sábado, 26 de março de 2016

Urariano Mota: Os comunistas anônimos do Recife


Vejo na internet que o Partido Comunista do Brasil nasceu em 25 de março de 1922. Pesquiso mais e descubro que esse dia caiu num sábado. Então podemos até dizer que foi hoje. 

Por Urariano Mota


Imagem alusiva os 94 anos do PCdoBImagem alusiva os 94 anos do PCdoB
O certo é que dirigentes, representantes de 73 militantes de associações políticas de trabalhadores, fundaram o partido: Astrojildo Pereira (jornalista), Cristiano Cordeiro (advogado), Joaquim Barbosa (alfaiate), Manuel Cendón (alfaiate), João da Costa Pimenta (gráfico), Luís Pérez (vassoureiro), Hemogêneo Fernandes da Silva (eletricista), Abílio Nequete (barbeiro) e José Elias da Silva (pedreiro). 

Sobre Cristiano Cordeiro, é ótimo lembrar um ato no Teatro de Santa Isabel, documentado por vias indiretas na música popular. Em 1933, Cristiano Cordeiro lançou no palco do teatro a chapa “Trabalhador, ocupa teu posto”, que depois serviu de inspiração para o compositor Nelson Ferreira compor o frevo “Coração, ocupa o teu posto”. Um sucesso, cantado até hoje. Mas prefiro falar, ainda que brevíssimo, da matéria mais perto de mim, do meu chão. Falar de quem muitas vezes é tido como de nível ao rés do chão. 

É inesquecível para mim Ivo, dono de um boxe que ficava à esquerda da entrada do Mercado Público de Água Fria. Ele estudava economia, era leitor de Celso Furtado. Foi Ivo quem me apresentou a Bira, o primeiro comunista que eu soube ser comunista em Água Fria. Bira me falou das teorias de Darwin, enquanto eu lhe repetia a fé em Deus, ainda que eu próprio não possuísse tanta fé quanto gostaria. Antes de Bira, Ivo foi a primeira pessoa de esquerda que conheci na adolescência a se declarar assim em fenomenais discussões. Escrevo agora e noto que o reino da cultura é a pátria da comunhão de toda a gente. Num clima de feroz repressão, de caça aos comunistas, Ivo discutia as luzes do socialismo com um menino magro, leitor de Seleções. Havia uma base de confiança entre nós, porque eu buscava uma razão para viver no mundo, não a encontrava, e o meu amigo Ivo afirmava ter o caminho para resolver toda a minha falta de um norte.

Existe ainda um outro comunista anônimo, de quem só vim saber da ideologia muitos anos adiante. A gente nem imaginava, mas ali perto do Mercado, na Rua Japaranduba, havia um comunista organizado, dirigente de célula, um homem que por si só, para quem não o conheceu, parece hoje mais um personagem de fábula. Um homem de história fantástica. Era seu Luiz, o barbeiro. Luiz Beltrão falava inglês, estudava filosofia, tanto na universidade quanto fora dela, em 1960. Um barbeiro professor de filosofia não seria mais próprio de uma história de Andersen? A gente nem se dava conta, mas o mundo da fantasia era parte da realidade dos nossos dias. E por isso o maravilhoso nos tomava como se fosse a coisa mais natural e elementar. Na barbearia de seu Luiz os moleques, os maloqueiros como eram tidos os jovens sem eira nem beira, sabemos hoje, os desocupados podiam entrar e ler à vontade os jornais e as reportagens da revista O Cruzeiro. Como se clientes fossem, todos os dias, todas as manhãs, abusando do ponto comercial, sem qualquer pagamento. Não sabíamos, aquilo era uma liberdade aberta por um comunista, barbeiro e filósofo. 

Sei, hoje, que os anônimos são tão importantes quanto qualquer celebridade na história. “Depende, se estiverem organizados na luta” poderia me responder o filósofo Luiz na barbearia. Então eu conserto: 

- Os comunistas fazem a pátria onde os ninguéns se tornam alguém. 
Agora, sim, acho que o barbeiro Luiz Beltrão iria gostar desta lembrança.


Fonte: Diário de Pernambuco 

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