As esquerdas e a derrota na Venezuela: decifra-me ou te devoro
A derrota contundente do PSUV na Venezuela faz parte da onda conservadora que vem se abatendo sobre a América do Sul, e atua de forma geral sobre situações nacionais, que possuem suas especificidades e autonomias.
Por Carlos Eduardo Martins*, na Opera Mundi
Efe
PSUV, partido do presidente Nicolás Maduro, perdeu a maioria após eleições legislativas
A derrota do PSUV ameaça não apenas o governo Maduro, mas a própria Revolução Bolivariana, uma vez que a MUD alcançou 112 deputados na Assembleia Nacional, maioria de 2/3, podendo destituir ministros do Supremo Tribunal Federal e convocar nova Assembleia Constituinte para destruir a Quinta República e o legado chavista. O êxito desta onda se funda na capacidade de bloquear a articulação que se promoveu na primeira década do século 21 entre o desenvolvimento econômico e o combate à desigualdade e à pobreza. Para isso, vários fatores se conjugaram no caso venezuelano.
O primeiro fator é a estratégia do imperialismo estadunidense que se aproveitou da crise internacional, iniciada em 2008, para derrubar os preços das commodities, em particular dos derivados do petróleo, em cuja nacionalização e renda apoiam-se diversos governos populares da região. Para isso promoveu a expansão da produção de petróleo com aliados como a Arábia Saudita, Emirados Árabes, Iraque, Iêmen e Kuwait, ao tempo em que buscou substituir importações pela produção de gás de xisto.
O segundo fator foi a incapacidade de o governo venezuelano mudar o caráter da pauta exportadora, aprofundando sua vinculação aos derivados de petróleo que passaram a representar mais de 90% da mesma, ainda que o petróleo tenha diminuído sua participação no PIB venezuelano. Tal situação tornou o balanço de pagamentos da Venezuela extremamente vulnerável às oscilações dos preços dos derivados de petróleo, e à estratégia estadunidense de estrangulamento cambial. Esta vulnerabilidade se acentuou com a decisão de manter um teto fixo de reservas cambias, em torno de US$ 30 bilhões, desde 2006, independente do aumento do valor das importações.
O terceiro fator foi a decisão dos governos bolivarianos de não intervirem significativamente no setor bancário venezuelano, cujas captações permaneceram 70% nas mãos do setor privado, ainda que se tenha nacionalizado o Banco Santander, transformando-o em Banco de Venezuela. O peso do setor financeiro se elevou no PIB venezuelano de 4% a 12%, entre 2002-2012, e a decisão de não nacionalizá-lo e nem centralizar o comércio exterior implicou na tolerância a uma extraordinária fuga de capitais que alcançou cerca de US$ 200 bilhões, desde 1999, a maior parte durante o governo Chávez. Tal situação, que foi financiada por saldos comerciais durante o período do boom petroleiro, reduziu drasticamente as reservas venezuelanas e a capacidade de os governos chavistas enfrentarem um período de crise e ofensiva imperialista.
O quarto fator foi o baixo perfil que assumiu a agenda de integração regional das esquerdas através da Unasul e do novo Mercosul. Embora muito tenha sido teorizado sobre integração soberana e solidária, nova arquitetura financeira e redução de assimetrias regionais, muito pouco foi realizado e institucionalizado. O Banco do Sul, aprovado em 2007, não saiu do papel e não contou com a ratificação do congresso brasileiro e nem o empenho do governo brasileiro, que preferiu financiar as operações do país na região via BNDES. A Venezuela, embora tenha ingressado no Mercosul, pouco aumentou suas exportações para os países da região, em particular o Brasil, que continua a importar apenas cerca de 1% das suas necessidades de petróleo e derivados deste país, preferindo parceiros como a Arábia Saudita e a Nigéria. A integração regional nem funcionou para criar uma arquitetura financeira soberana que mudasse o padrão produtivo internacional da Venezuela, nem para lhe abrir significativos mercados de exportação e nem para lhe oferecer garantias monetárias contra crises internacionais.
Tais fatores contribuíram para o estrangulamento econômico do capitalismo de Estado venezuelano e da sua transição para um projeto socialista. Ainda podemos destacar outro elemento que minou a força do processo revolucionário: a dificuldade de controle social sobre a gestão do Estado, manifesta na existência de corrupção em altos escalões do governo, e na carência de formação de quadros técnicos no poder popular. Um dos casos mais notórios de corrupção foi o de Rafael Isea, ex-governador de Aragua, ex-presidente do Banco de Desenvolvimento Econômico Social (BANDES) e ex-presidente do Banco do ALBA, que fugiu do país acusado de desvios de US$ 70 milhões, radicando-se nos Estados Unidos como colaborador da agência antidrogas. Apesar da luta de Maduro contra a corrupção no aparato de Estado, a sua presença, em contraste com o desabastecimento, levou ao aumento da desconfiança popular com o processo revolucionário.
A onda direitista que se articula sobre a América do Sul, diferentemente da que se apoiou em ditaduras militares na década de 1960/70 ou, em democracias oligárquicas, na década de 1990, ancoradas na sobrevalorização cambial, no endividamento externo e na desnacionalização, pretende se apoiar numa base de massas. Esta base de massas é refratária às políticas sociais e ao combate à desigualdade, praticados pelos governos de esquerda e centro-esquerda, e busca o controle do Estado mesclando alternativas liberais e fascistas que se estendem da competição eleitoral, ao golpe parlamentar e processos insurrecionais, como praticados pela oposição venezuelana em La Salida. Se esta onda pouco pode oferecer além de um novo programa neoliberal fundado em forte repressão aos movimentos sociais e partidos políticos que protagonizam a política na América do Sul nos últimos 15 anos, vencê-la exige uma reestruturação de projetos das esquerdas, do débil reformismo que apresentam para um outro estratégico que controle ativos chaves dos Estados nacionais, direcionando-os para uma integração regional profunda e para a cooperação com o Sul, em particular com os Brics.
O primeiro fator é a estratégia do imperialismo estadunidense que se aproveitou da crise internacional, iniciada em 2008, para derrubar os preços das commodities, em particular dos derivados do petróleo, em cuja nacionalização e renda apoiam-se diversos governos populares da região. Para isso promoveu a expansão da produção de petróleo com aliados como a Arábia Saudita, Emirados Árabes, Iraque, Iêmen e Kuwait, ao tempo em que buscou substituir importações pela produção de gás de xisto.
O segundo fator foi a incapacidade de o governo venezuelano mudar o caráter da pauta exportadora, aprofundando sua vinculação aos derivados de petróleo que passaram a representar mais de 90% da mesma, ainda que o petróleo tenha diminuído sua participação no PIB venezuelano. Tal situação tornou o balanço de pagamentos da Venezuela extremamente vulnerável às oscilações dos preços dos derivados de petróleo, e à estratégia estadunidense de estrangulamento cambial. Esta vulnerabilidade se acentuou com a decisão de manter um teto fixo de reservas cambias, em torno de US$ 30 bilhões, desde 2006, independente do aumento do valor das importações.
O terceiro fator foi a decisão dos governos bolivarianos de não intervirem significativamente no setor bancário venezuelano, cujas captações permaneceram 70% nas mãos do setor privado, ainda que se tenha nacionalizado o Banco Santander, transformando-o em Banco de Venezuela. O peso do setor financeiro se elevou no PIB venezuelano de 4% a 12%, entre 2002-2012, e a decisão de não nacionalizá-lo e nem centralizar o comércio exterior implicou na tolerância a uma extraordinária fuga de capitais que alcançou cerca de US$ 200 bilhões, desde 1999, a maior parte durante o governo Chávez. Tal situação, que foi financiada por saldos comerciais durante o período do boom petroleiro, reduziu drasticamente as reservas venezuelanas e a capacidade de os governos chavistas enfrentarem um período de crise e ofensiva imperialista.
O quarto fator foi o baixo perfil que assumiu a agenda de integração regional das esquerdas através da Unasul e do novo Mercosul. Embora muito tenha sido teorizado sobre integração soberana e solidária, nova arquitetura financeira e redução de assimetrias regionais, muito pouco foi realizado e institucionalizado. O Banco do Sul, aprovado em 2007, não saiu do papel e não contou com a ratificação do congresso brasileiro e nem o empenho do governo brasileiro, que preferiu financiar as operações do país na região via BNDES. A Venezuela, embora tenha ingressado no Mercosul, pouco aumentou suas exportações para os países da região, em particular o Brasil, que continua a importar apenas cerca de 1% das suas necessidades de petróleo e derivados deste país, preferindo parceiros como a Arábia Saudita e a Nigéria. A integração regional nem funcionou para criar uma arquitetura financeira soberana que mudasse o padrão produtivo internacional da Venezuela, nem para lhe abrir significativos mercados de exportação e nem para lhe oferecer garantias monetárias contra crises internacionais.
Tais fatores contribuíram para o estrangulamento econômico do capitalismo de Estado venezuelano e da sua transição para um projeto socialista. Ainda podemos destacar outro elemento que minou a força do processo revolucionário: a dificuldade de controle social sobre a gestão do Estado, manifesta na existência de corrupção em altos escalões do governo, e na carência de formação de quadros técnicos no poder popular. Um dos casos mais notórios de corrupção foi o de Rafael Isea, ex-governador de Aragua, ex-presidente do Banco de Desenvolvimento Econômico Social (BANDES) e ex-presidente do Banco do ALBA, que fugiu do país acusado de desvios de US$ 70 milhões, radicando-se nos Estados Unidos como colaborador da agência antidrogas. Apesar da luta de Maduro contra a corrupção no aparato de Estado, a sua presença, em contraste com o desabastecimento, levou ao aumento da desconfiança popular com o processo revolucionário.
A onda direitista que se articula sobre a América do Sul, diferentemente da que se apoiou em ditaduras militares na década de 1960/70 ou, em democracias oligárquicas, na década de 1990, ancoradas na sobrevalorização cambial, no endividamento externo e na desnacionalização, pretende se apoiar numa base de massas. Esta base de massas é refratária às políticas sociais e ao combate à desigualdade, praticados pelos governos de esquerda e centro-esquerda, e busca o controle do Estado mesclando alternativas liberais e fascistas que se estendem da competição eleitoral, ao golpe parlamentar e processos insurrecionais, como praticados pela oposição venezuelana em La Salida. Se esta onda pouco pode oferecer além de um novo programa neoliberal fundado em forte repressão aos movimentos sociais e partidos políticos que protagonizam a política na América do Sul nos últimos 15 anos, vencê-la exige uma reestruturação de projetos das esquerdas, do débil reformismo que apresentam para um outro estratégico que controle ativos chaves dos Estados nacionais, direcionando-os para uma integração regional profunda e para a cooperação com o Sul, em particular com os Brics.
*Carlos Eduardo Martíns é professor do Programa de Pós Graduação em Economia Política Internacional (PEPI)/UFRJ e autor de "Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina" (Boitempo 2011)
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