Uma das ideias mais marcantes na memória construída em torno do golpe empresarial-militar de 1964, especialmente disseminada pela produção jornalística dos conglomerados da mídia, é a seguinte: o ex-presidente João Goulart era temido por setores da sociedade (não-dito: altos e médios), assim como por parcelas das Forças Armadas, por "aproximar-se da esquerda".
Trata-se de uma ideia, no mínimo, controversa, mas convencionalmente veiculada e aceita, que acompanha as interpretações correntes sobre o golpe, que ora completa 51 anos (1).
Não apenas na grande mídia, mas também em uma miríade de trabalhos acadêmicos – inclusive produzidos por pesquisadores considerados de esquerda –, vemos acentuada a referida ideia. Deliberadamente ou não, ela, de maneira "semi-ingênua", revela um viés interpretativo que coloca Goulart na condição de um político "oportunista", que buscou se "aproveitar" do cargo e do momento, em que foi pujante a mobilização popular. Nesse sentido, em respeito às memórias brasileira e do ex-presidente, algumas considerações se fazem necessárias:
1. O partido de Jango (Partido Trabalhista Brasileiro – PTB) foi um agrupamento político de esquerda. Um partido não marxista, mas de esquerda. O que não impede em dadas conjunturas, diga-se, guardar um potencial mais radicalizado que um organismo coletivo que expresse uma orientação marxista. Não raro, esta é apropriada pela intelectualidade brasileira de maneira irrefletida e destituída das devidas mediações, em face do caldeirão cultural europeu, que delineou o pensamento de Marx e demais teóricos sob a sua inspiração filosófica. O marxismo não possui o monopólio das esquerdas, em que pesem as amplamente compartilhadas opiniões em contrário. O movimento guerrilheiro e nacionalista, liderado pelo jovem Fidel Castro, em Cuba (1959), tem muito a dizer a respeito.
2. Importantes lideranças do "falecido" PTB e do trabalhismo, de maneira ousada, defenderam temas caros às esquerdas brasileira e latino-americana, tais como: as reformas agrária, urbana, bancária e tributária; a limitação das remessas de lucros do capital estrangeiro; a geração de emprego e a elevação dos salários dos trabalhadores; a dilatação do mercado interno; a nacionalização e a estatização de diversos setores da economia. Isso desde os primórdios do itinerário do partido, fundado em 1945.
Contribuíram na elaboração e na difusão dessas propostas personagens de proa do petebismo, como Getúlio Vargas, Alberto Pasqualini, João Goulart, Leonel Brizola, Sérgio Magalhães, Fernando Ferrari, Almino Afonso, Elói Dutra, Ruy Ramos e tantos outros. Os temas sublinhados alcançaram repercussão no curso do tempo, por conta do crescimento eleitoral do partido, da sua conquista de maior organicidade e de capilaridade entre os trabalhadores, no regime democrático de 1946.
Longe da trivialidade, as propostas em alusão conseguiram ser incluídas na pauta de discussão pública, norteando os debates políticos e econômicos no país, principalmente nos anos 1960, até a ruptura democrática. O PTB defendeu também uma política externa independente dos interesses estadunidenses. No ápice da guerra fria, com Jango na Presidência, reatou as relações diplomáticas e comerciais com a URSS (1962) e posicionou-se abertamente contrário ao embargo a Cuba.
3. João Goulart dialogava sistematicamente com as lideranças sindicais e buscava representar os interesses dos trabalhadores, com bastante evidência desde a sua experiência no Ministério do Trabalho (1953), no governo democrático do presidente Getúlio Vargas. Era saudado por expressivas faixas da classe trabalhadora e por suas entidades sindicais como um respeitado e legítimo representante das suas aspirações.
4. Ao longo da experiência como presidente nacional do PTB, entre 1952 e 1964, João Goulart empenhou-se em estabelecer relações cordiais e alianças entre o seu partido e o proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB), nas esferas sindical e político-eleitoral. Em seu governo à frente da Nação (1961-1964), contou, não sem tensões, com o apoio comunista.
5. O PTB incentivou a participação política da classe trabalhadora, da cidade e do campo. Buscou integrá-la aos processos decisórios do país, bem como preconizou a legitimidade do seu envolvimento na construção da agenda pública. A tensão entre democracia representativa e democracia participativa atravessou o governo Goulart e foi marcante, sobretudo, na atuação de boa parte do seu PTB, que questionava abertamente a legitimidade de um "Congresso reacionário e anti-povo". Em nenhum outro período da história republicana brasileira os estratos trabalhadores alcançaram tamanha participação nos rumos e nas decisões do governo federal. Parafraseando o ex-presidente Luiz Inácio, "nunca antes na história deste país" – e complementando, nem depois –, as classes populares e trabalhadoras estiveram tão próximas do exercício do poder.
Dessa forma, colocadas as coisas nos seus devidos lugares, de forma alguma é adequado alegar que o destituído presidente João Goulart, em seu turbulento governo, se "aproximou da esquerda". Como decorrência, ele não usou artifício "demagógico e populista" para se "aproveitar eleitoralmente das massas", como argumentariam conservadores, liberais e alguns incautos esquerdistas. O ex-presidente Jango constituiu, sim, um dos personagens mais importantes das esquerdas brasileiras. Provavelmente, um dos mais injustiçados.
*Roberto Bitencourt da Silva – doutor em História (UFF), professor da Faeterj-Rio/Faetec e da SME-Rio. Artigo publicado originalmente no Diário Liberdade.
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