O debate sobre as classes médias e seu papel cresceu no século 20. Marx, nas notas que deixou em Teorias da Mais Valia, havia indicado que o desenvolvimento o capitalismo levaria à diminuição do trabalho direto (e. assim, do número de operários) e ao aumento do número daqueles empregados no planejamento e administração da produção capitalista.
Marx indicou a tendência que esse desenvolvimento do capitalismo teria no futuro: "a classe média crescerá em tamanho” e o “proletariado operário constituirá crescentemente uma proporção decrescente da população total" (Marx: 1980).
Isto é, cresceria o número dos profissionais ligados à esfera da superestrutura, que ele designou com a expressão “servidores do público”.
A atividade destes trabalhadores não é diretamente produtiva no sentido de criar riqueza material nova. Mas seu número cresce no rastro do aumento da produtividade geral do trabalho e do consequente aumento da riqueza da sociedade. Isso leva ao emprego de um número cada vez maior de pessoas em tarefas da administração (pública e privada). E também daqueles que prestam os cuidados que tornam a vida mais cômoda.
O avanço da divisão do trabalho acompanha o crescimento das empresas capitalistas, impondo o aumento do número de gerentes, supervisores e outros trabalhadores necessários à administração dos negócios e à apropriação, distribuição e realização da mais valia.
Estes trabalhadores - descritos por Marx como os que “mandam em nome do capital” - formam uma “classe média” cuja existência poderia funcionar como um colchão para atenuar o conflito de classes. Marx é bem explícito. Ele se refere ao "número constantemente crescente das classes médias que, situadas entre os trabalhadores de um lado e os capitalistas e proprietários de terra do outro”, exercem “uma pressão esmagadora sobre a classe trabalhadora, aumentando a segurança social e o poder da classe alta" (Marx: 1980).
Em Teorias da Mais Valia Marx definiu o trabalho destas categorias como essencial para a produção da mais valia e sua extração e distribuição. Isto é, são trabalhadores produtivos para o capital na medida em que sua atividade é necessária não para a geração direta da mais valia mas para sua extração, apropriação e distribuição. Os trabalhadores técnicos e administrativos são necessários para melhorar a possibilidade de um patrão individual (ou uma empresa) abocanhar uma fatia maior da mais valia que, extraída dos trabalhadores diretamente produtivos, circula e é dividida entre as diferentes facções da classe proprietária e governante. Parte dela é usada para remunerar, em escala muito menor, os trabalhadores empregados naquela apropriação.
O proletariado e a burguesia atuais não são os mesmos do que foram na época de Marx. Constituem realidades sociais cujo movimento é condicionado pelo desenvolvimento da produção material, e também pelo aprendizado de classe obtido em sua trajetória histórica. É uma realidade social que se torna cada vez mais complexa. As relações entre as classes são alteradas pelas necessidades novas criadas pelo avanço nas formas de produzir e na apropriação dos resultados da produção. Avanço que modifica as formas e o alcance da luta de classes.
Escrevendo algumas décadas mais tarde, numa época em que a divisão do trabalho havia avançado, as indicações de Lênin refletiram as imposições da produção capitalista mais desenvolvida, com funções técnicas e administrativas mais complexas, próprias da produção monopolista que se disseminava. Aquelas indicações permitem afirmar que o proletariado seria composto também pelos assalariados vinculados ao processo de realização da mais-valia e exercem funções subordinadas na cadeia de comando do processo produtivo capitalista.
São trabalhadores, como os demais, destituídos dos meios de produção. E também do controle sobre a produção, de cujo comando participam de forma auxiliar e subordinada.
Para o marxismo o conceito de proletariado começava a ir além da classe operária fabril tradicional (o proletariado operário, como escreveu Marx). Seu perfil de classe passava a refletir as mudanças na divisão do trabalho e a introdução de novas técnicas de gerenciamento, planejamento e organização da produção. Com o tempo foram desenvolvidas novas tecnologias (a chamada, desde meados do século XX, revolução informacional) que estão na base da ofensiva patronal contra a regulamentação do trabalho.
A situação concreta vivida pelo proletariado, resultante do domínio do capital sobre a produção, ficou pior. A apropriação privada dos produtos do trabalho se traduz, neste aspecto, na apropriação igualmente privada dos ganhos da produtividade.
O resultado do aumento da produtividade do trabalho pela introdução de novas técnicas (fruto da associação entre indústria e ciência - Marx: 1978) que expropriam o conhecimento do trabalhador, a habilidade para transformar matérias primas em produtos úteis, e o incorporam às máquinas. Um dos resultados é a menor necessidade de trabalho direto por unidade produzida. O outro é o aumento na degradação do trabalho. A incorporação do saber operário às máquinas, a automação, permite o aumento crescente da economia da força de trabalho na produção. Economia que, embora social por resultar do avanço técnico e científico ocorrido na sociedade, é apropriada privadamente pelo capitalista, não pelo trabalhador. Ao invés de aumentar o tempo livre dos trabalhadores (com a diminuição da jornada de trabalho, por exemplo), aquele avanço produtivo dá aos patrões a chance de apropriação privada dos benefícios advindos do aumento do conhecimento acumulado pela sociedade.
Nas condições próprias do modo de produção capitalista, o avanço da produtividade se volta contra os trabalhadores e se traduz em desemprego, jornadas de trabalho mais extensas, perdas salariais, aumento da competição entre os trabalhadores e todo o cortejo de mazelas vividas pelo proletariado e agravadas desde as décadas finais do século XX.
A tendência marxista tradicional persistiu em encarar a estrutura social do modo de produção capitalista de forma dicotômica opondo as duas classes polares, a burguesia industrial e os operários diretamente ligados à produção.
As raízes desta tendência estão na interpretação rígida feita por Karl Kautsky, que foi de certa forma oficializada no cânone marxista posterior à década de 1930. Essa interpretação assegura que o desenvolvimento do capitalismo leva à oposição entre burguesia industrial e operários fabris (encarados como sinônimo de proletariado). Sem perceber que essa contradição é melhor apreendida num grau de abstração mais alto, como oposição entre capital e trabalho.
Antevendo o futuro da divisão do trabalho sob o capitalismo Marx argumentou que seu avanço provocaria a redução do emprego do trabalho na esfera da produção direta: "Por exemplo, os trabalhadores não qualificados numa fábrica... nada tem diretamente que ver com a elaboração da matéria prima. O trabalhador que funciona como supervisor daqueles diretamente empenhados na elaboração da matéria-prima está um passo adiante; o engenheiro-chefe tem ainda outra relação e, nos escritórios centrais, apenas com o seu cérebro, e assim por diante" (Marx: 1980).
Isto é, a tendência é a diminuição do trabalho direto e o aumento de funções de outra natureza, essenciais para o planejamento e administração da produção e sua distribuição; para dar maior eficiência à extração da mais valia e controlar sua distribuição entre as diferentes camadas proprietárias e seus auxiliares. Cresceriam também as funções culturais, ideológicas, e aquelas ligadas ao aumento do bem estar coletivo. Este é, anteviu Marx, "o curso da sociedade burguesa" (Marx: 1980).
O pioneiro no uso da expressão “nova classe média” foi o economista Emil Lederer. considerado um dos últimos “austro-marxistas” e autor do livro O problema do empregado assalariado moderno (1912) no qual aquele termo foi usado pela primeira vez diz Alan Swingerwood, em cuja obra a explanação a seguir está baseada (1978).
O livro de Lederer fez parte da controvérsia que emergiu depois da Primeira Grande Guerra e enfrentou a tese dominante, defendida por Karl Kautsky, da proletarização dos setores médios e polarização de classes em torno da burguesia industrial e do proletariado fabril. O argumento de Lederer era que os setores médios cresciam e adquiriam um caráter social e uma consciência de classe próprios.
Aquilo que Marx havia descrito como possibilidade rapidamente se transformou em realidade histórica nos países capitalistas que, desde a década de 1860, viviam uma acelerada mudança na estrutura ocupacional.
Na Grã-Bretanha, em 1851, apenas 1% dos trabalhadores tinham funções administrativas; um século depois, em 1961, eram 12% do total. Entre 1911 e 1971 a percentagem dos “profissionais” (isto é, os trabalhadores não manuais) passou de 4% para 10% do total (Swingerwood: 1978).
Nos EUA a tendência foi semelhante. Os trabalhadores de escritório eram apenas 0,6% do total em 1870, passando para 15,2% em 1962 - em menos de um século seu número foi multiplicado por 25!
No final da década de 1960, nos EUA, o número de trabalhadores não manuais se igualou ao dos trabalhadores manuais. Em 1970 metade dos empregados na indústria estava ligada à produção (operadores de máquinas, trabalhadores não qualificados, trabalhadores do setor de transporte e dedicados a outras funções), enquanto a outra metade dividia-se em atividades administrativas, técnicas ou ligadas à comercialização (Swingerwood: 1978; Nadel: 1982).
Entre 1910 e 1970 o número de trabalhadores não manuais multiplicou-se nos EUA. O total dos assalariados passou de 37,3 milhões em 1910 para 80,6 milhões em 1970 - cresceu 2,2 vezes. Os profissionais e técnicos passaram de 1,8 milhões para 16 milhões (quase nove vezes mais); o número de gerentes e executivos (exceto agrícolas) passou de 2,5 milhões para 10,9 milhões (4,3 vezes mais); o dos empregados de escritório pulou de 2 milhões para 20,1 milhões (dez vezes mais) (Nadel: 1982).
Isto é, enquanto o número total de assalariados dobrou nos EUA em sessenta anos, o número dos trabalhadores não manuais cresceu em ritmo muito mais acelerado, com destaque para os administrativos, que foi multiplicado por dez.
Outros dados fornecidos por Nadel permitem uma compreensão mais precisa dessa transformação e do papel crescente dos trabalhadores daquilo que o soviético chamou de inteligentzia, que inclui profissionais que prestam serviços ao público. Nos EUA, em apenas dez anos, de 1960 a 1970, o total de professores passou de 1,9 milhões para 3,1 milhões. Os engenheiros, de 810 mil para 1,1 milhão; os médicos, de 684 mil para 824 mil; os trabalhadores em artes e espetáculos, de 470 mil para 750 mil; os contadores, de 429 mil para 491 mil; os cientistas, de 282 mil para 428 mil; os advogados, de 225 mil para 287 mil; os publicitários e jornalistas, de 96 mil para 112 mil; finalmente, os arquitetos e planejadores, de 100 mil para 126 mil (Nadel: 1982).
Ou seja, numa sociedade capitalista madura as funções ligadas à administração, à elaboração do consenso social e também ao bem estar coletivo, adquirem uma importância expressa pelos números. Nos EUA, em 1970, chegavam a 10,7 milhões de trabalhadores, ou 13%do total de 80,6 milhões.
Tendência semelhante foi registrada em países como a Suécia, França, Japão, Áustria ou na então Alemanha Ocidental. A soma dos trabalhadores não manuais chegava, na década de 1970, a aproximadamente um terço dos assalariados nos países de capitalismo mais desenvolvido, assegura Swingerwood (1978).
São países onde, crescentemente, aquelas funções não operárias foram submetidas ao comando do capital, na forma de assalariamento. “Uma sociedade que se baseia na forma do valor submete mais e mais de sua população trabalhadora às complexas ramificações das exigências da propriedade do valor”, afirmou Harry Braverman ao analisar este quadro em seu clássico Trabalho e Capital Monopolista (Braverman: 1987), publicado originalmente em 1974.
Ele enfatizou a contradição objetiva entre aqueles que chamou de proletários de nova forma e o capital. E assinalou as diferenças entre sua situação e a de seus antepassados, os “empregados” do século XIX. As “associações íntimas, a atmosfera de obrigação mútua e o grau de lealdade que caracterizavam o pequeno escritório viram-se transformados de um objetivo principal a uma responsabilidade positiva, e a gerência começou a cortar estes vínculos e por em seu lugar a disciplina impessoal de uma chamada organização moderna”, constatou. Houve um esforço para manter aquele sentimento de lealdade e obrigação, mas a mudança objetiva que ocorreu contribuiu para miná-lo. “Era o fim do reinado do contador como principal funcionário do escritório e a ascensão do gerente como o “representante da administração superior. A gerência do escritório, produto do período monopolista do capitalismo, desenvolveu-se como um ramo especializado da gerência, com suas próprias escolas, associações, profissionais, guias e manuais, periódicos, padrões e métodos” (Braverman: 1987).
A conclusão de Braverman vai na contramão das ideias de Lederer e daqueles que, nas primeiras décadas do século XX, imaginaram a impossibilidade da aproximação entre os trabalhadores manuais e os administrativos. “O problema do chamado funcionário ou trabalhador engravatado, que tanto incomodou as primeiras gerações de marxistas, e que foi saudado pelos antimarxistas como uma prova da falsidade da tese da ‘proletarização’ foi assim inequivocamente esclarecido pela polarização do emprego em escritório e o aumento em um polo de uma enorme massa de funcionários. A tendência verificada de uma ampla ‘classe média’ não proletária voltou-se à criação de um vasto proletariado sob nova forma. Em suas condições de emprego, esta população trabalhadora perdeu todas as antigas superioridades sobre os trabalhadores fabris, e em suas escalas de salário desceu quase ao nível mais baixo” (Braverman, 1987).
Aquela alteração na composição dos trabalhadores assalariados permitiu o sonho anticomunista de um proletariado domesticado em uma estrutura social onde a chamada classe média pudesse funcionar como uma espécie de amortecedor da luta de classes.
Contra esse sonho anticomunista, o aprofundamento da contradição entre trabalho e capital aponta para a tendência contrária, a aproximação objetiva entre todos os assalariados e a classe operária. Para a consciência de que são todos proletários em contradição com o capital e os capitalistas.
Referências
Braverman, Harry. Trabalho e capital monopolista - a degradação do trabalho no século 20. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1987.
Marx, Karl. Elementos fundamentales para la critica de la economia política(Grundrisse, 1857-1858). México DF, Siglo Veintiuno, 1978.
Marx, Karl. Teorias sobre la plus-valia. México DF, Fondo de Cultura Economica, 1980.
Nadel, S. N. Contemporary capitalism and the middle classes. Moscou, Progress Publishers, 1982.
Swingerwood, Alain. Marx e a teoria social moderna. Rio de Janeiro, Editora Civilização brasileira 1978.
* Jornalista, editor da Classe Operária, membro da Comissão Nacional de Comunicação e do Comitê Central do PCdoB; é da Comissão Editorial da revista Princípios
Nenhum comentário:
Postar um comentário