A eleição de um brasileiro para a presidência da Organização Mundial do Comércio (OMC), contra o candidato apoiado pelos EUA e pela União Europeia (UE), é mais um sinal de que uma nova época está a caminho da história. Presenciamos o início de um processo de transição geopolítica em direção a outra ordem mundial, no qual o declínio econômico e político do império norte-americano e a ascensão da China, e por extensão do Brics, são os traços mais salientes.
Por Umberto Martins*
O resultado do pleito na OMC foi uma clara derrota dos EUA e da Europa, contrastando com a vitória política do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e África do Sul, ou seja, do Brics e também dos países considerados subdesenvolvidos, ou em vias de desenvolvimento. Além da maioria dos países latino-americanos, o candidato brasileiro Roberto de Carvalho de Azevêdo conquistou um terço dos seus votos na África.
Este êxito político acompanha e reflete transformações profundas e objetivas na economia internacional, ocorridas ao longo das últimas décadas e ainda em curso. São mudanças determinadas pelo desenvolvimento desigual das nações sob o capitalismo e aceleradas pela crise mundial, iniciada em 2007 nos EUA.
Declínio dos EUA e da UE
O declínio da liderança econômica dos EUA, da União Europeia e do Japão complementa a ascensão da China, o progressivo deslocamento da produção industrial, e por extensão, do poder econômico do Ocidente para o Oriente e, de uma forma mais ampla, das velhas e tradicionais potências capitalistas para o Brics, ou do Norte para o Sul. A crise global, iniciada em 2007 no centro do império e agora mais forte na Europa, acentuou os efeitos do desenvolvimento desigual. A economia chinesa, embora afetada pelas turbulências, manteve altas taxas de crescimento do PIB, exportações e investimentos no exterior desde 2008, enquanto as grandes potências capitalistas chafurdavam no baixo crescimento e na recessão.
Hoje a China já pode ser considerada a maior potência industrial e comercial do globo, e projeta a sua força econômica também para a esfera financeira. Com reservas estimadas em cerca de US$ 3,3 trilhões, é a maior credora do mundo e ascende no ranking dos investimentos diretos e indiretos. Alguns economistas estimam em mais de US$ 200 bilhões o valor dos investimentos chineses, diretos e indiretos, no continente africano, fato que ajuda a explicar os votos da região na OMC. É crescente nesta esfera o papel da China no Brasil, onde já ocupa o primeiro lugar em matéria de investimentos externos diretos, bem como no conjunto da América Latina e Caribe.
As novas realidades econômicas moldadas pelo desenvolvimento desigual, em parceria com o parasitismo das velhas potências capitalistas, já não cabem na velha ordem imperialista remanescente dos acordos de Bretton Woods, que se apresentou como eterna depois do colapso da URSS, mas efetivamente envelheceu, mais rapidamente do que o senso comum supunha. A “Pax Americana” caducou. E como tudo que caduca, deve morrer.
Os acordos de Durban
Outro sinal da incipiente transição para uma nova ordem geopolítica pode ser percebido nos acordos celebrados entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul na 5ª Cúpula do Brics, realizada na segunda quinzena de março deste ano em Durban (África do Sul).
Não custa lembrar que o Brics nasceu como um mero acrônimo proposto em 2001 pelo economista Jim O´Neill, do banco Goldman Sachs. Foi transformado em bloco econômico e político por obra de uma engenharia política costurada por Brasília, Moscou, Pequim e Nova Deli. Realizou a sua primeira Cúpula em 2009. Na época, era apenas Bric, conforme o acrônimo original de O´Neill, que não incluía a África do Sul. Esta foi incorporada em 2011, por sugestão da China.
Os críticos do Brics, que geralmente ecoam os interesses e as expectativas do chamado Ocidente, ainda hoje preconizam sua nulidade e apontam os conflitos de interesses entre seus membros como prova de sua suposta inviabilidade (ninguém gosta de contemplar e admitir a própria desgraça, como mostra a tragédia de Édipo Rei, que arrancou os olhos na esperança de não enxergar os crimes que praticara). Mas a dialética da vida mostra outra coisa. Apesar das divergências, que são reais e decorrem principalmente da proeminência da indústria chinesa no comércio internacional, o Brics encontra seu grande fator de unidade precisamente no interesse e anseio comum pela construção de uma nova ordem mundial. Não é pouca coisa.
Os acordos negociados em Durban respondem a esta necessidade histórica. Os líderes reunidos naquela cidade sul-africana decidiram criar um banco de desenvolvimento próprio, um fundo monetário de reserva e, ainda, promover o comércio e os investimentos no âmbito do grupo usando as moedas do Brics em substituição ao dólar.
São iniciativas que, por enquanto, ainda não estão concretizadas, e o caminho entre a teoria e a prática pode demandar mais tempo do que julga nossa vã imaginação, mas na medida em que as resoluções da 5ª Cúpula forem concretizadas, o que veremos ao longo dos próximos anos, será desenhado o esboço de uma nova ordem geopolítica no mundo. Abrir-se-á, para os povos, a oportunidade de um adeus sem lágrimas ao FMI, ao Banco Mundial e à hegemonia do padrão dólar. As caducas instituições de Bretton Woods estão fadadas a desaparecer do cenário histórico.
Ascensão do “Terceiro Mundo”
Não me parece que o caráter de uma nova ordem mundial ancorada no poderio econômico da China e do Brics esteja previamente definido. Há muitas incógnitas e dúvidas a este respeito. Não devemos ignorar o temor (e o risco) de que a expansão da influência chinesa na África, América Latina e Ásia reproduza relações de natureza neocoloniais que são características da atual ordem imperialista, a começar pela divisão internacional do trabalho consagrada no comércio exterior, com exportação de manufaturas de alto valor agregado de um lado e a venda de commodities do outro.
Mas convém sublinhar que, desta vez, diferentemente do que aconteceu em outros momentos de crise e transição de hegemonia no âmbito do imperialismo, quem está em ascensão não são grandes potências capitalistas rivais, mas países que ainda há pouco em nossa história amargavam a opressão imperialista.
A China continental conquistou sua liberdade após a revolução de 1949, dirigida pelo Partido Comunista. A Índia deixou de ser colônia da Inglaterra após a Segunda Guerra Mundial. O regime de apartheid na África do Sul perdurou até 1990. O Brasil igualmente padeceu sob o tacão do império, enquanto a Rússia viveu boa parte do século 20 no regime socialista, até a dramática restauração capitalista. São nações que, em sua maioria, integravam o que Mao Tse Tung classificou de Terceiro Mundo: países oprimidos e não opressores.
O desafio que se coloca para os povos é a construção de uma ordem não imperialista. Mas o imperialismo, conforme Lênin, nada mais é do que o capitalismo dos nossos dias. Isto significa que para superar o imperialismo será necessário, antes ou ao mesmo tempo, acertar as contas com o sistema capitalista e iniciar a construção do socialismo.
As tentações do poder militar
O declínio da liderança econômica dos EUA é um fenômeno que ficou evidenciado na crise e que poucos observadores da conjuntura mundial contestam. A decadência política é um desdobramento inevitável que também presenciamos, especialmente na América Latina após a derrota da Alca e a criação da Alba, Unasul e Celac. Mas é bom ressaltar que nada disto sugere que estamos a um passo de uma nova ordem internacional. O poder imperialista não se resume à força da economia e da diplomacia. Compreende também as esferas ideológica e militar.
A força ideológica do imperialismo transparece em todo o mundo principalmente através do monopólio midiático, que promove o endeusamento ou a demonização de nações e líderes ao sabor dos interesses dominantes. É um trunfo que não deve ser menosprezado. O poder militar dos EUA, que em última instância decide os conflitos e transições de hegemonia, não encontra rival no momento e assim será durante muitos anos.
A força militar, porém, deriva do poder econômico e as restrições fiscais de Washington limitam a capacidade de expansão nesta esfera e, em médio prazo, tendem a colocar em xeque a supremacia bélica. Daí as recorrentes preocupações da Casa Branca com os gastos e investimentos da China com segurança, propagadas com certa dose de cinismo.
A tentação de recorrer às armas para preservar a hegemonia é crescente, cobra pressa e certamente contribui na explicação da evolução dos conflitos no Oriente Médio e na Ásia. Interesses chineses foram flagrantemente bombardeados na Líbia, da mesma forma que a Rússia se sente (e é) golpeada pelas ameaças de intervenção imperialista aberta na Síria. A crise, que continua em curso malgrado a intervenção inédita dos governos, tem determinações objetivas que fogem ao controle de autoridades e indivíduos, acirrando os ânimos e as contradições nas esferas econômica (gerando, por exemplo, protecionismo e guerra cambial, além da radicalização da luta de classes), política, ideológica e militar.
É bobagem imaginar que o caminho em direção a uma nova ordem geopolítica, um suposto mundo multipolar, já está dado e será suave e pacífico. A história dos processos de transição de hegemonias até o presente sempre foi conflituosa e consumada na guerra. É suficiente lembrar, a este respeito, as duas grandes tragédias do século passado (1914-18 e 1939-45). O crescimento desigual das nações e o imperialismo, conforme notou Lênin, conduz inapelavelmente aos confrontos bélicos.
Nada, nem mesmo a existência de armas nucleares, indica que este padrão histórico será diferente doravante. A tendência que emana dos fatos não é de abrandamento e conciliação dos conflitos. Os sinais que se acumulam na conjuntura sugerem o contrário. O imperialismo tende à reação política e certamente a Humanidade não viverá em paz enquanto não superar o capitalismo.
Umberto Martins é jornalista, da assessoria da presidência da CTB
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