O pleito e a defesa de uma reforma política se ouve, se escreve e se lê, desde o fim da ditadura e a revogação dos regulamentos castristas que coartavam a vida político-eleitoral brasileira. É, ainda hoje, o mote de resistência de comentaristas midiáticos e de comentaristas cultos, de sociólogos e cientistas políticos – e, até, de dirigentes partidários –, à esquerda e à direita.
Por Roberto Amaral*, na Carta Capital
Agência Senado
Todos identificam o mesmo mal (a crise da legitimidade), todos concordam com sua causa (o regime eleitoral brasileiro) e todos se juntam na indicação da saída: a reforma política. E se assim é, por que não se faz essa ‘reforma'? Um, porque não há clareza quanto ao seu conteúdo. Se é unanimidade como tese, transforma-se em pomo de discórdia quando a discussão se objetiva em pontos concretos. Dois, não se fez a reforma principalmente porque não podem fazê-la os beneficiários dos vícios que ela deverá eliminar. É elementar.
A ‘reforma’, como consensualmente colocada, se encerra numa pura, embora não necessariamente simples, reforma eleitoral. Tem-se, portanto, como apartada, questão verdadeiramente cruciante, que é a Reforma do Estado. O regime democrático, nas suas limitações, vai bem, obrigado. Crise após crise e marolas após marolas, e eleições após eleições, segue sem abalos, sem ameaças à sua continuidade o processo democrático representativo retomado em 1984. Ouso mesmo afirmar que o atual regime, considerada sua estabilidade, ouve os aplausos da História. Se a ordem constitucional e democrática de 1946 – esmagada em 1964 pelos tanques após apenas 18 anos de vida –, viveu em sua curta experiência uma sequência de fraturas institucionais, estados de sítio e golpes militares, a democracia de nossos dias se fortalece no seu exercício pleno, sem crises institucionais, sem ameaças mais graves de rupturas, sem aventuras e sem ‘pronunciamentos’ militares.
Não é aí, portanto, que se encontram os problemas, nem é a eles que nos referimos quando tratamos de ‘reforma política’. O objeto, neste caso, é a crise de legitimidade do mandato eleitoral, decorrente da ingerência manipuladora do poder econômico e do poder político, da qual o monopólio empresarial e ideológico dos meios de comunicação de massa é um seu instrumento, certamente o mais difícil de ser enfrentado. A união desses elementos constitui o solvente da soberania popular, na qual, todavia, se arrimam a democracia e a representação.
Este artigo, tratará, exclusivamente, do que chamarei de crise eleitoral resumida num processo eletivo que persistentemente vem afastando o eleitor do eleito, o mandatário do mandante. Outra questão, porém conexa, é a crise agônica dos partidos políticos.
Desde as eleições de 1985, e num crescendo, as campanhas eleitorais vêm sofrendo transformações que terminam por impedir ou dificultar o debate, o diálogo, o confronto de ideias e, principalmente, a participação popular. Estranha democracia... Os militantes são substituídos por ‘cabos’ eleitorais remunerados para dar vivas ou vaias, carregar faixas ou fazer número nas caminhadas de rua. Desapareceram os comícios, as passeatas, as mobilizações de massa. De outra parte, tanto o legislador ordinário quanto o TSE vêm, legislação após legislação, norma após norma, adotando medidas cujo objeto, claro, é reduzir o custo das campanhas eleitorais. E no entanto são elas, a cada pleito, crescentemente e absurdamente mais caras. É que a campanha de rua, feita pelo povo, pelo eleitor, pelo militante, foi transferida para o rádio e para a televisão e entregue aos novos proprietários da política, profissionais na manipulação, chamados de marqueteiros, que transformam a disputa eleitoral em um vídeo-show alienado. Gastam-se fortunas financiadas pelos empreiteiros, que depois cobram o investimento nas licitações governamentais. O marketing político domina a imagem e o discurso léxico, controla o que os candidatos devem dizer e o que não devem dizer, controla os debates, dita perguntas e respostas e escreve seus programas de governo, que de resto ninguém leva a sério.
Os programas de governo não refletem linhas partidárias, mas a sondagens de opinião, e como todos os candidatos têm acesso às sondagens de opinião a diferença entre um programa e outro é a mesma entre seis, e meia dúzia. A campanha mostra-se um teatro de maus atores atados a enredos com os quais nem sempre concordam, mas que precisam recitar, pois o script traduz a estratégia do mago para alterar os indicadores das pesquisas manipuladas. Na campanha eleitoral são postas de lado as direções partidárias, os candidatos se despersonalizam. Enfim, a política é exilada. Ao lado dos programas do horário eleitoral, reinam os ‘debates’ promovidos pelas tevês e organizados de tal sorte que não há possibilidade de debate digno desse nome. Ao fim e ao cabo, vamos à votação.
Esse, o permissivo e pernicioso quadro das campanhas majoritárias.
A ‘reforma’ não é uma questão técnico-legislativa e não é meramente jurídica, pois trata-se, fundamentalmente, de uma questão política. Reformar para quê? Eis a questão, pois há na praça reformas para todos os gostos e ideologias. Há as que visam a reduzir cada vez mais as possibilidades de expressão popular ou de aprofundamento democrático, como as várias propostas que pretendem reduzir a duração das campanhas (em prejuízo do esclarecimento público e em benefício dos candidatos com grande exposição na media) ou que querem introduzir entre nós o voto majoritário para as eleições legislativas, os diversos modelitos de voto distrital, até o distritão do vice-presidente da República e a candidatura avulsa proposta por Marina Silva, que acaba de vez com os partidos, com a fidelidade partidária, com a vida política orgânica.
Pensemos numa reforma que tenha como leme e rumo aumentar a participação popular legítima.
Por força do atual regime, a decisão eleitoral se desloca dos palanques e das ruas para a tevê e o rádio. Nesse quadro, por óbvio, maiores condições de disputa terão aqueles candidatos que dispuserem de maior tempo de rádio e de televisão, e, por óbvio de novo, quanto maior o número de partidos em torno de uma candidatura, maior será o empo de rádio e de televisão. Se assim é, e o é, a engenharia política consiste em adquirir (lamentavelmente o verbo é mesmo este) o maior número possível de alianças partidárias, eufemismo para designar a o aluguel de legendas sem viabilidade eleitoral. Nada de afinidade ideológica – donde coligações esdrúxulas reunindo partidos de direita e de esquerda (e partidos de lado nenhum), oposicionistas e situacionistas.
O remédio está em proibir, em qualquer coligação, seja majoritária seja proporcional, a soma de tempo de rádio e tevê dos diversos partidos. Fecha-se o balcão.
A interferência marqueteira é um embuste, um elemento corruptor, pois seu objetivo explícito é manipular, distorcer a opinião política, violentando a autenticidade do pronunciamento eleitoral. Ademais, eleva assustadoramente os custos das campanhas, donde a captação de recursos venha de onde vier com as consequências sabidas. Por que não começar acabando com essa distorção? Despidos de efeitos mágicos, longe do ‘padrão Globo de televisão’, os programas de rádio e de tevê (tempo pago às emissoras pelos contribuintes, o que o TSE omite em suas ‘chamadas’ e desinforma chamando-o de ‘horário eleitoral gratuito’) passariam a ser o momento da verdade dos candidatos, aquela hora em que, de cara limpa, cada candidato apresenta seus projetos, sua visão de mundo e suas ideias, e não as implantadas pelo marqueteiro, mediante artifícios de linguagem cênica. Assim, e simplesmente com essa medida, já melhoraríamos o conteúdo das campanhas, reduziríamos seus custos hoje astronômicos e, de quebra, determinaríamos a redução das siglas, levando à inanição as siglas-cartório (mais de dois terços das atuais), cuja existência se justifica para alugar seu tempo de rádio e de televisão. Acima de tudo, estaríamos contribuindo para a maior autenticidade do veredito eleitoral, o que já justificaria o ensejo. Medida complementar é proibir, na prestação de contas das campanhas e dos partidos (como hoje é vedada a contratação de ‘artistas’ para os showmícios) o dispêndio com marqueteiros e pesquisas de opinião. E fixação de teto para gastos nas campanhas eleitorais pelos partidos e pelos candidatos.
Mais grave é o sistema das eleições proporcionais, que padece todos esses males e a eles soma suas distorções específicas, como a compra de votos e de ‘colégios’ eleitorais, o assistencialismo quase sempre custeado por verbas subtraídas do serviço público, o amparo nas estruturas governamentais, que vai da sinecura e do empreguismo puro e simples ao lobby remunerado e bem pago, às comissões por verbas e verbinhas, às comissões dos empreiteiros e às doações por ‘dentro’ e por fora’. Bom candidato é o que conta com a simpatia dos meios de comunicação de massa, com apoio econômico privado ou de base corporativa. Até o mármore das escadarias do TSE sabe que quase nenhum candidato tem condições econômicas de financiar suas campanhas.
Não é sem razão que a qualidade ética do Congresso cai a cada legislatura e que a cada eleição recebemos um Congresso cada vez mais conservador. Esse que se instala em fevereiro próximo é paradigmático dessa dupla tendência.
Consequência de tudo isso e de muitas outras coisas, temos, hoje, 32 partidos políticos, 28 dos quais com representação no Congresso, e todos com direito a tempo de televisão.
Ainda relativamente às eleições proporcionais, é fundamental a introdução do sistema de listas preordenadas (fechadas), donde o voto na legenda partidária. Mas essa medida, largamente empregada e de forma vária em grande número de democracias, exige uma prévia reforma do sistema partidário e do processo decisório interno, que carece de práticas democráticas. Nossos partidos, a maior parte deles sem história, refletem, em suas estruturas e em sua vida interna, vale dizer, em sua inorganicidade, a lamentável natureza da sociedade brasileira, um autoritarismo larvar, conquanto anacrônico, que resiste a todo esforço de modernização. Há ainda duas medidas fundamentais. Para o pleito majoritário o fim dessa aberração que é a reeleição tal é praticada entre nós e, com vistas a todas as eleições, sejam majoritárias sejam proporcionais, o financiamento público mediante critério isonômico que ponha todos os candidatos em condições de igualdade de disputa.
Há outras medidas de igual ou maior profundidade democrática para as quais, porém, os liberais e reacionários torcem o nariz arrebitado. Cito: o direito de o eleitor revogar o mandato legislativo ou executivo (que alguns chamam recall); a redução das atuais exigências para o recebimento de propostas legislativas de iniciativa popular e a necessidade de referendo para a vigência de emenda constitucional.
Todas essas são iniciativas que contribuem para a melhoria do sistema, mas não resolvem a crise substantiva, que é a dos partidos políticos, na sua esmagadora maioria sem identidade, todos ou quase todos sem ideologia, sem vida programática mas com ativa existência pragmática... enfim, sem representação social, sobrevivendo burocraticamente graças à correta exigência legal de prévia filiação partidária para a disputa de cargo eletivo. E a ajuda do fundo partidário...
*Roberto Amaral é cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004, fundador e ex-presidente do PSB.
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