terça-feira, 24 de setembro de 2013

Comissão da Verdade: Batalhas da memória

22 DE SETEMBRO DE 2013 - 6H48 
Alice Melo
Dulce Pandolfi
A historiadora Dulce Pandolfi


A historiadora Dulce Pandolfi arranca aplausos no Festival de História ao falar sobre o depoimento prestado à Comissão da Verdade, em que acusou o Estado brasileiro de culpado pela tortura cruel que sofreu durante a ditadura civil-militar

Por Alice Melo


A memória é um campo de disputa. E de disputas, Dulce Pandolfi, historiadora e professora da Fundação Getúlio Vargas, entende muito bem. Em maio deste ano, duelou consigo mesma para chegar ao texto final do depoimento lido em sessão realizada pela Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. “Sou parte dos arquivos da repressão, fui torturada e presa pelo regime militar”, relatou na tarde desta sexta (20), em debate no Festival de História, em Diamantina (MG). Ela conta que, ao ser convidada pelo evento para falar sobre relações entre história e memória, decidiu preparar um discurso em primeira pessoa, relatando a construção de seu testemunho no presente, tendo em vista que ele se tornaria um documento público para o futuro.

“Eu, como historiadora, trabalho com batalhas da memória e, ao fazer meu depoimento, queria, nessa batalha, derrotar aquela batalha que diz que a tortura existiu apenas como excesso de alguns militares. E queria também ir contra uma posição que me incomoda muito, que é a posição de vítima”, afirma. 

Para evitar se enquadrar neste papel, Pandolfi tomou uma posição ofensiva e acusou o Estado brasileiro como culpado pela tortura que sofreu entre agosto de 1970 e dezembro de 1971. Foi um processo tortuoso.

“Me vi diante de várias armadilhas”, observa. “Já tinha dado vários depoimentos sobre minha tortura. Mas, ali, eu me lembrei de coisas que não tinha me lembrado. As cores, os odores, os sons. Porque nunca trabalhei tanto em um relato, fiquei 15 dias remoendo aquilo. A memória começa a selecionar coisas que nunca tinha trazido”. 

O testemunho da historiadora à Comissão foi aplaudido de pé e teve grande impacto na sociedade, repercutido pela imprensa. Na ocasião, Pandolfi fez pausas, se emocionou. Contou que foi presa e levada para um quartel do Exército brasileiro e fez questão de ressaltar que aquilo não era um “porão da ditadura”, mas uma instituição oficial “que funcionava a todo o vapor”. Lá, foi submetida a diferentes formas de tortura, como “pau de arara”, choques elétricos, afogamento e, certa vez, chegou a ter um jacaré andando por seu corpo nu.

Mas o desprendimento em falar sobre a violência que sofreu é recente. Ao lado da historiadora Heloísa Starling, na sessão do Fhist, Pandolfi lembra da primeira vez em que seu caso veio à tona. Era 1994 e um jornalista a procurou para uma entrevista. “Achei que ele ia fazer uma entrevista sobre 1964 e, quando chegou lá, tive a surpresa e perplexidade que a entrevista era sobre mim”. Em 1992, os arquivos da repressão tinham sido abertos e ela conta que nunca passou pela cabeça fazer uma busca para ver o que a Polícia Política havia registrado sobre ela – e se havia nestes arquivos alguma coisa. “O jornalista queria me pedir autorização para publicar no jornal Estado de S. Paulo um laudo do IML em que se demonstra o meu estado depois da tortura. Aquilo caiu como uma bomba. Como posso deixar publicar uma coisa dessas? E meus filhos? Minha família?”, conta.

A professora diz que precisou de uma semana para pensar e se viu em um dilema ético, já havia sido comunista durante anos de sua vida: como negar à população acesso à informação? No fim das contas, decidiu autorizar e o choque foi tremendo. À época, o assunto ainda era mais silenciado do que hoje.

Esta foi quase a mesma decisão que levou a professora a elaborar, com todo cuidado, seu depoimento à Comissão da Verdade, neste ano. “Foi feito com um sofrimento monumental. Eu me sentia muito responsável, são 40 anos como historiadora e estava falando na Comissão que eu tinha batalhado para que fosse construída”, lembra. E faz questão de reforçar que defende com unhas e dentes a ideia de que a tortura, no Brasil, foi uma política de Estado e não “excessos de alguns militares”, conforme aponta boa parte da historiografia sobre o assunto e também as Forças Armadas. “A tortura foi decidida e arquitetada, dentro dessa estrutura civil-militar, que tomou o Brasil depois de 64”.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional


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