia, apenas a distorção de que o próprio kirchnerismo havia tentado instalar. A justiça contra os militares havia sido uma miragem.
A ordem macrista decidiu, frente a isso, “deskirchnerizar” a política e as instituições. Não só no âmbito dos direitos humanos, mas em todo o Estado. Mais de três mil despedidos de ministérios chave como o do Trabalho, da Cultura e do Centro de Cultura Kirchner, além do Ministério de Indústria e a Secretaria de Comércio Interior, o Ministério de Desenvolvimento Social e o de Justiça e Direitos Humanos, o de Segurança, o chefe de gabinete da presidência e outros organismos.
Os gestos simbólicos são abundantes: desalojar a da ex-Esma (maior centro de tortura do país) para um galpão, onde Andrés Zerneri está desenvolvendo um projeto para o monumento da mulher originária, a primeira desaparecida. A proibição de nomear um hospital em homenagem a Laura Bonaparte, mãe da Praça de Maio. O ministro da Cultura portenho, Darío Lopérfido, criticou a cifra de 30 mil desaparecidos tentando estabelecer uma “verdadeira” estatística sobre os casos. No mesmo dia a conta oficial da Casa Rosada no Twitter considerou Sara Rus vítima da “intolerância” e não mais uma sobrevivente dos genocídios – o nazismo e a ditadura argentina, responsáveis pelo desaparecimento de seu filho.
Já não se trata apenas de uma escabrosa mudança linguística, o novo governo busca retirar os presos e desaparecidos da órbita estatal e convertê-los em vítimas de um terrorismo difuso e sem Estado, onde existiram excessos em ambos os lados. Passados dois meses do novo governo, a mudança de paradigma é executada fielmente. A “teoria dos dois demônios” garante a realização simbólica do genocídio porque seu anseio é a destruição dos laços sociais, implica em apagar a identidade e qualquer vestígio de ação coletiva. A recuperação da memória, verdade e justiça é a única garantia de que os fatos não se repitam.
Para impor o ajuste não se poupou exercer uma sorte de poder pretoriano: repressão, gatilho fácil, criminalização da pobreza, volta das averiguações de antecedentes sancionadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, e detenções arbitrárias de líderes de organizações opositoras, como é o caso de Milagro Sala e Rodolfo Aguiar, que foram presos por protestar.
O decreto presidencial de 22 de janeiro declara emergência em matéria de segurança aplicando medidas excepcionais na luta contra o narcotráfico. Esta decisão foi denunciada por diversos espaços políticos, sociais e acadêmicos, entre eles o Acordo de Segurança Democrática e o grupo Convergência, da via livre para uma série de procedimentos de exceção para aumentar o número de efetivos policiais e dotá-los de mais poder de fogo. As Forças Armadas adquirem, por sua vez, o poder de derrubar aviões que não se identifiquem, sem sequer consultar as autoridades políticas. A medida é inconstitucional já que consiste em uma pena de morte sumaria e encoberta, e contradiz o Pacto de San José da Costa Rica. Ao mesmo tempo, o decreto de emergência possibilita o poder Executivo a incrementar seus gastos em tecnologia e armamento. A guerra contra o narcotráfico pode crescer e assumir um grande espaço frente ao Estado.
Alguns juízes fizeram sua parte e nem bem começou o ano. Se destacam Ernestina Herrera de Noble (dona do jornal Clarín) na causa por apropriação de menores e com um julgamento unânime outorgaram prisão domiciliar a Rubén Alfredo Boan – acusado de sequestrar e torturar mais de oitenta pessoas.
Em nível regional, a rispidez do presidente argentino com o venezuelano já se manifestava na cúpula do Mercosul, realizada em dezembro de 2015 no Paraguai – em torno da liberação dos denominados “presos políticos” venezuelanos. Em referência a Leopoldo López, que foi condenado como autor intelectual das manifestações de fevereiro de 2014, que resultaram em 43 mortos e centenas de feridos. Da mesma forma, a vice-presidenta Gabriela Michetti voltou a se pronunciar nesta direção, reconhecendo laços de solidariedade internacional entre ambos os países ao receber exilados durante a ditadura argentina. Paradoxalmente, Leopoldo López foi condenado a treze anos de prisão por “instigar a violência”, mesmo motivo pelo qual o governo argentino mandou prender Milagro Sala.
Tanto no âmbito nacional, como no latino-americano, o macrismo se propõe a impugnar a garantia e a perspectiva dos direitos humanos do governo anterior. “Equilibrar a balança e corrigir distorções”. Assim demonstrou o atual secretário de Direitos Humanos, Claudio Avruj, ao receber uma organização que representa os militares mortos. Os avanços produzidos a partir deste encontro parecem estar em momentos turbulentos, onde para além das organizações de direitos humanos, ainda veremos grande resistência social.
Fonte: Telesur
Tradução: Mariana Serafini
Tradução: Mariana Serafini
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