domingo, 14 de fevereiro de 2016

Estado, liberdade e a “Grande Mentira”


Estado, liberdade e a “Grande Mentira”Estado, liberdade e a “Grande Mentira”

A maior estratégia de subordinação de um povo é incutir o mito de que nada de positivo é possível pelo Estado. Na ausência do poder do Estado, exercido de forma democrática, quem irá controlar e inibir os excessos dos mais poderosos? 

Por Everton Sotto Tibiriçá Rosa*, no Brasil Debate


“A liberdade da democracia não está segura se as pessoas tolerarem o crescimento do poder privado ao ponto em que ele se torna mais forte do que o próprio estado democrático. Isso, em sua essência, é fascismo – a propriedade do governo por um indivíduo, por um grupo ou por qualquer poder de controle privado”. Franklin Delano Roosevelt, 1938 (1)

Não é só no fascismo que o Estado democrático é capturado por um indivíduo, grupo ou poder de controle privado. O Estado neoliberal, baseado na ideia de Estado Mínimo (para o povo) e Máximo (para os mais afluentes, grandes empresas e sistema financeiro), típico desde os anos 1980 e do fenômeno da globalização (produtiva, mas sobretudo financeira), representa, em sua essência, a mesma característica do fascismo, ou seja, utilizar o instrumento de poder a favor de interesses particulares e não da sociedade ampla.

Não surpreendem, portanto, pacotes de socorro para os grandes grupos e desemprego para a população; remuneração financeira elevada para quem tem dinheiro e endividamento das pessoas, empresas e do Estado; desigualdade em níveis do início do século 20.

É a sociedade onde a individualidade humana é medida apenas na compra de um produto, e não pela dignidade e oportunidade para a busca do desenvolvimento da capacidade do indivíduo.

Tal como no fascismo, a população é subordinada às vontades particulares impostas pelo Estado totalitário. Nas últimas décadas, sob o discurso da “liberdade” e do “mercado” grupos controlam o Estado para impor as suas vontades.

Vide reforma da previdência, terceirização, flexibilidade dos contratos de trabalho (mas não dos contratos de forma geral, só o dos trabalhadores), sonegação de tributos, perdão de dívidas, renovação de concessões públicas a empresas que descumprem contratos; venda de patrimônio público em nome da escassez e aumento dos preços dos serviços e por aí vai.

No fascismo havia o discurso da unidade que exaltava um povo, uma nação, um líder. A subordinação atual ocorre sob o lema da “liberdade de mercado” e de “liberdade para escolher” (embora sejam quase sempre os produtos de uma mesma empresa pertencente a um grande conglomerado internacional).

Para as pessoas serem livres de verdade, terem oportunidade e acesso a uma vida digna, é preciso haver regra, é preciso que os excessos sejam contidos, reparados e responsabilizados. Infelizmente, não existe poder para conter os interesses privados de grandes grupos a não ser o poder da sociedade por meio do Estado democrático, tal como afirmado por Roosevelt.

A maior estratégia de subordinação de um povo é incutir o mito de que nada de positivo é possível pelo Estado (as campanhas de voto nulo vão neste sentido). Os mesmos que defendem estas ideias, caso não sejam ingênuos, são os que mais se beneficiam das benesses do poder público. Na ausência do poder do Estado, exercido de forma democrática, quem irá controlar e inibir os excessos dos mais poderosos?

A maioria dos defensores da “liberdade” (no discurso, mas não necessariamente na prática) diz que a concorrência vai garantir que o poder seja controlado (liberalismo clássico). Outros vão dizer que tal como na “seleção natural”, a concorrência vai selecionar os vencedores e definir os perdedores (neoliberalismo, escola austríaca ou liberalismo extremo, próximo da doutrina do “darwinismo social” de Spencer, no fim do séc. 19).

O que não se diz? Que o primeiro caso é um mito e que o segundo ocorre ao custo da estabilidade econômica, das oportunidades de vida digna para todos. Pelo “liberalismo extremo”, apenas os “vencedores” têm direito a uma vida digna.

Pergunta: vamos distribuir a riqueza igualmente, dar oportunidades para que todos possam concorrer em pé de igualdade e, daí sim, selecionar os vencedores? A resposta é quase sempre não, pois tal como no primeiro caso, o segundo parte do mito de que no “mercado” todos têm oportunidades iguais, caso o Estado fique de fora. Ou seja, os grandes e favorecidos pela herança (e não necessariamente pela acumulação individual) vão concorrer com quem entrou no jogo agora.

Quem iria forçar a distribuição de riqueza, se não o Estado? A forma menos radical de promover a igualdade é pela via tributária, algo que tem sido deturpado desde os anos 1980 nos países desenvolvidos e no nosso desde a ditadura militar.

Ou seja, ao invés de promover a igualdade, o sistema tributário é utilizado para aumentar a desigualdade, onerando os mais pobres e praticamente isentando os mais ricos e que detêm propriedades – a exemplo de proprietários de jatinhos e barcos que nem imposto veicular pagam.

Quando se questiona isso, não é de surpreender que pessoas digam que a crítica que demanda justiça social é apenas inveja.

A maior bandeira de um liberal deveria ser repudiar a herança (e não a riqueza), pois ela nada tem a ver com o esforço individual e com a posição meritocrática defendida por muitos.

No entanto, os que defendem liberdade, em geral, defendem a riqueza, sem esclarecer se é a riqueza do esforço do indivíduo ou a obtida pela dádiva da herança.

Entre mitos e distorções, praticamos, sob a bandeira da liberdade, a mesma subordinação do fascismo.

A “Grande Mentira” da propaganda fascista é, nas últimas décadas, contada todos os dias nos jornais e difundida nas propagandas das empresas, como se a dignidade, o desenvolvimento humano, a felicidade e o bem-estar das pessoas – perseguidos e batalhados por milênios – estivessem restritos apenas a escolher um bem e serviço no mercado.

Neste ponto, infelizmente, a liberdade de mercado (dogmática) acaba gradativamente por minar a liberdade política pela captura do Estado, retira das mãos das pessoas o instrumento mais poderoso para se zelar pela qualidade da vida humana, enquanto o coloca nas mãos dos que já são favorecidos.

Nem tudo o Estado pode fazer, e é interessante que ele não faça. Porém, nem tudo a iniciativa privada pode fazer e é interessante que ela não faça.

Zelar pela comunidade, pela busca da felicidade, do bem-estar, pela igualdade e oportunidades para o desenvolvimento humano não é tarefa do mercado. O mercado só pode fornecer produtos e nem isso faz de forma estável, com maior qualidade e menor preço.

Enquanto prevalecer a polarização entre Estado e mercado, típica da fase mais extrema do liberalismo dos anos 1980, vamos continuar vivendo a “Grande Mentira” sob o rótulo de liberdade, tal qual nos regimes fascistas.

Nota

(1) http://www.presidency.ucsb.edu/ws/?pid=15637 

*Everton Sotto Tibiriçá Rosa é professor de Economia da Universidade Federal de Goiás (FACE-UFG) e doutorando em Teoria Econômica pelo Instituto de Economia da Unicamp.

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