Na Constituinte de 1946 a bancada comunista defendeu a tese democrática de que o centro do poder político era a Câmara dos Deputados, a quem caberia entre outras coisas aprovar a nomeação dos ministros da República e dos chefes militares. Defendeu também que os juízes fossem eleitos. Suas propostas não foram sequer levadas em consideração - era democracia demais para uma classe dominante conservadora que sempre considerou este regime de maneira formal, rejeitando e enquadrando em regras rígidas o exercício da soberania popular.
Editorial do Portal Vermelho.
No conflito de poderes, precisa prevalecer a soberania popular
A Constituição de 1988 diz, no parágrafo único de seu artigo 1º: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Este princípio constitucional que fundamenta a democracia na soberania popular precisa ser lembrado em momentos como o atual em que decisões tomadas em alguns dos três poderes da República - o Legislativo, o Executivo e o Judiciário - geram conflitos inflados pela mídia conservadora, que os apresenta como ameaças à democracia.
A forte tendência de judicialização da política cresceu na última década. Tendência que, apresentando-se como neutra e técnica, ela própria é, vista mais a fundo, instrumento da luta política no quadro de anseio geral pela democratização efetiva do Estado brasileiro.
Os fatos mais recentes estão no noticiário. De um lado, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a proposta de uma emenda constitucional polêmica que cria regras para a declaração, pelo Judiciário - no caso, pelo Supremo Tribunal Federal - da constitucionalidade das leis.
É uma mudança de tamanha envergadura que pressupõe um amplo debate com a sociedade, envolvendo as forças políticas e o fundamento da soberania, que é o povo. Não foi isso que ocorreu, e a reação prudente do presidente da Câmara, deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), foi suspender seus efeitos até que seja feito um levantamento “sobre o aspecto jurídico da questão”.
A proposta de emenda pretendia submeter as decisões do STF sobre questões constitucionais à aprovação pelo Congresso Nacional; em caso de desaprovação pelos parlamentares, que fossem submetidas a plebiscito popular.
Do outro lado, numa interferência direta, e abrupta, no funcionamento do poder Legislativo, um ministro do STF determinou a suspensão da tramitação de um projeto de lei que fere interesses da oposição por alterar as regras para a criação de um partido político.
A proposta de mudança constitucional que envolve o STF pretende levar este poder ao mesmo nível de controle que existe em relação aos demais (Legislativo e Executivo). E remete, em caso de impasse, a decisão àquele que é, de acordo com a Constituição, a fonte original do poder: o eleitor, o povo brasileiro.
Este é o ponto em questão. Numa democracia a decisão cabe à maioria, cabe ao povo, que a Constituição reconhece como a fonte originária do poder. A Direita e os conservadores não gostam disso e sua pretensão em sacralizar a “lei” obedece à pretensão de congelar a política e dar um aspecto “técnico” a relações conflitivas cuja resolução se dá justamente no campo da política.
A hipertrofia do judiciário, diz o jurista Luiz Moreira, doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, gera o “esvaziamento” da atividade política e a transforma “em uma atividade menor”, fortalecendo a interpretação burocrática do Direito cuja consequência é “a relativização do voto”.
Numa democracia é o Legislativo que representa diretamente o povo, do qual recebe delegação expressa. Cabe ao Judiciário zelar pelo cumprimento da Constituição, mas é o Legislativo que tem competência para fazer alterações no texto constitucional, e a própria Constituição firmou regras rígidas para isso, exigindo que as emendas alcancem três quintos dos votos em dois turnos de votação no Congresso Nacional.
Na Constituinte de 1946 a bancada comunista defendeu a tese democrática de que o centro do poder político era a Câmara dos Deputados, a quem caberia entre outras coisas aprovar a nomeação dos ministros da República e dos chefes militares. Defendeu também que os juízes fossem eleitos. Suas propostas não foram sequer levadas em consideração - era democracia demais para uma classe dominante conservadora que sempre considerou este regime de maneira formal, rejeitando e enquadrando em regras rígidas o exercício da soberania popular.
Hoje, mais de seis décadas depois, é o mesmo princípio que, pelas vias transversas da política, se recoloca no debate: o respeito à soberania popular, fonte dos poderes da república, ou seu enquadramento num ordenamento jurídico que, resultante de equilíbrios de força passageiros, é ele próprio também passageiro e contingente
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