Umberto Martins *
Marx já dizia que a força de trabalho é transformada com naturalidade em mercadoria sob o capitalismo. O trabalhador livre, mas despojado de meios de produção - fruto de um longo processo de evolução histórica que na Inglaterra incluiu a expropriação da pequena propriedade no campo e a ruína do artesão na cidade -, é uma pré-condição do capitalismo.
Para sobreviver, visto que já não pode produzir os próprios meios de vida, ele é forçado a se dirigir ao mercado e vender ou alugar sua força de trabalho como mercadoria por um determinado preço, que igualmente oscila segundo a lei da oferta e procura e, no caso, a luta de classes.
Assim, por força das relações de produção que são próprias do sistema, a mão de obra humana vira mercadoria, embora uma mercadoria especial, que possui o misterioso dom de produzir um valor excedente em relação ao seu custo para o capitalista, que inclui os salários, benefícios e encargos. Marx denominou este excedente de mais-valia, “o roubo de tempo de trabalho alheio” que ainda hoje constitui a “base miserável do modo de produção burguês”. É a substância do lucro.
Não é nada agradável a ideia de seres humanos transformados em mercadorias, mas é precisamente isto que acontece sob o capitalismo com o assalariado durante o tempo em que este coloca sua força de trabalho à disposição do patrão e se submete à férrea disciplina do capital.
Rei Midas
Trata-se de uma coisificação das relações sociais, conforme notou o pensador alemão. Aliás, a exemplo do Rei Midas que transformava tudo que tocava em ouro, o capitalismo transforma tudo que toca em mercadoria e esta, por sua vez, se transmuta em dinheiro no momento mágico da valorização do capital, movimento que só é frustrado pelas crises. Hoje temos inclusive a saúde, a educação, o transporte e em alguns lugares até a preciosa água, transformadas em mercadorias cujo acesso é interditado aos que não possuem dinheiro suficiente, ou seja, aos pobres que em geral pertencem à classe trabalhadora que produz a riqueza das nações. Os ideólogos e os ociosos do capital dão a tudo isto o nome de “progresso”, “modernização” e outras palavras enganosas. Se puderem privatizam e transformam em mercadoria até o ar que respiramos.
Com a terceirização a condição de mercadoria da força de trabalho fica mais escancarada e escandalosa, pois neste caso entre o patrão principal e o assalariado interpõe-se a figura do intermediário, outro patrão, popularmente conhecido como gato, dono das gatas, as empresas de intermediação da mão de obra, em geral inescrupulosas com o trabalhador. É este capitalista que primeiro compra e depois vende a mercadoria força de trabalho a outro capitalista. Como todo bom comerciante ele também quer extrair um lucro nesta operação de compra e venda.
Mais exploração
Em consequência, por definição a terceirização significa elevação do grau de exploração dos trabalhadores e trabalhadoras, que durante a jornada de trabalho têm de produzir um valor equivalente ao próprio salário e benefícios mais os lucros apropriados por dois patrões, o gato e o capitalista da empresa contratante. Ou seja, temos agora um caso de mais-valia dobrada ou dupla exploração dos trabalhadores e trabalhadoras. A consequência macroeconômica do PL 4330 será a piora daquilo que os economistas caracterizam de distribuição funcional da renda, que se dá fundamentalmente entre capital e trabalho; haverá uma transferência substancial da renda apropriada pela classe trabalhadora para o capital via arrocho de salários e redução de direitos.
Pesquisas com terceirizados (em torno de 13 milhões no país) indicam que, em média, eles ganham em torno de 30% menos do que o empregado contratado diretamente pelas empresas, mas as desvantagens não ficam nisto. Também não recebem os mesmos benefícios, sofrem acidentes de trabalho com mais frequência, não têm segurança jurídica, ficando mais expostos a fraudes em relação aos direitos trabalhistas e são miseravelmente discriminados nos locais de trabalho. É a exacerbação da escravidão assalariada.
Interesses antagônicos
A subcontratação tão desejada pelos empresários significa redução de custo e aumento dos lucros para a burguesia, de um lado, e diminuição dos salários e direitos da classe trabalhadora, do outro. Ou seja, nada mais é do que uma forma perversa de elevar o grau de exploração do trabalho pelo capital e não é por acaso que tal expediente ganha força na história e se expande precisamente quando o neoliberalismo se torna a ideologia hegemônica da burguesia e seus governos. Terceirização e neoliberalismo são irmãos siameses.
De todo modo, a batalha que está sendo travada em torno do tema, numa arena francamente hostil aos interesses do povo brasileiro, tem o mérito de explicitar a natureza da luta de classes que permeia as pelejas políticas em curso no país e evidenciar o caráter antagônico dos interesses que guiam os seus dois principais protagonistas: a burguesia (ou a classe dos capitalistas) e a classe trabalhadora.
Podemos perceber no caso presente várias das categorias analíticas do marxismo usadas por Vinicius de Moraes na poesia “Operário em construção”: a exploração da força de trabalho pelo capital (mais-valia), a banalização e coisificação das relações de trabalho e do ser humano trabalhador, a tentação do dinheiro que atrai os traidores, a mentira patronal servida pela mídia, a alienação do trabalho no capitalismo, a consciência de classe e veremos também a revolta da classe trabalhadora quando o operário em construção adquirir, finalmente, a consciência de classe e responder aos acenos enganosos do capitalista com um sonoro não.
O silêncio partidário da mídia burguesa é tão eloquente quanto as mentiras sacadas pelo presidente da Fiesp na propaganda que pagou (a peso de ouro) e veiculou na televisão para enganar o povo
Traição
A mentira, que massificada transforma-se em “verdade” (conforme sugere o marketing nazista), é arma recorrente dos capitalistas na defesa dos interesses mesquinhos que têm de eludir para ludibriar os incautos. Possuem poderosos meios para iludir e imprimir na sociedade uma falsa consciência, a hegemonia da ideologia burguesa. A realidade mostra a verdade e atualidade contidas na opinião de Marx e Engels, explicitada em A Ideologia Alemã, de que a ideologia dominante na sociedade é a ideologia da classe dominante.
Seja lá como for, trata-se de velhos e conhecidos inimigos do povo. Imperdoável é a traição perpetrada por falsos representantes da classe trabalhadora a troco sabe-se lá de quê (podemos imaginar). Destacou-se nesta triste sina lideranças de proa da Força Sindical, que romperam a unidade das centrais ao mesmo tempo em que ensaiam uma espécie de volta às origens.
É conveniente lembrar que aquela central (outrora apelidada pelos mais críticos de Farsa Sindical) foi fundada em 1991 com dinheiro de multinacionais e grandes capitalistas para dividir o movimento sindical e apoiar o neoliberalismo de FHC, tendo respaldado o projeto de reforma trabalhista que subvertia ou rasgava a CLT ao estabelecer o primado do negociado sobre o legislado nas relações trabalhistas. Desde então, abriga agentes da burguesia travestidos de representantes da classe trabalhadora, embora também conte entre seus membros com lideranças honestas e entidades combativas, sinceramente comprometidas com as bases, que não respaldam a terceirização sem limites embutida no PL 4330 e estão indignados com a capitulação da direção da Força ao patronato.
Luta ideológica
Mas a luta de classes, quando sai do banho-maria e ganha temperaturas mais altas, tem também a virtude de dissipar as ilusões de classe e revelar quem são os verdadeiros amigos e os reais inimigos do povo. A batalha pela consciência da classe trabalhadora, o dilema entre verdade e mentira, entre luz e sombra, dá-se em condições bem adversas para as forças progressistas em função do controle dos grandes meios de comunicação por meia dúzia de famílias capitalistas (inclusive a mais rica do Brasil) e do rio de dinheiro que a burguesia movimenta nesta guerra para mentir (como fazem descaradamente a propaganda da Fiesp e as “notícias” veiculadas na TV Globo sobre terceirização) e comprar consciências. A mídia hegemônica faz ouvidos moucos aos alertas que juízes do trabalho têm feito contra o PL 4330 enquanto dá amplo espaço aos intelectuais orgânicos da burguesia (que obviamente o defendem) quando tratam do tema.
Mas quem dedica a vida à luta contra o capital e o capitalismo, ainda que despojado de meios de comunicação eficientes, tem ao seu lado a vantagem da verdade, que de uma forma ou outra haverá de abrir caminho na história. O grande desafio neste momento é conquistar mentes e corações, é despertar a consciência de classe nas massas trabalhadoras (dezenas de milhões) que em médio prazo vão sofrer as consequências do logro da terceirização generalizada, se prevalecer nesta briga a visão e os interesses da burguesia. É elevar a classe trabalhadora da condição de classe em si a classe para si. Não restam dúvidas de que uma ampla mobilização social pode evitar a tragédia e descortinar novas perspectivas para a nação e o povo brasileiro.
A luta continua!
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