Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Imagine você que na quarta-feira passada eu me encontrava no café da
Câmara de Deputados, quando apareceu um dos líderes do PSDB, conhecido de várias
entrevistas e conversas civilizadas. Ao reparar que eu tinha um livro aberto,
perguntou do que se tratava. Mostrei: era a edição, em espanhol, de “O Fascismo
e a marcha sobre Roma” reportagem histórica de Emilio Gentile sobre o assalto ao
poder comandado por Benito Mussolini, em 1922, na Itália.
Comentando o que se passava fora do Congresso, onde se fazia uma
concentração com barracas de acampamento e faixas que pediam ” intervenção
militar,” “extinção do PT já,” e outras afirmações de óbvia inspiração fascista,
comentei:”É para ajudar a entender o que está passando lá fora.” Meu
interlocutor, cujo nome será preservado porque não se tratava de uma conversa
para ser publicada, me corrigiu em tom benevolente:
— Não é nada disso.
Os fascistas são uns poucos, que deveriam se juntar com o Jair Bolsonaro e
formar um partido de extrema-direita. Mas a maioria dessas pessoas não são nada
disso. São democratas, inconformados com a corrupção e os desmandos da turma do
PT.
A conversa prosseguiu mais um pouco, incluiu com algumas provocações
de parte a parte, mas o essencial está aí. Voltei a minhas leituras. Já me
encontrava nas páginas finais da narrativa sobre a ascensão de Mussolini,
naquele trecho da história em que a marcha dos fascistas sobre a capital
italiana se transformou no golpe de Estado mais pacífico da história europeia,
sem enfrentar resistência alguma.
O aspecto mais instrutivo da obra de
Emílio Gentile é que ele descreve, detalhadamente, a paralisia das autoridades
que tinham o dever legal e político de defender a Constituição italiana e os
direitos democráticos da população, inclusive de escolher governos através do
voto. Um gabinete que unia liberais e conservadores assistiu à ação das
esquadras fascistas pelo país inteiro - invadiam prefeituras, fechavam jornais,
atacavam quartéis para pegar armas, feriam e assassinavam - sem mover um
músculo. Conforme o autor, os comandantes militares tinham disposição de
resistir ao fascismo, possuindo instrumentos e homens para isso. Mas a ordem,
que deveria partir do poder civil, não veio.
Horas antes da chegada do
próprio Mussolini a Roma, os principais ministros conseguiram imaginar que tudo
estava tão tranquilo que recolheram-se a seus aposentos e foram dormir -
acredite!
Apenas numa reunião de emergência, alta madrugada, decidiu-se,
enfim, convocar o Estado de Sítio, que na pior das hipóteses poderia ter ajudado
a retardar a escalada fascista. Mas cabia ao Rei, Vitório Emanuel III, decretar
a medida. Quando Sua Majestade, enfim, foi encontrada, ocorreu a cena decisiva.
O Rei não apenas se recusou a assinar o Estado de Sítio, como demitiu o
ministério e chamou o próprio Benito Mussolini a formar o novo governo, dando
início, assim, a uma ditadura que durou 20 anos.
Sabemos que a paralisia
daqueles governantes que tinham a responsabilidade legal de preservar o regime
democrático obedecia a considerações variadas. A principal dizia respeito a
definição de quem era seus verdadeiros adversários políticos e quem poderiam ser
seus aliados. Quatro anos antes, o Partido Socialista - muito mais à esquerda do
que se tornaria com o passar dos anos - havia se tornado a maior força do
parlamento italiano. Ao mesmo tempo, a mobilização de operários ganhou força nos
centros industriais do país, onde se formaram conselhos de trabalhadores. O
exemplo da Revolução Russa de 1917 estava em muitas mentes - para temer ou
admirar.
“Muitos temiam que a ação da força legítima do Estado contra a força
ilegal do fascismo pudesse provocar um banho de sangue” que terminaria por
fortalecer a esquerda socialista e comunista, escreve Gentile.
A visão da
esquerda como adversária principal a ser vencida de qualquer maneira contribuía
enormemente para que muitos ministros já sonhassem em chamar Mussolini para
integrar o ministério, oferta que ele sempre recusou, deixando claro que não
pretendia ser coadjuvante num governo de base parlamentar.
Ex-diretor do Avanti, jornal socialista de tendências revolucionárias,
Mussolini tinha aquela postura problemática de quem passou por uma mudança
radical nas próprias convicções. Manifestava um ódio profundo pelos partidos de
esquerda, como se quisesse dizer que ele, e apenas ele, fora um "verdadeiro"
socialista em seu devido tempo, enquanto seus adversários de hoje não passavam
de farsantes. (Acho que todos nós já vimos esse comportamento em nossa paisagem,
não é mesmo?).
Mussolini também não escondia que sentia “asco, muito asco,” pelo jogo
parlamentar. Mesmo assim, fazia o possível para apresentar-se com um perfil
político moderado, necessário para abrir as portas dos salões do capitalismo
italiano. Ao mesmo tempo, estimulava atos violentos e criminosos contra
lideranças de trabalhadores e do movimento popular, cultivando uma ambiguidade
de aparências, que ajudava a convencer quem queria queria ser convencido mas
tinha um certo pudor de assumir isso abertamente.
O tempo mostrou que a postura política em relação a comunistas e
socialistas contribuiu para o embelezamento do fascismo, enfraqueceu toda
possível visão crítica e diminuiu todo esforço que poderia impedir sua ascensão
ao poder - inclusive na reta final, quando as milícias passaram a atacar com
violência e ameaças militantes católicos e liberais que recusavam a liderança
dos camisas negras.
Poucas leituras podem ser instrutivas, sobre a época,
como os registros de elogios e avaliações positivas sobre Mussolini e seus
aliados. “Estamos assistindo a uma bela revolução de jovens. Nenhum perigo,”
escreveu o embaixador dos Estados Unidos numa carta familiar. Sempre lembrando
os méritos do fascismo pela derrota do socialismo e comunismo a revista L ‘
Illustrazione Italiana, leitura preferida da elite do país, também elogiava um
governo jovem (“sem barbas grisalhas”) e profetizava: “nunca um governo teve
possibilidades tão grandes (de sucesso) como o de Benito Mussolini”, escreveu a
revista, torcendo ainda para que o ele “saneasse a Itália” do ódio
político.
A ilusão durou pouco mas se desfez quando era tarde. Avaliando,
meses mais tarde, o estado ditatorial que se esboçava, meses mais tarde o
Corriere della Sera publicou um artigo no qual fazia uma constatação dolorosa: a
grande massa dos italianos, incluída “a totalidade de sua classe
dirigente,”havia demonstrado “ser capaz de perder todas as suas liberdades civis
sem protestar.” Assinado por Giuseppe Prezzolini, o texto dizia: “Somos todos um
pouco culpados de termos nos iludido de que as liberdades eram um fato
consumado, que não se poderia perder; e descuidamos, deixando que alguém
começasse a pisoteá-las.” Sem mencionar o nome de Mussolini, o que poderia
revelar-se perigoso, o artigo conclui: “e esse tal indivíduo terminou por
defenestrá-las.”
Juro que seguia na leitura do mesmo livro, comprado numa
viagem recente a Buenos Aires, quando ocorreu aquela cena inacreditável de sexta
feira, no Congresso Nacional. Um bando de fascistas atacou - com empurrões,
gritos, e vários atos de provocação - um grupo de parlamentares do PT que
convocava uma coletiva para fazer uma denúncia grave: a segunda votação sobre
financiamentos de campanha políticas foi um ato juridicamente nulo, pois violou
o artigo 60 da Constituição Federal, que estabelece regras claras para se votar
um projeto de emenda constitucional.
Isso aconteceu no Salão Verde do
Congresso, endereço de tantos atos de resistência democrática durante o regime.
No dia seguinte, fiquei sabendo da história do empresário ameaçado durante um
voo Brasilia-São Paulo porque lia a Carta Capital.
Quarenta e oito horas
antes, naquela conversa no café da Câmara, um parlamentar do PSDB tentava me
convencer, explicava, em tom benevolente, que não havia motivos de preocupação
com ameaças fascistas.
Postado por Miro
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