quarta-feira, 16 de março de 2016

Paulo Kliass: Europa reduz juros a 0%. E Nós?


Por que os países do centro do capitalismo podem romper com os pressupostos do conservadorismo e nós temos de permanecer mergulhados na recessão?

Por Paulo Kliass*


  
A cada momento que passa, o Brasil afunda cada vez mais na armadilha desastrosa imposta pela adoção da lógica do superávit primário a qualquer custo. No entanto, ao mesmo tempo em que cumprimos essa lição de casa perversa, um conjunto de países do chamado mundo desenvolvido trilham por outro caminho. É realmente muito esquizofrênico que esses governantes - aqueles mesmos que nossos liberalóides de plantão estimam como “sérios e responsáveis” na condução da política econômica – façam tais opções, que por aqui seriam imediatamente carimbadas pelos “especialistas” como sendo bolivarianismo, populismo e outros ismos de praxe.

A primeira fase de abandono não-dito e não-explícito dos dogmas do neoliberalismo por parte de governos do centro do capitalismo aconteceu logo depois da eclosão da crise econômico-financeira, que teve início nos Estados Unidos entre 2008 e 2009. O recuo envergonhado em relação aos preceitos fundadores da longa noite de exercício da hegemonia absoluta do Consenso de Washington deu-se em função de um pragmatismo realista, cujo intuito primeiro era salvar o regime de uma verdadeira “débâcle”. Os riscos de uma derrocada geral do sistema econômico norte-americano e de seus efeitos sobre o conjunto do capitalismo financeiro internacional trouxeram o realismo ao centro da agenda dos tomadores de decisão: às favas com os princípios!

Se necessário for, converterêmo-nos todos à heterodoxia! O essencial era evitar que os efeitos em onda do epicentro da crise provocassem um colapso do próprio sistema. E assim foi feito, com a mudança de opinião de boa parte dos formuladores de política econômica, dos professores e pesquisadores nas universidades e até mesmo nos espaços de decisão dos organismos multilaterais. Com isso, instituições como Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, passaram a assumir publicamente posições opostas às que sempre haviam defendido até então.

EUA: do principismo ao pragmatismo.

O rompimento com as postulações do “mainstream” incluía a aceitação de medidas que fariam arrepiar os cabelos de qualquer articulista simpático ao financismo. Foi o caso da intervenção do Estado para salvar as instituições financeiras ameaçadas de falência. Foi o caso da formulação de políticas públicas protecionistas, como o “buy american act”, para proteger as empresas e os empregos norte-americanos. Foi o caso da incorporação passiva, no rol de políticas públicas anticíclicas, de medidas consideradas keynesianas, de estímulo público à retomada do crescimento econômico. O liberalismo de discurso foi atropelado pelo intervencionismo realista.

Na sequência, o Banco Central dos EUA iniciou uma política de redução drástica de suas taxas de juros, também com a intenção de fomentar as atividades da economia naquele país. Além disso, o FED apresentou uma inovação em termos de política monetária, com a adoção do mecanismo que ficou conhecido como “quantitative easing”. Tratava-se de uma intervenção explícita do poder de Estado no mercado bancário e de crédito, com o reconhecimento objetivo de que apenas o “livre jogo das forças de oferta e demanda” não lograria encontrar um equilíbrio de estabilização. No caso, o governo lançava recursos monetários a custo zero na economia, com o objetivo de estimular os investimentos e a retomada do crescimento de forma geral.

Europa: da inércia à taxa de 0%.

Ocorre que do outro lado do Atlântico, a reação das instituições econômicas e monetárias da União Europeia não foi de mesma natureza. A postura da chamada “troika” foi mais de maior lealdade aos fundamentos doutrinários do conservadorismo e da ortodoxia. Assim, Banco Central Europeu (BCE), a Comissão Europeia (CE) e o FMI mantiveram uma abordagem de crença incondicional nos modelos pré-crise de 2009. Estão aí os testemunhos de dramas vividos por Irlanda, Espanha, Portugal e Grécia, entre outros países da região. A intransigência dos dirigentes de Bruxelas em flexibilizar as alternativas na busca de soluções não contribuiu para o necessário salto à frente.

No entanto, passado esse período de fracasso das medidas baseadas em pressupostos recessivos e favoráveis apenas aos ganhos do financismo, pouco a pouco o próprio BCE iniciou um movimento em direção a uma espécie de relaxamento de sua política monetária. As taxas de juros de referência da instituição foram sendo reduzidas e mecanismos semelhantes ao “quantitative easing” ianque também foram paulatinamente adotadas para o espaço europeu.

Na semana passada, finalmente, veio uma decisão que apresenta um caráter simbólico que não pode ser menosprezado. Na verdade, o anúncio foi uma espécie de coroamento de uma tendência já em movimento. Ao longo dos últimos anos, o Conselho de Governadores do BCE veio adotando uma política de redução da taxa referencial de juros. Assim, ela saiu de 4,25% em setembro de 2008, chegou a 1% em maio de 2009 e foi oscilando de forma paulatina até atingir 0,05% em setembro de 2014.

Em 10 de março passado o banco comunica que sua taxa principal taxa de referência cai ainda mais um pouco e torna-se zero. Outras taxas também anunciadas em queda conformam um conjunto de mecanismos de política monetária destinados a promover a expansão do crédito e a penalizar as instituições financeiras que não aplicarem seus recursos em empréstimos. Os bancos que retiverem seus depósitos em caixa perderão, pois a rentabilidade desses recursos será negativa. A orientação é ampliar os recursos para crédito em geral.

Jabuticaba: juros na estratosfera.

Ora, frente a um quadro como esse, a pergunta que não quer calar é meio instantânea. Por que os países do centro do capitalismo desenvolvido podem romper com os pressupostos do conservadorismo na política monetária e nós temos de permanecer mergulhados na longa noite do equívoco e da recessão?

É óbvio que não se trata aqui de sugerir que voltemos a copiar modelos ou importar soluções. Inclusive porque ao longo das últimas décadas essa prática de seguir as recomendações do FMI e seus congêneres só nos trouxe problemas. A realidade econômica dos EUA e da Europa são bastante distintas da nossa, assim como as determinações de política econômica. O importante a reter é que existe espaço para tornar mais flexível e mais apropriada a política monetária, sempre de uma perspectiva de retomada do desenvolvimento econômico e social em nosso País.

Ao longo dos últimos 3 anos, o BCE reduziu a sua taxa de 0,5% para 0%. Nesse mesmo período, o nosso COPOM aumentou a SELIC de 7,25% para 14,25%. É claro que as taxas de inflação nos dois espaços são muito distantes. No espaço europeu, o ritmo de crescimento dos preços está quase zerado, com risco mesmo de deflação. No caso brasileiro, temos assistido ao crescimento dos índices de inflação em níveis bem superiores à meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional.

Abaixo a SELIC.

Assim, ainda que não haja efetivamente espaço para uma política monetária com taxa oficial igualmente zerada em nossas terras, o que se pode depreender dos caminhos adotados por norte-americanos e europeus é que a política monetária deve ser adaptada a realidades específicas e a objetivos determinados.

A insistência cega e obstinada em manter a SELIC em patamares estratosféricos já era equivocada antes da recessão se apresentar com toda sua força. A partir da confirmação oferecida pelas estatísticas de que mergulhávamos mesmo na zona de redução do PIB, aí então é que a manutenção de tal política revela-se burrice. Afinal, é dessa maneira que a sabedoria popular qualifica a insistência em permanecer no erro.

Se o BCE zerou sua taxa, já passou da hora de reduzirmos drasticamente a SELIC. E nada de perfumaria de reduzir apenas em 0,25% ou 0,5%, com toda aquela fraseologia financista no relatório divulgado à imprensa. Aguardar passivamente até 27 de abril, data da próxima reunião do COPOM, talvez seja muito tarde. O comando do Planalto deveria convocar uma sessão extraordinária do Comitê, com a missão de anunciar uma redução substantiva da SELIC.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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