quarta-feira, 8 de julho de 2015

Samir Amin: Glória à coragem lúcida do povo grego


Partindo da ideia de que o povo grego dá o exemplo à Europa e ao mundo, o economista marxista saúda a luta vitoriosa no referendo, desmascara a política conservadora e neoliberal da União Europeia e aponta a tendência de retomada da iniciativa pelas forças de esquerda.

Por Samir Amin * 


 
 

Com coragem e lucidez, o povo grego rejeitou o ignóbildiktat da finança internacional e europeia. Ele alcançou uma primeira vitória afirmando que a democracia só existe se sabe colocar-se a serviço do progresso social. Ele desmascarou a farsa democrática que aceita submeter-se à degradação das condições sociais exigida pela ditadura da finança.

O progresso social é ilegal na Europa

A construção europeia foi concebida sistematicamente para reduzir a nada o "perigo democrático". Desde o final da segunda guerra mundial, os Estados Unidos, Jean Monet e Robert Schuman (dois partidários de Vichy) tomaram iniciativas destinadas a restaurar a legitimidade das forças políticas que estavam comprometidas na colaboração com a Europa dos nazistas. A construção das comunidades europeias, depois a adoção forçada de uma Constituição, entretanto rejeitada, entre outros pelo referendo francês (uma negação da democracia sem paralelos), abriram caminho a uma ditadura do capital financeiro. Enganados pela cantilena sistemática do clero midiático a serviço da oligarquia financeira, os povos europeus se alimentaram de ilusões que ainda hoje são suficientemente poderosas para aniquilar sua capacidade de responder ao desafio. É necessário "salvar a Europa e o euro da débâcle", creem eles ainda amplamente (doravante um pouco menos na Grécia e na Espanha). A Europa, tal como ela é, – e não pode ser outra coisa, prisioneira na camisa de força de suas instituições – declarou ilegal toda tentativa de pôr em causa a odiosa ordem vigente. O povo grego, por sua própria escolha, foi colocado fora da lei.

O euro não é viável

O subsistema do euro viola as regras elementares de uma gestão possível e sã da moeda. Ele impõe regras comuns de pretensa "competitividade" a economias muito desiguais para suportar as consequências. O euro permitiu aniquilar os progressos anteriores alcançados no quadro da emergência de sistemas produtivos largamente constituídos de pequenas e médias empresas para abrir um mercado exclusivo às invasões dos monopólios financeiros. A Espanha fornece o exemplo trágico. Outros países, a Finlândia e mesmo a França, são também vítimas. O euro não é outra coisa senão a reedição de uma Europa alemã.

A crise não é da dívida grega, mas de fato a crise da Europa e do euro.

Vergonha para os governos europeus

Vergonha para todos aqueles que aceitaram que a "troika" represente os povos europeus. Vergonha para os governos que instalaram na presidência de "sua Europa" um funcionário de Luxemburgo a serviço de um paraíso fiscal, na direção de seu "banco central" um indivíduo que fez carreira no Goldman Sachs, o banco associado a todas as bandidagens financeiras do século, e na cabeça do FMI uma boa aluna incapaz de compreender outra coisa além do que lhe foi ensinado. Não são homens e mulheres políticos e políticas, seja de que tipo for, mas indivíduos desprezíveis.

A Europa se apresenta à Grécia na figura dos saudosistas do fascismo

A Grécia heroica se libertou por si própria dos fascistas italianos e dos nazistas alemães. A "Europa" interveio então na Grécia sob os uniformes dos oficiais britânicos (seguidos dos estadunidenses) para massacrar os filhos da Resistência e restaurar o poder dos colaboracionistas fascistas. A reconquista da democracia pela vitória eleitoral do Pasok em 1981 permitiu realizações sociais incontestáveis ; mas também abriu caminho às ilusões "europeistas"; o povo grego encontra-se uma vez mais diante da Europa real dominada pelas oligarquias financeiras. Ele encontra então a lembrança de seu passado e da dívida que a Alemanha herdeira da dos nazistas ainda não lhe pagou. Vergonha para madame Merkel, cujo governo ignora que o povo grego tem direito a reparações.

O Estado grego deve ser reformado no espírito democrático

Sim, o Estado grego sofre de sérias deformações, que se traduzem, entre outras coisas, pela fraude fiscal. Mas quem pode empreender as reformas necessárias? Certamente, não são os "amigos da Europa". Estes mesmos que enganaram sobre a dívida grega quando de sua adesão ao euro, com a cumplicidade ativa do Goldman Sachs, cujo servidor não é outro senão o presidente do Banco Central de Frankfurt. Os armadores gregos? Os mentirosos que sempre se beneficiaram de atentos cuidados dos bancos internacionais e do FMI? O Syriza é o único governo grego capaz de reformar o Estado num espírito democrático e de fazer com que os ricos paguem. Horror para a Europa que não tolera esta escolha: segundo ela, somente os pobres devem pagar !

A luta continua

A Europa dos bilionários da finança não quer renunciar a seu objetivo: massacrar o povo grego para dar-lhe uma lição e evitar o contágio democrático. Não esqueçamos que se as classes dirigentes da Europa ocidental e central não têm (ainda) necessidade do fascismo em seus países, não hesitam em apelar em seu socorro em outros países, como se viu na Ucrânia.

Os povos europeus devem assumir as suas responsabilidades. Com o Podemos, o povo espanhol deu outro sinal de despertar. Os franceses, os alemães, os britânicos e os demais povos do continente europeu, devem compreender que o combate do povo grego é também seu.

Doravante, a alternativa é clara e visível, para a Grécia e para todos os que, na Europa e no mundo, nutrem as mesmas aspirações democráticas e sociais. É necessário desobedecer à pretensa "constituição" europeia; é preciso desmantelar o euro e o substituir pela gestão negociada de uma cesta de divisas nacionais; reenviar Draghi a seus patrões novaiorquinos esperando fechar o falso Banco Central de Frankfurt; é preciso ainda afastar do caminho o FMI, dando consistência a arranjos financeiros fora do seu alcance, como o Grupo de Xangai e a Alba já começaram a tomar a iniciativa.

Com quem conduzir essas lutas? A gama de forças políticas que começam a compreender que a austeridade (para os trabalhadores, não para as oligarquias) e a estagnação regressiva que a acompanha obrigatoriamente não têm futuro, se amplia a cada dia, para incluir doravante políticos de todos os tipos, como François Fillon na França. A Grã-Bretanha não confia mais nessa Europa fechada na mediocridade, mesmo se a Inglaterra continua neoliberal, mais atlantista e menos europeia do que nunca. Certamente, o posicionamento de aparência de algumas formações de extrema direita permanece, para mim, suspeito. Os fascistas são demagogos mentirosos por excelência.

Nesta situação, corresponde às forças de esquerda potencialmente radical retomar a iniciativa, com o Syriza e o Podemos que iniciaram o movimento. Caso conrário, a Europa não evitará a implosão e se precipitará no caos.

* Samir Amin é economista marxista, com vasta obra publicada em diversos idiomas, inclusive em Portiguês. É diretor do Fórum do Terceirto Mundo, com sede em Dacar, Senegal





Traduzido do Francês por José Reinaldo Carvalho, para o Blog da Resistência  

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