quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Guadi Calvo: Semiótica do apocalipse na Argentina


Com poucos dias de governo Maurício Macri já deu claras mostras de que não vai desapontar quem confiou nele desde o princípio: os grandes bancos, as corporações midiáticas e o mercado como um todo. 

Por Guadi Calvo, especial para o Vermelho


Telesur
Maurício MacriMaurício Macri
Desde o dia 10 de dezembro o novo presidente já firmou 29 Decretos de Necessidade e Urgência (DNU), durante seus oito anos de mandato a presidenta Cristina Kirchner firmou 13. O DNU é um instrumento dos presidentes para resolver questões criticas, urgentes e necessárias, como o próprio nome já diz, quando por algum motivo não é possível resolver pela via constitucional, o parlamento. 


A nomeação por decreto de dois juízes para cobrir os postos na Corte Suprema viola todas as normas constitucionais. E coloca o novo governo a bordo da ilegalidade de tal forma que a constitucionalidade democrática está em risco no país. 

Entre estes 29 DNU, talvez um dos mais controversos seja o que tem a ver com a Lei de Educação para modificar a implementada pelo kirchnerismo. Entre outros “detalhes” o DNU muda corta o orçamento do PIB destinado à Educação de 6.5% para 3%. 

As decisões do novo governo correm em sentido absolutamente opostos aos alinhados na gestão anterior, retira a arrecadação sobre produtos agrícolas, com exceção da soja. 

A implementação rápida do neoliberalismo permitirá o acesso aos dólares que sejam necessários para que as empresas estrangeiras possam circular livremente suas casas matrizes. 

A Argentina está presenciando, pasmada, a vertigem de todas as ações que pretendem terminar em semanas com tudo que foi construído nos últimos 12 anos e meio de governo peronista e isso sem dúvida vai afetar as aposentadorias, pensões e salários que serão diluídos por uma inflação pavorosa provocada pelos anúncios do atual governo, isso foi só o começo, conhecido em 22 de novembro. 

A liberação do dólar e os próximos acordos com o FMI fazem o país retroceder a semânticas superadas, semânticas que levaram o país ao apocalipse. 

Naqueles dias de dezembro de 2001 os protestos contra as mesmas medidas que estão sendo implementadas agora deixaram, em menos de 48 horas, 32 mortos. Algo nunca visto desde a ditadura em 1983. 

O novo governo nasce velho, esgotado, com um pacote de medidas já implementadas que não poderão se sustentar sem um esquema repressivo bem aceito, que converterá a Argentina em um país imprevisível. 

Macri está apressado, este choque de medidas que margeiam a inconstitucionalidade, não só mostram sua falta de ideias, de compromisso republicano, mas também seu absoluto desprezo pelas leis e um pleno acordo das forças antidemocráticas. 

Tentar governar sem o consenso do parlamento, não chamá-lo para sancionar e nomear juízes por decreto é instaurar uma ditadura. 

A pressa de Macri responde a um cálculo óbvio feito por seus gerentes, a escassa margem pela qual venceu o peronismo (51% contra 49%), e o que não conseguirem implementar nestes primeiros meses lhe será extremamente difícil de fazer a partir de 1º de março, quando o parlamento retorna às suas atividades. Uma norma obsoleta obriga o parlamento a suspender seu trabalho em dezembro para voltar em 1º de março, diante disso alguns governos preferem chamar as “sessões extraordinárias” para passar tanto temo sem o trabalho do legislativo. 

Macri, porém, vai aproveitar ao máximo esta prerrogativa para impulsionar todas as modificações para quando chegue março, tudo já esteja sendo executado, ao temo que já está operando com diferentes governadores e dirigentes peronistas, para cooptá-los obviamente com orçamentos e postos no governo. 

O grande objetivo é triturar o poder de Cristina Kirchner, que deixou o governo com um gigantesco ato de apoio onde foram convocadas mais de 800 mil pessoas, um feito incomum não só na Argentina, mas no mundo. 

Macri sabe melhor que ninguém que na realidade conta com um escasso 22%, o restante, para alcançar os 51%, corresponde a um conglomerado de partidos que juntos formaram a Aliança Cambiemos e um número importante de votos anti-kirchneristas puros, sem outra conotação partidária que não o ódio irracional pela presidenta fomentado pela campanha midiática mais monumental que o país já viu. 

Se contarmos os mecanismos disponíveis para esta campanha, as horas de transmissão televisiva, de rádio e o espaço em jornais diários, revistas e sites na internet, poderíamos dizer que para além da modestíssima vitória de Macri, o resultado foi um fracasso absoluto. Por isso Héctor Magnetto, dono do império midiático Clarín, engoliu a saliva na hora que se deparou com o gigantesco ato de despedida preparado para a presidenta. Este último discurso de Cristina, que como sempre não foi leve, além de uma despedida formal, a colocou na posição da líder da oposição e advertiu sobre muitas das questões que Macri mais tarde surpreendeu o país com seus 29 DNU e as censuras às liberdades individuais que estão por vir. 

Um exército invasor 

Sem dúvida, para milhões de argentinos a aparição de Macri e sua trupe de gerentes ocupando os principais ministérios e secretarias de Estado semeia um exército invasor saqueando uma nação indefesa. 

Não há dúvida de que Macri não chegou à presidência para governar, para instalar um plano de governo, se não para liquidar a obra dos Kirchner. A operação da grande mídia contra a presidenta não terminou e sem duvida está muito longe disso. Como se continuasse no governo, os meios que levaram Macri à Casa Rosada seguem detonando Cristina. A premissa do novo governo para a “grande política” segue sendo secundária. Não se analisa nem as propostas, nem as virtudes dos novos funcionários, em sua grande maioria CEOs de empresas multinacionais. 

O tema central das análises políticas da grande mídia continua sendo “Cristina” e e assim começam as perguntas: “Quanto poder Cristina perdeu sem o governo?”, “O peronismo tradicional seguirá acompanhando a presidenta ou cobrará dela a fatura da derrota?”.

É certo que Cristina durante seus oito anos de poder e os outros quatro de seu marido Néstor, maltratou a direção do peronismo tradicional, que se apegou demais a certos lugares do poder e se distanciou das ruas e se tornou flácida, sem reflexos, gorda e vazia de conteúdo e dos ideais do general Perón, talvez o grande logro do kirchnerismo tenha sido devolver este conteúdo. 

Sem dúvida o tripé (meios de comunicação, poder financeiro e poder judiciário) que combateu o kirchnerismo ao longo de seus 12 anos e meio seguirá trabalhando para aniquilar seu legado e seguir desgastando Cristina, quem com certeza veremos trabalhando nos tribunais. 

Mais de um juiz vai sentir certa excitação na hora que tiver a presidenta sob seu julgamento, como se desta forma pudessem empoderar-se em parte de seu carisma. 

Tentam deixar a vida dela impossível inventando uma série de falácias, Cristina com certeza sabe perfeitamente disso e preferiu baixar ao plano, recusar qualquer cargo que poderia lhe dar privilégios e aceitar os desafios no melhor estilo de Fidel Castro. Será ela quem vai acusar, quem vai apontar os culpados, a conduta ilegal, o não cumprimento das funções públicas e até a traição à pátria. 

A aliança do governo sabe que não será fácil, e quanto mais aprofunde suas medidas, mais deixará sem embasamento alguns de seus dirigentes que podem perder suas bases. Este 51% vai se desmanchar na velocidade da luz este salto no escuro será pior que no anos 1990. 

Por fim vai estourar o conflito e para isso Macri também já tem resposta: colocou no Ministério de Segurança Patrícia Bullrich, uma mulher íntima da CIA e do Mossad (serviço secreto de Israel), dotada de condições morais suficientes para reprimir protestos populares com a mesma gana que nos melhores anos da ditadura. 

Macri, em menos de uma semana de sua posse já cheirava a estragado, todos sabemos que tem data de validade como o iogurte ou a manteiga.


Traduzido por Mariana Serafini

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