23/12/2014
Venho de uma família judia cevada nas ideias socialistas e no ateísmo há
quatro gerações.
O último da minha linhagem a acreditar em Deus deve ter morrido no
início do século passado.
Para mim, o Natal é uma data sem qualquer significado especial, ainda
que tenha aprendido a respeitar aqueles que celebram nascimento de Jesus.
Mas quero aproveitar esta véspera natalina para uma confissão.
Há ano e meio escrevi, para o Opera Mundi, artigo dos mais furados de minha vida
jornalística. O título diz tudo, basta clicar para ter acesso ao texto: “Papa
Francisco é a contrarrevolução moderna”.
Eu sei que não é costume muito apreciado na minha profissão o
reconhecimento dos erros.
Pertencemos, afinal, àquele grupo de carreiras no qual a credibilidade
depende de acerto nas informações e previsões.
Quando se mete o pé na jaca, normalmente a saída é espremer a realidade
na camisa de força dos textos que escrevemos.
Ou deixar o tempo passar, torcendo para que os leitores se esqueçam das
barbaridades cometidas.
No limite, concede-se um “erramos” sem muita visibilidade, para fazer
constar.
O equívoco, porém, foi tão estapafúrdio que seria
vergonhoso não admiti-lo de público.
Não porque vá fazer diferença para alguém. Apenas pelo desejo
de ficar em paz com minha consciência.
A síntese da análise escabrosa está no parágrafo abaixo, no qual
comentava o pensamento do novo pontífice, então recém-eleito:
“Não há qualquer diferença de abordagem…daquela pregada por João Paulo
II e Bento XVI. Continuam de pé os mesmo dogmas: a centralidade da fé religiosa
sobre os problemas políticos e sociais, o combate irascível contra o direito
das mulheres à interrupção da gravidez e a afirmação da heterossexualidade como
única relação erótico-afetiva possível.”
Querem mais?
“Despida de ritos aristocráticos e confrontando a antiga cúria corrupta,
a Igreja Católica apresenta-se com uma face nova, capaz de cativar o mundo para
as mesmas ideias de sempre.”
Ou ainda…
“O estilo de Francisco…traz jovialidade, simpatia e humildade à linguagem
carcomida de seus antecessores. Apesar de refutar qualquer alteração ao
conjunto de decisões que tiraram correntes católicas do apoio às batalhas
populares, sua oratória a favor dos pobres rejuvenesce o Vaticano.”
Para arrematar assim:
“A direita encontra, nesta renovação, bom motivo para entusiasmo. Um
papa fortalecido e celebrado é instrumento notável para qualquer estratégia de
redução da influência de esquerda nas camadas de menor renda, especialmente na
América Latina.”
Desde então, o papa Francisco desmentiu praticamente todas
estas arrogantes previsões.
Além de enfrentar a corte vaticana e seus interesses, se lançou em
cruzada para levar o catolicismo de volta ao convívio com os movimentos
populares, abraçando sua causa.
Luta para reformar o discurso da Igreja sobre direitos civis, incluindo
temas outrora proibidos, como o acolhimento da diversidade sexual e a defesa da
saúde feminina frente aos dogmas religiosos.
Estendeu sua mão para a esquerda latino-americana, apoiando experiências
progressistas e desautorizando o vínculo de organizações católicas às
conspirações conservadoras.
Como se não bastasse, o papa
Francisco foi decisivo nas tratativas que levaram os Estados Unidos a reatar relações diplomáticas com Cuba,
mais de cinquenta anos depois da ruptura.
Paguei o mico de compará-lo a seus antecessores, patriarcas da reação
ultramontana que se instalou na Igreja desde os anos oitenta.
A comparação pertinente, no entanto, seria com a era de João XXIII, que
liderou reforma da instituição nos anos sessenta e abriu espaço para a Teologia
da Libertação.
O papa argentino, aliás, pode ter menos força que o chefe do Concílio
Vaticano II, mas seu programa é mais profundo e herético.
Demorei a lhe dar ouvidos. Aos poucos, contudo, fui me dando conta que
havia sido contaminado por preconceitos e desvarios.
Vivendo e aprendendo.
Não sei se será vitorioso, pois as correntes retrógradas parecem ainda
possuir imensas fortalezas.
O que importa, contudo, é que a Missa do Galo será rezada esta noite,
pelo segundo ano consecutivo, por um papa que tem revelado compromisso com os
pobres e as mudanças.
Quanto a mim, se cristão fosse, caberia alguma penitência
pelas conclusões açodadas de 2013.
A vantagem dos ateus é que basta a autocrítica.
Breno Altman é diretor editorial do
site Opera Mundi.
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