Na era do capitalismo global, o direito à moradia – um direito humano fundamental – é relegado a segundo plano em todos os países que seguem o receituário neoliberal. Desde os anos 1970, a habitação e a urbanização passam por um processo que a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik chama de financeirização, em que a lógica dos projetos, mais do que atender a um direito, busca assegurar o retorno dos investimentos.
Jailton Garcia/RBA
Raquel Rolnik: "Habitação passa pelo crivo do neoliberalismo, prática hegemônica que persegue a consolidação do Estado mínimo"
“A financeirização é a tomada do segmento da produção habitacional para as lógicas de rentabilidade dos investimentos financeiros envolvidos naquilo, não apenas da habitação mas também da política urbana e da terra urbana. Isso significa que as políticas, os programas são moldados para criar novos campos de aplicação para promover remunerações e rentabilidades para o capital financeiro investir”, afirma Raquel, que em dezembro lançou o livro Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, pela editora Boitempo.
Elaborado a partir da experiência da arquiteta como Relatora Especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas (ONU), o livro traz as constatações de Raquel em 12 missões em diferentes países, nos quais ela pôde verificar o abandono de políticas habitacionais para a adoção do modelo da era financeira, colocando sobretudo os mais pobres em situação de ainda mais vulnerabilidade.
"Eu diria que financeirização é um passo a mais no movimento de mercantilização e coisificação no sentido do domínio das finanças sobre todo o processo de produção e consumo capitalista. Estamos falando da hegemonia da era financeira. A financeirização é a tomada do segmento da produção habitacional para as lógicas de rentabilidade dos investimentos financeiros envolvidos naquilo, não apenas da habitação mas também da política urbana e da terra urbana", explica em entrevista a Rede Brasil Atual.
Para ela, os programas são moldados para promover remunerações e rentabilidades para o capital financeiro investir. "Nós estamos falando de um excedente global de capital que circula pelo planeta à procura de campos onde aportar para extrair renda, é um capital não produtivo, ele é rentista. Há o processo de transformação das políticas habitacionais. A construção de um novo paradigma de política habitacional que eu descrevo no livro tem a ver com a tomada deste setor pelo setor financeiro", acrescentou.
Ela enfatiza que verificou essa pratica em todos os países que visitou como missionária da ONU. "Eu pude me aprofundar por meio de missões como relatora sobre direito à moradia adequada, ou por meio de pesquisas respondidas diretamente pelos governos, que eu pude fazer enquanto relatora da ONU. Claro que se trata de um processo global, mas que tem especificidades em cada um desses países. Há inclusive processos que ocorrem em tempos diferentes da história, pois estamos falando que é no fim dos anos 70 que os primeiros países passam por essa transformação, mas há países que passam por isso agora. Há especificidades e isso depende da economia política de cada país", disse.
"Nós estamos falando do ajuste estrutural, das políticas de ajuste, da tese da redução do estado, do estado mínimo, é no bojo desse movimento, dessa ideologia, que é também uma prática hegemônica no planeta hoje em vários campos. E o que eu tento mostrar é como isso aconteceu dentro do campo específico da moradia", afirmou.
Questionada sobre os efeitos da crise globa de 2008, Raquel Rolnik destaca que a situação desnudou o modelo neoliberal. "A crise financeira e hipotecária que começa nos Estados Unidos coloca a nu e contesta esse modelo, porque a promessa dessa política é a tese de que todas as pessoas do planeta podem ter acesso à moradia, casa própria individual registrada e titulada desde que tenha acesso a um crédito financeiro capaz de fazer com que ela compre este bem produzido pelo mercado privado. Aí existem vários movimentos, várias questões envolvidas. Primeiro, a moradia é um bem consumido privadamente e produzido pelo mercado privado. Isso já é uma enorme ruptura porque nos países que desenvolveram o estado de bem-estar social, ou nos países que viveram a experiência do comunismo ou do socialismo, a moradia não é isso – ela é um bem social, é um direito humano, um direito inclusive que independe da renda, não é um bem de consumo. A transmutação da moradia em um bem de consumo é um primeiro movimento", pontuou.
A arquiteta salienta ainda que o consumo desse bem obtido por meio da do crédito hipotecário, o que significa dizer que a garantia do crédito é o próprio bem.
"E a ideia de que isso poderia ser generalizado, inclusive para os mais pobres, utilizando novas ferramentas criativas, que são exatamente o crédito subprime. Eu mostro que do crédito subprime ao microcrédito para a habitação, que é a ideia de o crédito chegar para os mais pobres, é toda uma engenharia que vai tentar atingir camadas de renda muito mais baixas, que historicamente não acessavam o crédito, não estavam incluídas no mercado financeiro, achando que isso é totalmente possível, atingir essas camadas, portanto, sem estado, sem recurso público com crédito privado etc., e por meio de mecanismos como a securitização, ou seja, você poder vender as hipotecas que foram empacotadas com outros produtos financeiros para poder circular no mercado financeiro. Seria possível alavancar mais e mais recursos para isso ser mais e mais amplamente produzido e, portanto, todos teriam casa no final das contas", declarou.
E acrescenta: "A crise derruba essa tese. Na hora que você liga a casa onde as pessoas moram com os produtos financeiros, e faz isso circular no mercado internacional, você expõe isso aos riscos que são inerentes ao mercado financeiro, um mercado de jogo, de risco, que ganha, que perde, só que na hora que expõe isso, você faz justamente expor as pessoas mais pobres e vulneráveis. Essa é a lógica do mercado financeiro, em que quanto mais pobre for aquele que pegou emprestado, maior o juro que ele vai pagar e, portanto, maior vai ser o tombo quando por alguma razão ele não conseguir mais pagar; ele vai perder a casa e no meio desse caminho toda a intermediação financeira já ganhou, já repassou essas hipotecas e no fim as pessoas vão ficar sem dinheiro e sem casa".
Elaborado a partir da experiência da arquiteta como Relatora Especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas (ONU), o livro traz as constatações de Raquel em 12 missões em diferentes países, nos quais ela pôde verificar o abandono de políticas habitacionais para a adoção do modelo da era financeira, colocando sobretudo os mais pobres em situação de ainda mais vulnerabilidade.
"Eu diria que financeirização é um passo a mais no movimento de mercantilização e coisificação no sentido do domínio das finanças sobre todo o processo de produção e consumo capitalista. Estamos falando da hegemonia da era financeira. A financeirização é a tomada do segmento da produção habitacional para as lógicas de rentabilidade dos investimentos financeiros envolvidos naquilo, não apenas da habitação mas também da política urbana e da terra urbana", explica em entrevista a Rede Brasil Atual.
Para ela, os programas são moldados para promover remunerações e rentabilidades para o capital financeiro investir. "Nós estamos falando de um excedente global de capital que circula pelo planeta à procura de campos onde aportar para extrair renda, é um capital não produtivo, ele é rentista. Há o processo de transformação das políticas habitacionais. A construção de um novo paradigma de política habitacional que eu descrevo no livro tem a ver com a tomada deste setor pelo setor financeiro", acrescentou.
Ela enfatiza que verificou essa pratica em todos os países que visitou como missionária da ONU. "Eu pude me aprofundar por meio de missões como relatora sobre direito à moradia adequada, ou por meio de pesquisas respondidas diretamente pelos governos, que eu pude fazer enquanto relatora da ONU. Claro que se trata de um processo global, mas que tem especificidades em cada um desses países. Há inclusive processos que ocorrem em tempos diferentes da história, pois estamos falando que é no fim dos anos 70 que os primeiros países passam por essa transformação, mas há países que passam por isso agora. Há especificidades e isso depende da economia política de cada país", disse.
"Nós estamos falando do ajuste estrutural, das políticas de ajuste, da tese da redução do estado, do estado mínimo, é no bojo desse movimento, dessa ideologia, que é também uma prática hegemônica no planeta hoje em vários campos. E o que eu tento mostrar é como isso aconteceu dentro do campo específico da moradia", afirmou.
Questionada sobre os efeitos da crise globa de 2008, Raquel Rolnik destaca que a situação desnudou o modelo neoliberal. "A crise financeira e hipotecária que começa nos Estados Unidos coloca a nu e contesta esse modelo, porque a promessa dessa política é a tese de que todas as pessoas do planeta podem ter acesso à moradia, casa própria individual registrada e titulada desde que tenha acesso a um crédito financeiro capaz de fazer com que ela compre este bem produzido pelo mercado privado. Aí existem vários movimentos, várias questões envolvidas. Primeiro, a moradia é um bem consumido privadamente e produzido pelo mercado privado. Isso já é uma enorme ruptura porque nos países que desenvolveram o estado de bem-estar social, ou nos países que viveram a experiência do comunismo ou do socialismo, a moradia não é isso – ela é um bem social, é um direito humano, um direito inclusive que independe da renda, não é um bem de consumo. A transmutação da moradia em um bem de consumo é um primeiro movimento", pontuou.
A arquiteta salienta ainda que o consumo desse bem obtido por meio da do crédito hipotecário, o que significa dizer que a garantia do crédito é o próprio bem.
"E a ideia de que isso poderia ser generalizado, inclusive para os mais pobres, utilizando novas ferramentas criativas, que são exatamente o crédito subprime. Eu mostro que do crédito subprime ao microcrédito para a habitação, que é a ideia de o crédito chegar para os mais pobres, é toda uma engenharia que vai tentar atingir camadas de renda muito mais baixas, que historicamente não acessavam o crédito, não estavam incluídas no mercado financeiro, achando que isso é totalmente possível, atingir essas camadas, portanto, sem estado, sem recurso público com crédito privado etc., e por meio de mecanismos como a securitização, ou seja, você poder vender as hipotecas que foram empacotadas com outros produtos financeiros para poder circular no mercado financeiro. Seria possível alavancar mais e mais recursos para isso ser mais e mais amplamente produzido e, portanto, todos teriam casa no final das contas", declarou.
E acrescenta: "A crise derruba essa tese. Na hora que você liga a casa onde as pessoas moram com os produtos financeiros, e faz isso circular no mercado internacional, você expõe isso aos riscos que são inerentes ao mercado financeiro, um mercado de jogo, de risco, que ganha, que perde, só que na hora que expõe isso, você faz justamente expor as pessoas mais pobres e vulneráveis. Essa é a lógica do mercado financeiro, em que quanto mais pobre for aquele que pegou emprestado, maior o juro que ele vai pagar e, portanto, maior vai ser o tombo quando por alguma razão ele não conseguir mais pagar; ele vai perder a casa e no meio desse caminho toda a intermediação financeira já ganhou, já repassou essas hipotecas e no fim as pessoas vão ficar sem dinheiro e sem casa".
Fonte: Rede Brasil Atual
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