“Quando um paciente definha em agonia, então a verdadeira vocação médica pressupõe que deve fazer o melhor, a pedido do paciente, para uma morte humana, rápida e sem dor”[1]
Alerta aos leitores de títulos: esta não é uma defesa do suicídio em geral, nem o incentivo à prática suicida.
David Rivlin: tetraplégico, 38 anos, internado há três anos e mantido vivo contra a própria vontade! Janeth Adkins, paciente nº 1, diagnóstico: Mal de Alzheimer. Sra. Miller, diagnóstico: esclerose múltipla há cerca de dez anos, habilidade motora esquerda praticamente nula. Sra. Wantz, diagnóstico: dor pélvica crônica, passou por dez cirurgias sem resultados. Isabel Correa, paciente nº 12. Hugh Gale, paciente nº 14. Thomas Hyde, 30 anos, paciente nº 16, diagnóstico: esclerose lateral amiotrófica. Janet K. Good, paciente nº 82, ativista pelo direito à eutanásia, diagnóstico: câncer pancreático. Tomas Youk, paciente nº 130. “Tom Youk levava uma vida ativa. Ele restaurava e corria em carros antigos. Mas, há dois anos, aos 50, ele foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica. Uma doença incurável devastadora, que destruiu seus músculos. Ele perdeu o uso das pernas e depois dos braços. Sua família diz que ele sofria dores terríveis, dificuldade para engolir e respirar, se asfixiava com sua própria saliva”.
O que todos eles têm em comum? Eles, conscientemente, desejam a morte. São adultos em pleno exercício de suas capacidades mentais que decidiram dar término à dor e ao sofrimento. Afirmam o direito à liberdade de decidir sobre as próprias vidas. Esperam encontrar alguém capaz de compaixão, que os ajudem a morrer de maneira rápida e sem dor. Dr. Jack Kevorkian (Al Pacino), personagem do filme You Don’t Know Jack, é o anjo da morte que ousa desafiar os dogmas religiosos, a sociedade, o Estado e os colegas de profissão. O Dr. Death (Dr. Morte), como passou a ser chamado, defende o direito de o indivíduo ser ajudado a realizar o desejo de não mais viver uma vida sem qualidade e sem sentido. O direito à morte planejada, à morte assistida.
You Don’t Know Jack baseia-se na história real do Dr. Jack Kevorkian (1928-2011), médico patologista do estado de Michigan (EUA) que luta pelo direito ao suicídio assistido nos casos de doentes terminais. Ele desenvolve um aparelho, o Thanatron (dethanatos, morte, em grego), que possibilita o suicídio de maneira rápida e indolor, após o paciente acioná-lo e liberar as drogas no organismo. Dr. Death ajudou mais de 130 pacientes terminais que, em plenos poderes de suas faculdades mentais, isto é, da capacidade de decidirem racionalmente, queriam dar fim à dor e ao sofrimento insuportáveis.
O Dr. Jack Kevorkian enfrentou o sistema jurídico e a resistência dos ativistas religiosos que não aceitam o direito do indivíduo por fim à própria vida, mesmo em casos terminais. Sua licença médica foi cassada em 1991 e ele foi proibido de adquirir as drogas necessárias ao suicídio assistido. Passou, então, a utilizar o monóxido de carbono, liberado e inalado pelo paciente. O método foi batizado por Mercytron. O Dr. Jack defendeu a criação de clínicas dedicadas a dar assistência legal ao suicídio. Com o apoio do amigo e da ativista pelo direito à eutanásia, Janet Good, ele abriu a clínicaMercy (Misericórdia). O nome é sugestivo e indica a maneira como o Dr. Deathencarava a sua atividade. Em entrevista afirmou: “Eu estou lutando por mim, Mike. Por mim. Porque este é um direito que eu quero. Eu posso chegar ao fim em terrível sofrimento. Gostaria de saber que há um colega lá fora que me socorrerá quando eu precisar. Isso pode parecer egoísta, e talvez seja, mas se isso ajuda a todos os outros, então que assim seja”.
O Dr. Jack Kevorkian sofreu várias ações judiciais. Foi absolvido por três vezes e teve um dos processos anulados. Nestes momentos, o fator decisivo foram os depoimentos, gravados em vídeo, dos suicidas assistidos e o testemunho dos familiares. Os defensores da “santidade da vida” conseguiram que o governador assinasse a lei que criminalizava a prática de assistência ao suicídio. O estado é laico, mas o promotor, os legisladores, o governador, e, principalmente, seus eleitores, não necessariamente respeitam a laicidade. A fé religiosa termina por influenciar e determinar a lei. A autoridade recusa ao médico o direito de assistir ao suicídio e ao indivíduo a liberdade de decidir sobre a própria vida, mas arroga-se no direito de interpretar Deus e o Povo. Na verdade, assume o ponto de vista teocrático dos militantes da causa de Deus.
Acusam-no de violar preceitos religiosos, de agir contra a natureza e o criador. Dr. Jack lembrou que durante muito tempo acreditou-se que os médicos não deveriam fazer cirurgias do coração. Era visto como contrário à vontade de Deus. Os colegas criticavam os que ousavam desafiar as crenças e tradições. Eram acusados de “brincarem de Deus”![2] A entrevistadora pergunta: “O que diria aos que dizem: “Dr. Kevorkian, você está brincando de Deus”? Ele responde: “Eu digo a elas: “E daí”? Quando um médico te dá uma pílula, ele está brincando de Deus porque está interferindo no seu processo natural. Todos os médicos acreditam que são Deus. Não deviam, mas acreditam. Mas prefiro esses do que os médicos que estão mais interessados em suas carteiras de ações do que em seus pacientes”.
O argumento religioso afirma que “A vida é escolha de Deus”! Os manifestantes religiosos demonizam o Dr. Jack e recusam-se a aceitar que cada indivíduo é livre para decidir sobre sua própria vida – de decidir, inclusive, se quer ser salvo, se acredita em Deus. Eles se colocam no lugar de Deus. O fanatismo os cega e paralisa o raciocínio; o amor ao próximo dar lugar à ira, imaginam-se portadores da “ira santa” e, em nome da fé, julgam-se no direito de impedir a morte dos que a querem rápida e sem dor. Generalizam e transformam o ser humano que ajuda os necessitados numa espécie de monstro, uma abominação. São incapazes de compaixão e amor ao próximo. No fundo, são egoístas cujo móbil é a salvação individual. Salvam a si próprios e se veem no direito de condenar os que não concordam com o seu medievalismo. Concebem-se como representantes do bem, porta-vozes de Deus na terra – Deus fala por suas bocas! Amam as abstrações – Deus, Homem, Humano! – mas odeiam os homens reais de carne e osso que ousam questionar seus axiomas. Apontam o dedo acusador e atiram pedras. Afastam-se do humano em nome de Deus! Dizem-se cristãos, mas será que seguem os ensinamentos de Cristo? Por que Deus precisa de tais defensores?
Não é suficiente que se vejam como mandatários da palavra divina, é preciso que expressem isto em sua forma laica, enquanto lei. Mas, “Quando uma lei é considerada imoral por você, deve desobedece-la”. O Dr. Jack desobedece, desafia a lei e é encarcerado. Faz greve de fome e responsabiliza o Estado por seu suicídio. Após vários dias, é libertado sob fiança simbólica. Em sua apelação contra a lei, o advogado Geoffrey Fieger afirma: “Agora, como é possível que um adulto mentalmente competente não tenha o direito de olhar um médico no olho e dizer: “Já sofri demais”? “Não posso suportar mais dor”. “Ajude-me”. “Já sofri demais”. Realmente queremos que o governo tome essas decisões por nós? Não. Não pode ser. Simplesmente não pode ser”.
O Dr. Jack não se contenta com a tolerância da autoridade, ele quer estimular o debate sobre a eutanásia de forma a provocar a Suprema Corte dos EUA a se pronunciar. Num gesto arriscado, decide praticar a eutanásia ativa e aplica as drogas letais no paciente Thomas Youk. Deliberadamente, documenta em vídeo e divulga na mídia. É processado. Contudo, o Dr. Kevorkian recusa a assistência de Geoffrey Fieger, advogado que o havia defendido nos casos anteriores. Fieger, com a crescente evidência midiática, lançara-se na política como candidato a governador. Dr. Jack insiste na autodefesa. A promotoria retira a acusação de assistência ao suicídio e consegue a interdição do depoimento das testemunhas, familiares e a viúva de Thomas Youk. O médico fica sem seu principal argumento de defesa e seus pedidos são classificados como irrelevantes. A legalidade racional-burocrática impõe-se e ele é condenado pela acusação de homicídio. O júri recusa-se a aceitar a eutanásia e aplicou a letra fria da lei. A justiça humana se faz e os ativistas religiosos atingem seu objetivo: “Jack na cadeia”! Rejubilam-se, pois Deus é justo! Os doentes terminais ficam a mercê dos desígnios divinos. A justiça humana e divina, interpretada por homens e mulheres de carne e osso, recusa o direito individual de por fim à dor e ao sofrimento, ainda que sob a ameaça da danação eterna. Como os inquisidores medievais, condenam os corpos para salvar almas! Sob o beneplácito da justiça e do Estado laicos!
Ficha técnicaTítulo: You Don’t Know Jack
Gênero: Biografia, Drama
Diretor: Barry Levinson
País de Origem: EUA
Ano: 2010
Duração: 135 minutos
Gênero: Biografia, Drama
Diretor: Barry Levinson
País de Origem: EUA
Ano: 2010
Duração: 135 minutos
* ANTONIO OZAÍ DA SILVA é docente do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá (DCS/UEM).
[1] Todas as citações são do filme You Don’t Know Jack.
[2] Ver o filme Quase Deuses (Something the Lord Made. Eua, 110 min, 2004 – Direção: Joseph Sargent), disponível emhttp://www.cineconhecimento.com/2012/04/quase-deuses/
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