Os partidos políticos, na tradição conservadora brasileira, dificilmente passam de máquinas ou legendas eleitorais, cuja vinculação com o Estado é ditada pela relação de troca, entre apoio parlamentar aos governantes que elege e condições de reprodução, tanto políticas quanto materiais, para as próprias agremiações e seus chefes.
Por Breno Altman*, no Página 13
Divulgação.
A burguesia brasileira, particularmente no período posterior à ditadura, foi construindo ou ocupando outros espaços para disputar a direção programática dos governos, os valores predominantes na sociedade e o comando das operações políticas de envergadura. O principal destes instrumentos,
sem dúvida, é a rede de comunicação, controlada por monopólios de imagem, som e escrita. A interface entre esses veículos e as grandes corporações empresariais, ao mesmo tempo principais anunciantes da mídia e maiores financiadoras de campanhas eleitorais, constituem o núcleo duro da hegemonia burguesa, ao redor do qual orbitam partidos e políticos da classe.
A vitória do Partido dos Trabalhadores, em 2002, poderia ter representado um triplo desafio a esse sistema de poder. A primeira perna deste possível enfrentamento estava – e continua – na
possibilidade de mudar drasticamente o modelo eleitoral. Sem doações empresariais e com voto em lista, poderia haver elevação da densidade político-ideológica e fortalecimento dos partidos. Poucas seriam as chances de sobrevivência para organizações sem células mobilizadas no país, incapazes de fazer o confronto de projetos e desprovidas de canais para representar interesses sociais consolidados.
O segundo termo desta oportunidade histórica vislumbrava-se na democratização dos meios de comunicação, através de sua regulação econômica, de caráter antimonopolista. A expansão dos instrumentos de imprensa, demolindo o poderio das oligarquias familiares, criaria outro ambiente
para a batalha de ideias e informações, marcado pela diversidade, ao contrário da pasteurização atual, de natureza classista e autoritária.
O terceiro e último elemento seria a emergência, como partido governista, de uma associação capaz de formular propostas, organizar o embate por sua legitimação e mobilizar os setores desejosos de efetivá-las. O PT poderia ter virado de avesso o destino manifesto dos partidos oficialistas, qual seja, a concorrência por cotas de poder nas entranhas do Estado.
A verdade é que, a princípio, nenhum destes passos foi tentado. Antes de mais nada, porque a reforma política e a regulamentação da mídia foram claramente colocadas em segundo ou terceiro plano, quando não simplesmente em algum arquivo morto. Mas também o cotidiano petista esteve regido pelo tradicionalismo. Aceitou-se que a articulação e a vocalização da política deveria ser feita quase exclusivamente pelo governo. Ao partido caberia, fora dos períodos eleitorais, garantir a unidade e a disciplina de suas bancadas, a defesa pública incondicional dos atos administrativos e o convencimento de segmentos eventualmente descontentes.
O Partido dos Trabalhadores era, neste desenho, uma espécie de braço parlamentar do poder executivo. Tal fórmula, de estatização do partido, já seria custosa em uma administração monocolor. Distintas experiências históricas nos ensinam que essa receita leva ao esvaziamento do debate interno, ao distanciamento dos movimentos populares, ao desprestígio junto à intelectualidade e à burocratização geral da vida partidária. O cenário piora, contudo, quando estamos tratando de gestão multipartidária, especialmente quando os demais sócios não respeitam a mesma disciplina do partido ao qual pertence o presidente da República.
O Partido dos Trabalhadores, enclausurado no governo, viu-se em situação passiva diante de agremiações coligadas, que se jogavam abertamente na defesa de medidas que atendiam às frações sociais que representam, articulando-se com os poderes fáticos da república. Sem vida autônoma, o partido aguardava, nas questões mais relevantes, que o Palácio do Planalto ou a Esplanada dos Ministérios tomassem posição, para adotá-la imediatamente como invenção coletiva e cerrar fileiras a seu favor. Parecia haver acordo tácito, pelo qual os petistas renunciavam a qualquer pugna pública na determinação de políticas estatais.
Formatava-se, assim, dinâmica de negociação na qual o governo estipulava proposições ou encaminhamentos a partir da sondagem de qual seria o mínimo denominador comum com aliados políticos, empresariais ou até religiosos. Raramente o conflito precedia a formação de consenso. Abdicava-se de aproximar a concertação de concepções historicamente advogadas pela esquerda, o que somente seria possível através de disputa mobilizada na sociedade. Importante exceção, e vitoriosa, foi a discussão sobre o marco civil na internet. Mas poucas foram as vezes que se estabeleceu o enfrentamento como conduto para pactos mais corajosos entre os agrupamentos
que compõem o gabinete e as classes ali representadas. Engolido pela engrenagem institucional, o PT perdeu muito de sua seiva.
Adquiriu vários dos hábitos e vícios das legendas burguesas, além de ter feito opção preferencial pela retaguarda. Os efeitos mais sensíveis foram o descolamento em relação à vida e às lutas
das massas, o atrofiamento da capacidade formuladora, a renúncia à formação de quadros para além de tarefas estatais e o predomínio do cretinismo parlamentar como cultura política. Não se pode esconder que este enfraquecimento político-ideológico também relaxou o controle interno sobre práticas financeiras, afetando a imagem pública do petismo.
A boa notícia é que o partido vem concluindo, devagar e sempre, sobre o fracasso desta receita de funcionamento. Ainda que sem clara linguagem autocrítica, o que seria mais pedagógico, várias
resoluções partidárias têm sugerido a adoção de outra forma de relacionamento com o governo. A partir das manifestações ocorridas em junho de 2013 e da última campanha presidencial, ficaram evidentes os problemas da opção político-organizativa que prevaleceu desde 2003, mas cujas origens poderiam ser rastreadas em tempos anteriores.
Esta situação, no entanto, não deve ser encarada por viés administrativo, pois é política sua natureza. Durante longo tempo foi possível a convivência entre um partido de bastidores e reformas baseadas no reordenamento orçamentário, alavanca para um modelo de desenvolvimento amparado na inclusão social e na ampliação do mercado interno.
Quando a luta de classes evolui em ambiente de baixo atrito, expressando conflito distributivo que não afeta diretamente a renda do capital, lastreado pelo crescimento da economia, pode-se imaginar estratégia que evite tensões eventualmente arriscadas. Associada à necessidade de alianças parlamentares fora do campo popular e até com grupos conservadores, esta orientação de moderação dos conflitos ganhou mais corpo, tendendo à redução da política como arte da negociação. Concorde-se ou não com esta concepção, deve-se reconhecer certa harmonia entre a linha geral na direção do Estado e o papel desempenhado pelo PT.
Claro que o partido poderia ter agido de maneira distinta, patrocinando agenda mais avançada sem violar a estratégia estabelecida, inclusive com resultados melhores, mas definitivamente não foi o caso. O segundo governo da presidente Dilma Rousseff, porém, desponta sob o esgotamento deste primeiro e bem-sucedido ciclo de reformas, cujos sinais passaram a ser politicamente visíveis nos últimos quinze meses. Novos e importantes avanços passaram a depender de mudanças estruturais.
O processo inaugurado em 2003 pode ser paralisado ou mesmo regredir sem a democratização do Estado, o enxugamento da renda financeira dos fundos privados, a consolidação do regime de partilha do pré-sal, a aceleração da integração latino-americana e a adoção de um sistema tributário progressivo, entre outras medidas de fundo. Tais modificações são indispensáveis para que se possa destravar o desenvolvimento e financiar a melhoria e ampliação dos serviços públicos, a conquista de mais direitos sociais e o aprofundamento dos programas distributivos.
O reposicionamento das relações do PT com o governo, portanto, deveria ser procedido à luz da contradição entre as reformas imprescindíveis para relançar o projeto democrático-popular e a correlação desfavorável de forças nas instituições do Estado. Muitos militantes e dirigentes abordam esta disfunção através da aritmética: se não temos forças suficientes, particularmente
no parlamento, só nos resta resistir ou mesmo recuar, para preservar conquistas anteriores.
Abordagem um pouco menos assustada chegaria a outra conclusão. Se as realizações dos últimos doze anos não são mais suficientes para expandir a base do petismo, como se pode concluir a partir das últimas eleições, é fácil prever o que ocorreria se hipóteses como o congelamento ou o retrocesso fossem levadas à prática.
Ainda que a liderança presidencial seja decisiva para forjar condições políticas que permitam o nascimento de uma nova maioria, capaz de implementar as mudanças elencadas, a reinvenção do PT seria fundamental para ultrapassar obstáculos próprios de um bloco histórico que é governo, mas sem hegemonia no Estado e na sociedade. O partido precisaria extrair as devidas consequências do que vem a ser uma política de coalizão pluripartidária e policlassista. Não deveria conceber como sua incumbência primordial a arbitragem de interesses, mas o esforço para elaborar propostas, estabelecer alianças e conquistar apoio público que viabilizem posições de esquerda dentro do gabinete e do Congresso.
A superação da governabilidade estritamente institucional, que tranca as iniciativas mais audaciosas e restringe a ação política ao veto de aliados, pressupõe a ressurreição da pressão social organizada como ferramenta de poder. Uma dos requisitos desta renascença é a reconversão do PT em partido orgânico dos pobres da cidade e do campo, dos intelectuais, da juventude, das camadas médias favoráveis à transformação do país. Obviamente isso não significa abandonar ou subestimar as atividades de governo, legislativas ou administrativas. Mas indica a necessidade de recuperar elaboração programática autônoma, refazer vínculos com o mundo da cultura e do trabalho, reintegrar a luta institucional com as batalhas sociais. O epicentro desta movida está em estabelecer um novo programa, vertebrado pela reforma política e a regulação econômica dos meios de comunicação, mas apontando também soluções para outros graves problemas do país.
O fomento de uma agenda para o presente e o futuro talvez seja a principal via de renovação da frente popular que veio sendo forjada desde os anos oitenta. Deve-se admitir que a absorção do PT pela institucionalidade foi decisiva para a fragmentação e o esvaziamento desta aliança estratégica. A reconstituição de um bloco progressista, formado por partidos e movimentos, com capacidade de ação comum e plataforma unificada, tem valor estruturante para defender as reformas e inverter a correlação de forças. Mas seu vigor tem na autonomia relativa diante do governo um dos principais pilares.
Não se trata apenas de criar uma corrente de opinião que sirva de alicerce à administração federal diante da escalada conservadora. Ainda que essa tarefa não deva ser subestimada, a esquerda precisa de instrumentos que também permitam disputar os rumos do próprio governo. Para estar a altura destes desafios, o PT precisa se resolver diante da mais delicada encruzilhada de sua existência. Curiosamente a equação pode ser colocada de forma semelhante à que se fazia nos primórdios petistas: o partido é tático ou estratégico?
Um partido tático pode se limitar a projeto de melhorias sociais, nos marcos de uma organização política e econômica que permaneça imutável, da qual se apresenta e atua como ala esquerda, mas constrangido por um pacto de conservação. Um partido estratégico incorpora as tarefas de governo, determinadas por realidades concretas, a um plano de transformação da ordem, enraizado no objetivo de constituir as classes populares como direção do Estado e da sociedade. A frase vem das origens do movimento socialista e esteve presente no congresso fundacional do PT, mas mantem
seu poder de síntese: a emancipação dos trabalhadores
será obra dos próprios trabalhadores.
*Breno Altman é jornalista.
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