O historiador francês que revolucionou a
historiografia moderna e reabilitou a imagem da Idade Média europeia,
mostrando-a como um período bastante mais dinâmico do que o humanismo
renascentista quis fazer crer, morreu nesta terça-feira em Paris, aos 90 anos,
noticiou o jornal Le Monde.
Além de centenas de artigos, Jacques Le Goff tinha
mais de 40 livros publicados, desde Os Intelectuais na Idade Média e Mercadores
e Banqueiros na Idade Média, ambos de 1957 (as edições portuguesas são da
Gradiva), até ao recente À la recherche du temps sacré, Jacques de
Voragine et la Légende Dorée, de 2011.
Bernardo Vasconcelos e Sousa, autor da obra História
de Portugal, juntamente com Rui Ramos e Nuno Monteiro, diz que Le Goff “é
um dos historiadores mais importantes da segunda metade do século XX à escala
mundial, sem dúvida e sem favor nenhum”. Com George Duby, outro grande
historiador francês falecido em 1996, “mudou de forma radical e muito profunda
a maneira de ver a Idade Média ocidental”.
O historiador francês pertencia à terceira geração
de historiadores da escola dita dos Annales. A sua concepção de
antropologia histórica e o seu interesse pela história da cultura e das
mentalidades, de O Nascimento do Purgatório à monumental
biografia do rei São Luís, distinguem-no dos modelos de interpretação social e
económica de Fernand Braudel, representando um modo criativo de retomar o
legado da revista fundada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre.
"Le Goff é um dos historiadores mais
importantes da segunda metade do século XX à escala mundial, sem dúvida e sem
favor nenhum”
Bernardo Vasconcelos e Sousa, historiador
Sucessor de Braudel na direcção da École des Hautes
Études en Sciences Sociales, publica em 1964 A Civilização do Ocidente
Medieval (edição portuguesa da Estampa), uma obra que toma como
objecto de estudo um vasto âmbito geográfico e um período de tempo longo e nos
dá, diz Bernardo Vasconcelos e Sousa, uma nova Idade Média “combatendo quer a
visão negra de uma Idade Média de ‘feios, porcos e maus’, que ainda hoje tem
uma representação no discurso político ou jornalístico, quer uma imagem dourada
e cor-de-rosa”, alimentada pelo romantismo. Na Idade Média que construiu,
juntamente com a sua geração, “estudam-se as estruturas, as mentalidades, os
valores, as representações do quotidiano”.
Se tivesse de escolher uma obra para um leitor
leigo, Vasconcelos e Sousa destacaria A Civilização do Ocidente Medieval,
“um livro de carácter científico que se lê como um bom romance”, um manual de
história geral onde Le Goff defende a existência “de uma civilização do
Ocidente medieval”, uma civilização que sucede à Antiguidade Greco-Romana e
antecede o mundo moderno.
O historiador da Universidade Nova de Lisboa cita
também O Nascimento do Purgatório (a obra que o próprio Le
Goff preferia entre as outras) como “um livro magistral”, onde se analisa a
criação, a invenção, do Purgatório, sobretudo a partir do século XII, como
lugar intermédio entre o Céu e o Inferno: “Mesmo que não se esteja em condições
de aceder de imediato à harmonia celestial, há uma lugar intermédio, de
esperança, que possibilita que se venha a aceder ao Céu. É uma sociedade que se
está a diversificar, a complexificar, e isso teve consequência na estruturação
do pensamento e da devoção cristãos.”
Na obra Para Um Novo Conceito da Idade
Média, onde junta vários pequenos estudos, Vasconcelos e Sousa destaca um
intitulado “O tempo da Igreja e o tempo do mercador”, em que o historiador
francês compara e contrapõe uma representação da vivência do tempo por parte da
Igreja, de um tempo cíclico das horas litúrgicas, dos ciclos naturais, a um
tempo quantificado dos mercadores, um tempo linear, um tempo que é dinheiro:
“Esse tempo começa a fazer a sua afirmação a partir dos séculos XIII e XIV, passando
pela sua materialização, quantificado já não pela sucessão das horas diárias,
pelo bater do sino das igrejas, mas pelo relógio mecânico que começa a surgir
precisamente nas cidades ao longo do século XIV.”
Na sua abordagem antropólogica, na sua ambição de
abarcar o homem em todas as suas dimensões, Le Goff construiu uma história das
mentalidades medievais em que mostrou como estavam então interligados domínios
aparentemente tão distantes como a teologia ou o comércio.
Esta diversificação dos temas, que abriu muitas
linhas de investigação, dá uma ideia, diz Vasconcelos e Sousa, “da revolução
que houve nos estudos medievais, de que Le Goff e Duby foram mais directamente
responsáveis”.
A nova história
Nos anos 1970, coordena duas obras colectivas de
grande envergadura que se tornarão as referências teóricas da Nouvelle
Histoire, a corrente historiográfica que funda com Pierre Nora, e que procurará
levar mais longe a herança dos Annales: os três volumes de Fazer
História (1974), e A Nova História, em colaboração com
Jacques Revel (1978). A primeira foi traduzida pela Bertrand e a segunda pelas
Edições 70.
Num artigo de 2010 que a edição online do jornal Le
Nouvel Observateurrecuperou a propósito da morte de Le Goff, André
Burguière defende a tese de que, tal como os alemães têm de ter, em cada época,
um grande filósofo, os franceses “querem ter um grande historiador que o mundo
inteiro lhes inveje”. E acrescenta que desde a morte de Fernand Braudel esse
historiador era Jacques Le Goff.
Burguière lembra que Le Goff sempre se reclamou da
lição de Marc Bloch, co-fundador da revista Annales e pioneiro
em contrapor à historiografia convencional do feudalismo uma abordagem
sociológica. Mas as investigações de Bloch e dos seus discípulos focavam-se
essencialmente na história rural e agrícola. Caberá a Le Goff propor uma
história da cidade medieval, já anunciada nos títulos dos seus primeiros
livros, que evocam, com um sabor deliberadamente anacrónico, os intelectuais e
banqueiros da Idade Média. Le Goff, diz Burguière, “combate o lugar-comum que
identifica a herança da Idade Média com o mundo rural”.
Quando recebeu, em 2004, o prestigiado prémio Dr.
A. H. Heineken de História, atribuído pela Academia Real das Artes e Ciências
dos Países Baixos, a declaração do júri dizia que Le Goff “mudou a nossa
percepção da Idade Média”.
Le Goff punha mesmo em causa as cronologias tradicionais, defendendo que a Idade Média correspondia a todo o período durante o qual a Igreja e a respectiva doutrina tinham sido consideradas como a fonte da verdade, um estado de coisas que só teria verdadeiramente sido posto em causa, na esfera económica, com a revolução industrial iniciada em Inglaterra em meados do século XVIII, e também, na ordem das mentalidades, com a Revolução Francesa. Ou seja, teríamos uma Idade Média que se estenderia até à primeira metade do século XVIII e que, desde o século IV, teria tido, diz Le Goff numa entrevista ao mesmo André Burguière, “várias fases de progresso que se podem qualificar como renascenças”, do desenvolvimento das cidades à criação das universidades. Le Goff crê ainda que uma das mais fundas dívidas do sujeito moderno ao cristianismo medieval é o reconhecimento da “noção de interioridade”, que este favoreceu.
De Ivanhoe aos Annales
Filho de um professor de inglês, Jacques Le Goff
nasceu no dia 1 de Janeiro de 1924 em Toulon, no Sul de França, onde fez os
estudos liceais e teve como professor o historiador Henri Michel, que depois se
tornaria um especialista na história da Segunda Guerra. Le Goff referir-se-ia
sempre com veneração a Henri Michel, cujo magistério terá contribuído para que
se tornasse historiador.
Mas Toulon, dirá mais tarde Le Goff, era uma cidade
profundamente racista, e o estudante ficou satisfeito quando teve de se mudar
para a mais cosmopolita Marselha, com o seu porto de mar e a sua população
multiétnica.
Frequenta em Marselha os estudos preparatórios de acesso ao ensino superior, mas vai pouco às aulas. Convocado para o “serviço de trabalho obrigatório”, vulgo STO, imposto pela Alemanha nazi ao Governo de Vichy, foge e junta-se à Resistência. Leitor compulsivo e omnívoro, devora os romances históricos de Walter Scott, como Ivanhoe, cuja influência na sua decisão de se tornar medievalista ele próprio não descartará.
Frequenta em Marselha os estudos preparatórios de acesso ao ensino superior, mas vai pouco às aulas. Convocado para o “serviço de trabalho obrigatório”, vulgo STO, imposto pela Alemanha nazi ao Governo de Vichy, foge e junta-se à Resistência. Leitor compulsivo e omnívoro, devora os romances históricos de Walter Scott, como Ivanhoe, cuja influência na sua decisão de se tornar medievalista ele próprio não descartará.
No pós-guerra, estuda literatura, mas acabará por
se licenciar em História. Em 1947, prossegue os seus estudos na Universidade de
Praga. Da invasão soviética que porá fim, em 1968, à Primavera de Praga,
dirá depois Le Goff que foi a “vacina” que o imunizou definitivamente contra o
comunismo.
Concluídas as provas de agregação em 1950, torna-se professor e começa por dar aulas num liceu de Amiens, vai depois para a Universidade de Oxford como bolseiro, e em 1954 assume funções docentes na Universidade de Lille.
Em 1958 conhece o historiador Maurice Lombard, especialista no islão medieval, um encontro que se revelará decisivo. Le Goff dirá sempre que foi com Lombard que mais aprendeu, e foi também ele que o apresentou a Braudel, que após ter lido as primeiras obras do jovem historiador lhe arranja um lugar de assistente na prestigiada VI Secção (ciências económicas e sociais) da École Pratique d’Hautes Études, que então dirigia.
Concluídas as provas de agregação em 1950, torna-se professor e começa por dar aulas num liceu de Amiens, vai depois para a Universidade de Oxford como bolseiro, e em 1954 assume funções docentes na Universidade de Lille.
Em 1958 conhece o historiador Maurice Lombard, especialista no islão medieval, um encontro que se revelará decisivo. Le Goff dirá sempre que foi com Lombard que mais aprendeu, e foi também ele que o apresentou a Braudel, que após ter lido as primeiras obras do jovem historiador lhe arranja um lugar de assistente na prestigiada VI Secção (ciências económicas e sociais) da École Pratique d’Hautes Études, que então dirigia.
Em 1969, Le Goff torna-se co-director da revista Annales e,
em 1972, sucede a Braudel na presidência da VI Secção da École Pratique
d’Hautes Études.
Grande comunicador, estreia-se em 1968 no programa
radiofónico Les Lundis de l’Histoire, que ainda hoje é emitido pela
France Culture, e com o qual Le Goff colaborou até ao final da vida.
Notícia alterada para corrigir uma passagem em que,
por lapso, a Primavera de Praga, de 1968, era antecipada 20 anos
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