Ron Keine parece o típico estadunidense anglo-saxão, o que foge totalmente ao perfil da imensa maioria dos condenados à morte nos Estados Unidos. Isso não impediu que na década de setenta ele fosse condenado à pena capital, da qual só escapou faltando nove dias para a execução, graças ao verdadeiro assassino que resolveu se apresentar à polícia. Nesta emocionante entrevista à jornalista Luiza Bandeira, da BBC, Keine é direto: o sistema nos EUA é corrupto e feito para condenar os pobres. Confira.
Ron Keine tinha 27 anos e viajava de carro com seus amigos pelos Estados Unidos quando foi acusado de assassinato - em um Estado onde havia pena de morte. Durante dois anos, marcou com um x no calendário os dias de vida que restavam.
A nove dias da execução, o verdadeiro assassino confessou o crime. Keine e seus amigos foram soltos em 1976, mas as marcas da condenação permanecem.
O ex-condenado hoje é um dos diretores de uma organização contra a pena de morte. Ele dá palestras, escreve artigos e ajuda os inocentados financeiramente – após a condenação, muitos não conseguem emprego.
Sobre o caso do brasileiro Marco Archer, morto no domingo, na Indonésia, afirma: "É inacreditável e totalmente ridículo matar alguém por trafico de drogas".
Outro brasileiro preso no país, Rodrigo Gularte, deve ser executado em fevereiro.
Leia o depoimento de Keine dado à BBC Brasil por telefone de Michigan, nos Estados Unidos:
"Estava viajando com cinco amigos da Califórnia para Michigan para visitar outros amigos. Em um dos Estados por onde passamos, Novo México, fomos presos por homicídio.
A gente não levou muito a sério, fizemos piada. Então eles nos colocaram na cadeia e pensamos: tudo bem, a qualquer momento, vão descobrir quem fez isso.
A gente acreditava na Justiça. Eu achava que a Justiça não cometia erros. Meu Deus, anos depois eu aprendi: tantos erros são cometidos! Há 160 pessoas que, assim como eu, estavam no corredor da morte e descobriu-se que eram inocentes.
Quatro meses depois, nos levaram a julgamento e nos colocaram no corredor da morte.
Estávamos trancados em celas individuais, num grande corredor. Só saíamos dali se o advogado viesse nos visitar. Não tínhamos direito a exercícios nem a banho. Por dois anos eu não tomei banho. Girava a torneira da pia, sentava debaixo dela e deixava a água cair.
No corredor da morte eu fazia uma coisa horrível. Tinha um calendário na parede e ia colocando um x em cada dia. Fiz um círculo bem grande no dia que eu seria executado.
Todos os dias você acorda e pensa: vou morrer em poucos dias. Dói.
Quando vai chegando mais perto da execução, as pessoas ficam perdidas. Não sabem quem são, o que são. Há relatos de pessoas que foram levadas para o local em que seriam mortas e disseram: deixei minha sobremesa na mesa, vou voltar a tempo de comer? Elas ficam desorientadas, nem sabem que vão morrer.
O problema é que muitas dessas pessoas são inocentes. A gente tinha esperança porque sabíamos que não tínhamos feitos nada. Mas você está lá, tentando provar que é inocente, e ninguém acredita, porque todo mundo fala isso.
Pensávamos: os promotores cometeram um erro e vão descobrir. Mas meses depois descobrimos que eles não tinham cometido um erro: eles nos incriminaram.
Nove dias antes da minha execução, um homem estava andando na rua e disse que Deus falou a seu coração. Ele foi até a igreja mais próxima e confessou que tinha cometido o assassinato. E só foi assim que saímos.
Ele era um policial e, por isso, não foi condenado à morte. Ficou na prisão por sete anos.
A gente quase não conseguiu sair mesmo depois que o cara confessou. A lei americana diz que, se não há novas evidências do crime em um prazo determinado, elas não podem mais ser usadas. Na Virgínia, por exemplo, eram seis semanas. Se depois de seis semanas descobrissem o verdadeiro assassino, você seria executado mesmo assim, porque o prazo havia passado.
E vários juízes não queriam assumir o caso. Eles sabiam que éramos inocentes, mas não queriam nos deixar sair porque isso pegaria mal.
Fomos ao tribunal novamente e o perito que, dois anos antes, havia nos incriminado confessou que nem sequer tinha visto o corpo. Ele confessou que mentiu no nosso julgamento. Disse que o promotor pagou US$ 25 mil para que ele mentisse.
O sistema nos EUA é corrupto. Promotores mentem para matar as pessoas. E se você não tem dinheiro para um bom advogado, você vai morrer. Se você é negro, ou hispânico, não integra júri; se não acredita na pena de morte, não integra o júri. Todas essas leis são contra o pobre.
Sempre que você dá a alguém o poder de matar outra pessoa, ela vai fazer isso. A única forma de acabar com isso é tirar das pessoas o poder de matar. Este poder corrompe.
Atualmente, há mais ou menos uma dezena de países que têm pena de morte. No mundo ocidental, além dos EUA, só Belarus, e eles só tem uma pessoa no corredor da morte.
Há 60 pessoas na Indonésia no corredor da morte, - e por drogas, não pelo crime mais violento, o assassinato. Uma das desculpas que as pessoas dão para a pena de morte é essa: se você mata alguém você deveria morrer.
Mas isso é uma insanidade. Matar uma pessoa por causa disso, como no caso deste brasileiro, é inacreditável e totalmente ridículo.
Mas também há pessoas nos EUA que pegaram prisão perpétua por maconha e, no Estado vizinho, a maconha foi legalizada. Elas ficarão na cadeia pelo resto das vidas e, no Estado vizinho, você pode parar na calçada e fumar maconha.
Voltando a minha história, esses promotores nos incriminaram para inocentar o colega deles, que era policial. Eles chamam isso de cortesia profissional.
Eu não havia feito nada para merecer isso, mas mesmo para aquelas pessoas que cometeram crimes, a pena de morte não faz sentido.
Havia um cara lá que pegou a mulher na cama com outro, atirou e ela morreu. Ele nunca tinha cometido outro crime e não cometeria. Há vários outros casos assim, uma pessoa vai roubar e mata alguém, por exemplo, mas ela não tinha essa intenção.
Dois terços de todas as condenações à morte nos EUA são modificados por outras instâncias, e a principal razão é má conduta dos promotores. Isso significa que o promotor mentiu.
Mas no corredor da morte eu achava que os promotores haviam se enganado. Só quando saí e descobri que eles haviam mentido eu comecei a ficar com muita raiva.
Eu odiava as pessoas que haviam feito aquilo comigo. Durante anos eu deitava na cama e não conseguia dormir de ódio. Muitos anos depois eu conheci uma freira e ela me ensinou a perdoar. Isso foi muito, muito difícil de fazer.
Então, em 1998, chamaram vários de nós para fazer uma apresentação para o governador de Illinois para tentar por fim à pena de morte. E ele acabou mesmo com isso.
Cada um tinha que falar uma frase. A minha era: Eu sou Ron Keine e, se o Estado de Novo México tivesse ido em frente, eu estaria morto hoje.
Cada um de nos levantou e falou essa frase. Foi tocante, havia mais de 70 pessoas.
Depois disso percebi que havia outras pessoas como eu. Na maior parte das vezes as pessoas são inocentadas e ninguém nem fica sabendo delas.
Começamos a conversar e formamos um grupo, Witness of Innocence (Testemunhas da Inocência). Trabalho com eles há mais de dez anos. Viajo e falo sobre a pena de morte. Também escrevo artigos para jornais, revistas etc.
A gente também ajuda os outros membros. Temos um fundo para emergência. Se alguém não tem dinheiro para comida, não pode pagar a conta de luz, mandamos um cheque.
O problema é que, quando você sai do corredor da morte, mesmo sendo inocente, você não consegue emprego. Algumas pessoas ficam presas por 20 anos, elas nem sabem usar um computador.
Se disserem na entrevista de emprego que passaram os últimos 20 anos no corredor da morte, serão expulsos. Estão velhos, não estudaram, não trabalharam. Então às vezes eles não têm nem comida.
Eu amo meu trabalho. Se precisasse, faria de graça."
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