(por Sandro Ferreira)
No ano passado, o Brasil produziu uma montanha de lixo. Foram quase 63 milhões de toneladas de resíduos sólidos. Para debater e aprofundar uma das temáticas mais importantes da vida nas grandes metrópoles, o JC inicia série de reportagens que segue até o dia 17. Segunda (11), as poucas, porém importantes, experiências de coleta seletiva no Recife.
Foto: Diego Nigro/JC Imagem
Paulinho nada com dificuldade em meio ao lixo e à lama
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aulinho nada com dificuldade em meio ao lixo e à lama
É mais do que absurdo e indignação. É desperdício e inoperância. A foto do menino de Saramandaia, quase engolido pela sujeira do canal, carrega um pouco de todos nós (ver galeria de imagens no final da matéria). É o nosso lixo de cada dia que está ali, espiando os pecados de uma cidade que não aprendeu a tratar seus restos com consciência e cidadania. A confissão de culpa flagrada em cada detalhe. Perpetuada nas milhares de garrafas PET, sacos plásticos, latinhas de refrigerante, na trivial embalagem de margarina. Quase tudo reaproveitável. Não deveria, nem precisava estar lá. De onde veio esse mar de entulhos que, dragado pela maré baixa do Canal do Arruda, sufoca e corrói a infância dos meninos de Saramandaia? Como ele foi parar ali na foto que correu o mundo?
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Basta ver. É lixo vindo das nossas cozinhas, da rotina diária de todas as casas. Lixo doméstico. Produzido por uma metrópole que ainda não incorporou, sequer descobriu, a coleta seletiva como um hábito saudável e urgente. A população até sabe da importância de reciclar, mas o costume de separar garrafas, vidro, papel é muito mais discurso do que prática. Uma pesquisa inédita do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Meio Ambiente do Ministério Público de Pernambuco, realizada com moradores do Grande Recife, vai direto ao ponto. Feito no final do ano passado e recém-concluído, o levantamento não deixa dúvidas: todos são a favor da reciclagem. Mas poucos, pouquíssimos, contribuem com ela. Os números evidenciam a contradição do dia a dia. Cerca de 95% dos moradores ouvidos consideram a coleta seletiva importante. Mas apenas 10% separam diariamente o lixo, condição fundamental para a reciclagem.
Na tentativa de apontar uma explicação para um percentual tão baixo de adeptos da coleta seletiva, a pesquisa questiona, entre os que afirmaram que “nunca”, “raramente” ou “só às vezes” separam os resíduos, o por quê dessa resistência? A resposta coloca o dedo na ferida: quase 60% dos entrevistados afirmaram que não fazem a coleta separada porque a prefeitura, na hora de recolher o material reciclável, mistura tudo com o lixo comum. É um problema agravado por outro. Se o universo dos que reciclam é mínimo, a falta de continuidade e exemplo do poder público desestimula, e até afasta, quem poderia e deveria ser convencido a adotar uma prática mais sustentável.
O impasse se volta, de novo, para a foto de Paulinho, o menino de 9 anos, que ganha, quando muito, R$ 5, por dia, para separar o lixo que o descaso e a omissão jogaram no canal. A pesquisa, feita em parceria com a Faculdade Frassinetti do Recife (Fafire), quis saber, quem, na opinião da população, é o maior responsável pelos problemas gerados pelo lixo. Pelo menos no discurso, a compreensão é clara: para quase 60% das pessoas ouvidas, esse é um problema de “todos”.
Nas ruas do Recife, o resultado do levantamento fica evidente de uma forma inconteste e preocupante. Não importa qual o pedaço da cidade, se o lado dos ricos ou dos mais pobres, o hábito de jogar dejetos nas vias públicas é uma prática de todos. Independe do endereço e do valor do IPTU pago. Improvável imaginar que na Avenida Beira-Rio, no bairro das Graças, área nobre da capital, existe um lixão a céu aberto. Mas ali, às margens do Rio Capibaribe e aos pés dos arranha-céus de luxo, cresce diariamente um depósito alimentado pelos restos de construção de prédios e casas de moradores da própria região. A reportagem flagrou o momento em que um dos carroceiros despejava metralha trazida de uma reforma feita por um edifício a poucas quadras dali. Uma rápida olhada no lixo orgânico depositado no trecho privilegiado da cidade também é revelador: garrafas de vinho italiano, azeite extravirgem de qualidade e vinagre balsâmico se misturam a restos de comida que espalham o mau-cheiro e infestam de insetos o lado rico do rio.
Morador da área, o administrador de empresas Ivan Rui de Andrade Lima está cansado de ver, de madrugada, caçambas e caminhonetes despejando os restos de construção na beira do Capibaribe. “É o lixo da classe média alta. Como se esse não fosse um problema também deles. Querem se livrar dos entulhos e jogam em qualquer lugar. É revoltante”, diz. Ele mesmo evitou que os restos de construção da reforma feita no próprio edifício fossem jogados na beira do rio. “Quando vi que os funcionários da empresa responsável pelo serviço iam jogar lá, adverti. Esse eu consegui evitar”, conta. É a mesma falta de consciência que incomoda o vigia Uberlândio Nascimento, morador de um conjunto popular do bairro da Torre, na Zona Norte da cidade. Acostumado a ver os vizinhos jogando lixo até pela janela, ele desabafa: “O problema é que as pessoas reclamam, mas ninguém faz a sua parte. O bom é jogar a culpa nos outros”. Na calçada do residencial, o cenário traduz a revolta do vigia: sacos de lixo rasgados e espalhados e um colchão velho largado na calçada.
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