A desigualdade mundial é tão acentuada que até a Cúpula dos
Ricos de Davos, que começou na quarta-feira (22), a citou como uma das grandes
ameaças para a economia global. Um informe da organização humanitária Oxfam
difundido segunda-feira ilustrou essa realidade com uma comparação que revela
os extremos do desequilíbrio social em pleno século XXI.
Por Marcelo Justo, na Carta Maior
Segundo os cálculos da Oxfam, a metade da população mundial
– cerca de 3,5 bilhões de pessoas – ganham, somadas as suas rendas, o mesmo que
as 85 pessoas mais ricas do planeta. Esta aparente confluência no diagnóstico
entre uma ONG que luta contra a pobreza global e o Fórum Econômico Mundial,
organizador de Davos, termina com a identificação do problema.
Em uma pesquisa da empresa de consultoria internacional
PricewaterhouseCoopers, publicada quarta-feira, ficava claro que as mil
multinacionais que financiam o Fórum de Davos defendem que a desregulação e a
redução do déficit fiscal são fundamentais para lidar com os problemas
econômicos globais. No caminho oposto, a Oxfam pretende terminar com os paraísos
fiscais, promover um sistema tributário progressista e salários dignos, todas
soluções rechaçadas pelas multinacionais. A Carta Maior conversou com o chefe
de pesquisa da Oxfam, Ricardo Fuentes-Nieva sobre os desafios de promover uma
maior igualdade em um mundo globalizado.
A Oxfam está participando em Davos e coincidiu com a
avaliação do Fórum Econômico Mundial sobre os perigos colocados pela
desigualdade. Mas as coincidências param por aí, não?
Ricardo Fuentes-Nieva: Em nosso informe nos vimos que em 24
dos 26 países mundiais que têm informações estatísticas dos últimos 30 anos a
desigualdade aumentou. Colocado de outra maneira, sete de cada dez pessoas do
mundo vivem em um lugar mais desigual que há 30 anos. Uma segunda conclusão de
nosso informe é que os ricos têm uma crescente influência nos processos
políticos, o que coloca sérios problemas de legitimidade. Por último, pensamos
que não razões para que essa situação siga sendo assim. É um tema que pode ser
corrigido com políticas públicas concretas.
Precisamente, mas o caminho que vocês apontam é o oposto
daquele promovido em Davos.
Nós acreditamos que deve haver um combate global contra a
evasão fiscal e os paraísos fiscais. O estouro financeiro de 2008 aprofundou a
desigualdade com os programas de austeridade aplicados para solucionar uma
crise que teve sua origem nos mais ricos do mundo e sua especulação financeira.
Os paraísos fiscais foram fundamentais nesta especulação e constituem uma das
chaves do desfinanciamento dos estados porque distorcem a política
governamental. Por um lado, forçam políticas de redução fiscal para os mais
ricos para que não recorram à evasão e à fuga de capital. Por outro, impedem
políticas sociais e econômicas que reduziriam a desigualdade pela queda da
arrecadação fiscal.
Desde a década de 70, a carga tributária diminuiu para os
ricos em 29 dos 30 países onde existem dados disponíveis. Esta é uma política
impulsionada pelo crescente poder político dos ricos e pelo desequilíbrio em
favor das corporações na distribuição dos lucros econômicos entre trabalhadores
e o capital.
O argumento mais citado em favor de salários baixos e
vantagens tributárias é a competitividade das empresas em um mundo globalizado.
Sem questionar a globalização atual, não parece haver solução para o problema
da desigualdade.
É um ponto muito importante. Parte desta concentração de
renda está vinculada à globalização que, ao mesmo tempo, teve aspectos
positivos ajudando a que milhões de pessoas saíssem da pobreza. Mas o certo é
que o salário real médio decresceu em muitos países. Não se pode afirmar que
este fenômeno se deva pura e exclusivamente à globalização. É certo que os
avanços tecnológicos que acompanharam a globalização foram enormes e geraram
uma redistribuição econômica para grupos com maior nível de educação. Mas, ao
mesmo tempo, a concentração de renda que temos visto nos últimos dois anos não
pode ser explicada por este fator porque a globalização é um processo em curso
há muito tempo.
A América Latina foi um dos lugares mais desiguais do
planeta por muito tempo. Como avalia a situação da região nos últimos dez anos?
Acreditamos que ocorreram grandes progressos que demonstram
que é possível melhorar as coisas se existe vontade política. Programas sociais
como o Bolsa Família no Brasil, o Trabalhar na Argentina, o Chile Solidário, e
Oportunidades no México, colocaram a América Latina na vanguarda de políticas
inovadoras de intervenção estatal para lidar com a desigualdade. Mas é certo
que isso não foi suficiente. Os protestos no Chile ou no Brasil são sinais de
que resta muito por fazer. Ainda assim, a tendência é animadora na América
Latina e muito melhor do que em outras partes do mundo.
O que pode ocorrer se não se modificar este panorama de
crescente desigualdade global?
Estamos diante de um perigo de ruptura do contrato social e
de dissolução da ideia de cidadania. Se os governos não refletem a vontade de
grande parte da população, começam a perder legitimidade, dinamismo e colocam
em perigo a democracia, os direitos humanos e outras conquistas. Neste sentido,
para além de se a avaliação que Davos faz da desigualdade como uma das ameaças
da economia mundial é um mero exercício de relações públicas, creio que não é
em interesse das mesmas empresas de Davos que essa situação se desdobra. Esse
desdobre não vai passar de um ano, mas há um perigo que a sociedade se torne esclerosada
com um impacto concreto econômico e com um risco crescente de explosão social
porque, agora, a desigualdade está afetando ao conjunto da sociedade de muitos
países, incluindo as classes médias, que foram uma das grandes perdedoras da
crise de 2008.
Fonte: Carta Maior
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